segunda-feira, 30 de março de 2015





O MACACO HERÓI
(Lenda hindu recolhida por Gertrude Alice Kay, versão poética
e adaptação de  William Lagos, 21 mar 15)

O MACACO HERÓI I

Segundo contam, “nas plagas do Industão”, (*)
havia um rei de grande poderio,
que governava todo o sagrado rio,
desde Benares, com forte e firme mão.
Por outra parte, perto da nascente
de um afluente que descia do Himalaia,
havia uma árvore, de copa rica e gaia,
já secular e em vastidão potente...

(*) Alusão a um verso de Castro Alves.

Em toda a Índia, não havia outra qualquer,
nem ao menos um poderoso baobá;
segundo dizem, tampouco se achará
que a ela possa se assemelhar sequer...
Narra essa lenda que o poderoso Rama,
o rei das matas e valente caçador,
passeava um dia, no gozo do frescor
que sob a copa das matas se derrama...

Nem percebera haver ali qualquer perigo,
mas uma píton em um galho se enroscara
e ardilosamente dele se achegara,
para esmagá-lo e o carregar consigo!
Se sobre o rei conseguisse se lançar,
com suas volutas facilmente o envolveria;
nem sequer Rama depois conseguiria
de seus anéis assassinos escapar!...

Porém bem perto estava um macaquinho,
chamado de Hanuman, bem escondido,
temendo ser pela píton engolido,
numa forquilha bem encolhidinho...
também temia a Rama, o caçador,
de acurada e firme pontaria;
caso o avistasse, não o pouparia:
muitos macacos já caçara em seu ardor!

O MACACO HERÓI II

Mas viu que a píton pretendia caçá-lo,
por esse galho a deslizar, coleando,
astuta e silenciosa avizinhando
o incauto rei, a fim de devorá-lo!...
Já no momento em que nele saltaria,
o macaquinho superou seu medo
e deu um guincho forte, o mau segredo
revelando que ao rei esmagaria!...

De pronto, Rama deu um salto para trás,
falhando o bote da cruel serpente,
que a Hanuman avistou e, de repente,
apoderou-se dele, num zás-trás!...
Era uma presa de bem menor valor,
seu apetite tão somente aguçaria,
mas por sua causa a maior caça perderia
e abraçou o macaco em seu rancor!...

Porém Rama, do perigo advertido,
levou a mão à aljava e colocou
certeira frecha no arco e disparou,
o inimigo em seu pescoço já ferido!
Então a cobra do galho despencou,
debatendo-se nas vascas da agonia;
mais cinco frechas Rama acertaria,
até que a fera, finalmente, se aquietou!

E quando Rama as foi recuperar,
viu quase morto o pobre macaquinho!
“Foi você que me avisou, meu amiguinho!”
E com cuidado, o foi desenroscar...
Tomou-o nos braços, o corpo massageou,
e deu-lhe água para o despertar...
Ao vê-lo, Hanuman quis se livrar,
mas com palavras doces o acalmou!...

O MACACO HERÓI III

Os dois juntos, depois, se alimentaram;
tirou Rama da serpente a grossa pele:
seria um tapete no palácio dele,
do qual seus súditos muito se admiraram!
Mas o macaco parecia bem magrinho
e indagou Rama se passava fome:
“Ah, neste inverno não há quem a dome!
O alimento por aqui é bem mesquinho!...”

Então Rama o levou à beira-rio
e tirou de sua mochila uma semente:
logo plantada, fez-se árvore potente,
cheia de frutos, quase em desvario!...
“Esta árvore é sua, macaquinho,
de seus amigos e de seus parentes;
por meu encanto, mesmo aos gritos estridentes,
não provarão quaisquer aves de seu vinho!”

Assim Hanuman longo tempo demorou-se,
indo chamar seus amigos e parentes;
ali cresceram também seus descendentes
e incomparável a árvore tornou-se,
comportando oitenta mil macacos,
pelos frutos tão somente alimentados...
Mas não havia caroços germinados,
caídos mesmo nos mais férteis buracos!

Sendo uma árvore criada por magia,
ainda embora magnífica e copada,
mudas tivesse, seria a mata avassalada
tão somente pelas que ela transmitia.
É natural que o rei Rama não o queria,
pois da floresta a diversidade amava
e alegremente os animais caçava
para os festins que em seu castelo serviria!

O MACACO HERÓI IV

Verão e inverno as frutas deliciosas
alimentavam aquela vasta multidão,
sempre brotando conforme a precisão,
mais alastrando as ramadas já frondosas!
Passados séculos, porém, um certo dia,
entre muitos, nasceu outro macaquinho,
que estendeu mal o braço pequeninho,
soltando fruta na torrente que corria!

E foi descendo, até esse rio desembocar
no Ganges poderoso, o rio sagrado;
e assim o fruto foi sendo transportado,
até as praias de Benares alcançar...
Ora, ocorreu que nesse dia se banhava,
para das culpas se purificar,
esse rajá, com soldados a guardar
as margens; ninguém mais o acompanhava.

Pois viu flutuando o fruto saboroso,
dourado e suculento na sua mão!
Ao revirá-lo, percebeu que estava são
e num impulso, já o mordia, guloso!
Nunca provara seu régio paladar
qualquer fruto de puro e igual sabor;
após comê-lo, olhou a seu redor,
vendo se outros poderia ali encontrar.

Mas tudo em vão!  Enviou os seus soldados
de ambas margens ao longo pesquisar;
mas nem na orla nem na água pôde achar
quaisquer frutos igualmente delicados...
Então o rei ordenou a cem barqueiros
que o rio subissem, pois naturalmente,
descera o fruto ao longo da corrente
e mais acima se achariam companheiros!

O MACACO HERÓI V

Mas por mais que buscassem, nada achavam,
até que um deles, decerto o mais ousado,
enveredou pelo afluente encapelado:
lá estava a árvore, sem dúvida, que buscava!
Nunca outra vira de igual imensidade,
pontilhada por frutas incontáveis,
douradas sob o sol; mas inumeráveis
símios comiam-nas com real voracidade!

Voltou o barqueiro a informar o seu rajá,
que desconfiado, indagou: “Você comeu?”
“Não, Majestade!  Nada se desprendeu,
porém nas Índias árvore igual não há!...
Mandou o rei aprestar expedição,
mil e um barcos subindo o largo rio,
toda a tropa do rajá em poderio,
seu próprio barco era quase uma mansão!

Finalmente a alcançaram, já de noite,
após enfrentar do rio os mil perigos:
caracais, linces, crocodilos inimigos,
tribos selvagens em solitário acoite!...
E sob os ramos montaram acampamento:
mais que da noite, havia escuridão,
espessos galhos impedindo a transmissão
da luz solar de maior encantamento.

Assim, já se adiantara essa manhã,
quando em sua tenda o rajá se despertou,
com os guinchos dos macacos acordou,
logo receando que sua busca fosse vã,
pois nenhum fruto tombava sobre o chão,
os caroços e as cascas não brotavam,
só os dejetos dos macacos se espalhavam,
com nojo o rei dessa símia multidão!

O MACACO HERÓI VI

E quando a um galho pendido lançou mão,
veio um macaco e o fruto arrebatou!
Quis pegar outro e o animal o arranhou,
já assanhados os macacos com razão!...
E quando seus soldados escalavam
o tronco grosso ou os ramos repuxavam,
a um exército de monos enfrentavam
e os mais valentes para o chão precipitavam!

Mandou o rajá, na sua frustração,
que os soldados matassem os macacos,
que seus criados subissem com cem sacos,
colhendo os frutos para sua refeição!
Naturalmente, após muitos asseteados,
foram os macacos subindo para o alto,
caroços e galhos, porém, em sobressalto,
a lançar sobre os homens acampados!

Mas ai!  Para grande desgosto do rajá,
em cada galho que eles abandonavam,
logo os frutos encolhiam e murchavam:
para colhê-los meio algum não há!...
Declarou então o rei, no seu furor:
“Se eu não comer, não comerão também!
Matem todos os macacos que se veem
emporcalhando o ar com seu fedor!...”

Como era mágica, a árvore crescia,
mais para o alto abrigando a macacada;
mesmo que parte fosse sendo exterminada,
nenhum dos galhos a queda protegia
dos numerosos e valentes soldados,
quando no alto falseavam o seu pé!
Ramos se abriam, na verdade, até,
levando à morte os guerreiros e os criados!

O MACACO HERÓI VII

Mas mesmo assim, em sua valentia,
subiam os soldados e flechavam
alguns dos monos ou com lanças os matavam:
sempre algum velho ou filhote se perdia!
E junto a Hanuman se refugiaram:
“Não virá nos socorrer o bom rei Rama?
A seu lado combatemos em Ramayana!” (*)
“Não, no Svarya os gênios já se congregaram!”
(*) Poema heroico hindu; Svarya é mansão dos deuess.

“Mas então o que fazer nós poderemos?
Esses humanos são muito numerosos
e até os galhos da árvore, poderosos,
que se movem a fim de proteger-nos,
eles cortam!  Têm mais medo do seu rei
do que nutrem pela própria morte!
Quem nos pode salvar da triste sorte?”
Falou Hanuman: “Eu mesmo os salvarei!”

Por muitos séculos ele havia crescido
e se tornara em símio imenso e forte,
sua vasta idade não enfraquecera o porte...
Subiu ao mais alto da árvore, destemido!
E lá de cima, deu um pulo majestoso
para a copa que mais próxima se alçava!
Nenhum dos súditos, porém, o acompanhava,
sem terem força para o salto prodigioso!...

Mas Hanuman saltando prosseguiu,
até chegar a um vasto bambuzal,
varas cortando, sem lhe fazerem mal,
com os próprios dentes; e a tiras as reduziu.
Trançou com elas uma bem longa corda,
que prendeu num tronco grosso, com firmeza,
os rolos agarrando com destreza,
corda enrolando em cada árvore que aborda.

O MACACO HERÓI VIII

E enfim chegou à copa generosa,
em que o aguardavam amigos e parentes;
e segurando a ponta nos seus dentes,
cobriu o abismo numa curva portentosa!
Mas ai!  Ficara curto o cumprimento,
longa extensão desgastara no enroscar,
das outras árvores nos troncos a firmar:
por dois metros errara o julgamento!

Mas o salto completou, ao se agarrar
em um galho bem forte e suspirou;
de seus parentes o lamento o alertou:
não havia tempo para mais corda buscar!
Então amarrou a ponta na cintura
e no galho prendeu-se, firmemente:
“Usem minhas costas!” – ordenou à sua gente.
“Eu firmo a corda e por certo não lhes falho!”

Foram assim passando os seus amigos,
primeiro as fêmeas, com cada filhotinho,
depois os velhos, amparados com carinho,,
um a um enfrentando tais perigos!...
Mas Hanuman bem firme se mantinha:
todos subiam em suas costas e a corda,
rapidamente, cada qual aborda,
a sua cintura aperta o laço como vinha!...

Então vieram os machos, por sua vez,
naturalmente, muito mais pesados,
cruzando o abismo, todos apressados,
atrás deles os soldados em dura tês,
os companheiros mortos a vingar,
não querendo permitir que os escapassem;
talvez a corda também atravessassem,
outros da tribo dispostos a matar!

O MACACO HERÓI IX

Mas quando o último macaco atravessou,
Hanuman encontrava-se exaurido!
Soltou a corda, num oscilar perdido,
no galho apenas suas patas a firmar!
E quando ali chegaram os soldados,
percebendo o que havia sucedido,
vendo o macaco todo malferido,
qual prisioneiro o levaram, despeitados!

Mas em vão pelos ramos procuraram:
nem um só fruto puderam encontrar,
ao seu rajá o desaponto a confessar,
pois tão somente Hanuman lhe apresentaram.
Mas quando o rei escutou a inteira história,
sentiu-se profundamente comovido:
“É grande herói este bicho tão sofrido!
Merece vasta fama e eterna glória!”

E o próprio rei cuidou-lhe das feridas,
mas quase oitenta mil dos animais
haviam passado por suas costas; e fatais
eram as chagas nele produzidas!...
Mandou o rei enrolá-lo no seu manto
e o conduziram a Benares, em procissão;
ergueu-lhe pira para a santa cremação
e as carpideiras lhe derramaram pranto!

Lançadas as cinzas sobre o rio sagrado,
mandou o rajá um templo ali erigir,
consagrado ao macaco de existir
mais heroico que o de um leal soldado!
E até hoje esse templo se acha lá,
habitado por uma símia multidão,
de sacerdotes recebendo proteção,
cumprindo assim as ordens do rajá!...

EPÍLOGO

Serviu ao rei esse fato de lição,
dando pensão para as viúvas dos soldados
que nessa luta foram massacrados
pelos macacos, a proteger sua possessão!
E governou sabiamente doravante,
sendo lembrado como um grande soberano!
Cumpriu-se assim de Rama o justo plano,
a sua magia ancestral e triunfante!...

Porém a árvore deu frutos novamente,
tão logo os hóspedes macacos retornaram.
Por muitos séculos outros homens a buscaram,
sem encontrar seu lugar, infelizmente!
Porém dormindo na orla consagrada
do rio Ganges, junto àquela confluência
com o outro rio; e sonhando com paciência,
dizem yoguis ainda escutar a macacada!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


sexta-feira, 27 de março de 2015







FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA
(Conto folclórico português  recolhido por Viriato Padilha em Histórias do Arco da Velha,
versão poética e adaptação de  William Lagos, 20 mar 15)

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA I

Em remota região de Portugal
vivia uma viúva pobre e honrada,
por duas filhas sempre acompanhada,
que educara no bem e na moral.
Em seu jardim plantara duas roseiras,
de rosas brancas uma e outra vermelhas,
que davam flores mimosas em corbelhas,
já mais frondosas que muitas trepadeiras...

As duas meninas pareciam também flores:
tinha uma a pele de um límpido brancor,
a outra os cabelos rubros, cor de amor,
e a consolavam de seus dissabores.
Apelidou à primeira “Flor de Neve”,
de “Rosa Rubra” se referia à irmã,
ambas bonitas, mas sem vaidade vã,
nas quais botar defeitos não se atreve...

Flor de Neve tinha tendência mais caseira,
com frequência sua mãe a ajudar,
enquanto Rosa Rubra saía a procurar
frutas e nozes, em busca aventureira.
Mas as duas eram sempre muito unidas;
de fato, a mãe tinha pomar e horta,
mas para as três alimento não comporta
e a floresta protegia assim suas vidas...

As duas meninas com frequência iam pescar,
sem se animarem a sair à caça;
armas não tinham e na mente nem lhes passa
matar coelhinhos para se alimentar,
mesmo a pedradas; era gentil seu coração
e por isso os animais eram amigos,
sem que enfrentassem do mato tais perigos,
bem mais causados por cobiça e ambição!

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA II

Sem dúvida, era floresta bem bravia,
dos povoados e caminhos apartada;
nenhuma só expedição vinha à caçada
e toda a fauna mansa persistia
e as duas irmãs, que não viam ninguém mais,
assim se amavam muito profundamente
e Flor de Neve afirmava, mui frequente:
“Não nos iremos separar jamais!...”

Ao que Rosa Rubra respondia:
“Amar-nos-emos até o fim da vida!”
Enquanto a mãe, já por tristezas prevenida,
confirmava tais frases e insistia:
“Não vá ao bosque nenhuma sozinha!
Mesmo por que colher mais poderão;
mais alimento para nós trarão
que caberia em uma só cestinha!...”

Mas não sabiam é que um encantamento
firmemente essa floresta protegia;
havia um Mago, que nela prendia
seus desafetos, terrível em portento!
Ele mesmo habitava em um carvalho,
que por dentro revelava ser castelo;
houvera dois príncipes no palácio belo
e a esses encantara “em sino e malho”!...

Mas os próprios animais as protegiam,
pois muitas vezes comiam de sua mão;
também os tinham sob sua proteção,
levando ao ninho os filhotes que caíam,
ajudando os bichinhos que sofriam,
chegando até a auxiliar certas serpentes
a retirar, em atitudes surpreendentes,
a pele antiga de que se despiam!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA III

Destarte, caso a noite as surpreendesse
e para caminhar ficasse escuro,
deitavam em musgo, defendidas do chão duro,
a conversar até que uma adormecesse;
e então a sua irmãzinha suspirava,
fechando os olhos, para o sono conciliar;
só a madrugada as vinha despertar:
raio de luz que nos olhos lhes tocava!...

Mas certas vezes, quando estava escuro,
um rapaz aparecia, resplendente:
não lhes falava, mas impedia a frente,
um aviso a lhes mostrar no rosto puro;
ao se acordarem, após a noite inteira,
descobriam que o caminho haviam errado,
de precipício ou de urzal se aproximado (*)
e a tal visão assim as protegera!...
(*) Renque de espinheiros.

Dizia a mãe, depois de as interrogar,
ao ver que o tal rapaz desvanecia,
na ingenuidade que ainda a protegia:
“É o Anjo da Guarda, do perigo a avisar!”
Mais de uma vez tal fato acontecera
e as irmãs discutiam entre si
se o mesmo rapaz surgira ali
ou se era outro que então as protegera!

Margarida, sua mãe, contava histórias
sobre castelos, mais príncipes encantados;
já as surpreendendo os anos desvairados,
cochichavam fantasias transitórias:
que um dia tais príncipes viriam
e as levariam para seus castelos,
em pleno amor passando os anos belos,
mas logo após, ambas se consternariam!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA IV

“Mas se os castelos ficarem bem distantes
e não pudermos mais nos encontrar?...”
Só de pensar, começavam a chorar,
mas logo estavam alegres como dantes...
Certa noite, as três junto à lareira,
com vários peixes a ferver no caldeirão,
ouviram batidas à porta, sensação
que escutavam, quiçá, por vez primeira!

Quem mal não tem, mal tampouco pensa.
Disse-lhes a mãe: “Decerto, é um viajante
que perdeu seu caminho e, neste instante,
busca um abrigo contra a neve extensa!”
Não que nevasse demasiado por ali,
que a grande copa das árvores o impedia,
mas já ao redor da casinha reluzia
um manto branco e claro de organdi...

Flor de Neve foi logo abrir a porta,
sem ao menos segurar algum bastão,
que armas não tinham para sua proteção,
levando um susto que o respirar lhe corta!...
Enfiou um Urso sua cabeça castanha,
tão depressa quanto achou uma abertura!
E nesse instante de súbita loucura,
as três gritaram de emoção tamanha!...

Porém o Urso falou-lhes com voz mansa:
“Nada temam, porque não lhes farei mal;
só preciso me aquecer do vendaval:
não sinto um frio assim desde criança!...”
Ainda espantada, disse Margarida:
“Aproxime-se do fogo, Urso amigo,
poderá fazer sua refeição comigo,
que muita carne de peixe foi cozida!...”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA V

O pobre Urso aceitou, agradecido,
uma das patas a sustentar o prato,
com a outra comendo, no maior recato,
por sua boa acolhida comovido;
as três perderam bem depressa o medo
e mesmo as jovens começaram a acariciar
o longo pelo castanho e a trabalhar,
tufos de pelo a retirar de seu enredo...

Todas as noites ele retornava,
trazendo peixes ou cabaças com mel,
transformando a choupana em seu quartel:
nenhuma delas mais dele se arreceava
e antes de dormir até brincavam:
montavam nele e lhe pediam cambalhotas,
todas três rindo, igual que três idiotas
e na maior naturalidade, conversavam...

“Mas por que nunca antes o encontramos?”
“Ora, eu sempre de longe as observava;
eram pequenas, mas sempre eu as cuidava...
Algum mal lhes sucedeu por tantos anos?...”
Mas se os brinquedos acaso o machucassem,
“Não matem o seu noivo!” – ele dizia.
A nenhuma delas o chiste surpreendia,
sem que a sério de modo algum o tomassem.

Mas quando retornou a primavera,
suas visitas começaram a escassear
e finalmente, ele acabou por informar:
“Não se cansem no verão à minha espera;
tenho afazeres em torno da floresta
e só de longe as acompanharei;
não tenham dúvidas de que as protegerei:
virei no outono e então faremos uma festa!...”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VI

Tempos depois, já alto ia o verão,
colhiam as duas frutos e gravetos,
a percorrerem os cantos mais secretos,
e depararam com enrugado Anão,
sua barba branca de enorme comprimento,
que se arrastaria mesmo pelo chão,
presa a uma fenda por forte pressão,
sem conseguir libertar-se do tormento!

Quando ele as viu, saiu logo gritando:
“O que esperam para me ajudar?
Não estão vendo que não me posso libertar?”
Foram as duas então se aproximando.
“Como sua barba ficou presa assim?”
“Não interessa, meninas curiosas!
Cortava lenha, suas preguiçosas!
Saltou uma cunha e me prendeu, enfim!”

Elas acharam estranha a explicação,
mas bem depressa tentaram ajudá-lo.
Saiu uma cobra coleando pelo valo
e as duas recuaram, por pura precaução;
muito embora a outras cobras ajudassem,
essa não era das duas conhecida:
extremamente grossa e bem comprida,
fortes anéis, facilmente as esmagariam!

“Qual é o problema?  Não veem que foi embora?
Venham minha barba desemaranhar!...”
As duas jovens procuraram se esforçar,
mas a ponta não soltava nessa hora
e o Anão continuava a reclamar:
“A serpente vai levar o meu tesouro!
Prendeu-me aqui para roubar meu ouro!
Vocês precisam mais depressa me soltar!”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VII

E por não ver qualquer outra alternativa,
Flor de Neve pegou uma faquinha,
com que colhia as uvas da gavinha,
cortando a ponta da barba assim cativa.
Ao invés de agradecer, pôs-se a xingar:
“Por que minha pobre barba mutilaram?
Que grosseria que me apresentaram!
Que o diabo as possa castigar!...”

E sem esforço, o tronco a levantar,
tirou um saco que se achava embaixo
e saiu resmungando em tom mais baixo:
muito em breve já não o podiam escutar!
Mas sendo ambas de bom coração,
as duas meninas começaram a sorrir
e logo após, já riam a bom rir,
do inesperado de tal ingratidão!...

Daí a semanas, foram as duas pescar
e novamente encontraram o Anão,
seus pés ficados junto ao ribeirão,
parecendo que ali queria se jogar!...
“Senhor Anão, pretende hoje ir nadar?”
“Menina estúpida, não percebe que essa linha
está enroscada em minha pobre barbinha
e que esse peixe pretende me afogar...?”

Rosa Rubra ao Anão firme segurou
e Flor de Neve o tentava libertar,
um enorme peixe das águas a assomar,
que ainda mais forte pela linha puxou!
Não teve jeito!   Flor de Neve sua faquinha
usou de novo para cortar a linha
e mais a ponta da barba que esta tinha
prendido firme, qual venenosa vinha!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VIII

“Mas o que fizeram, suas rudes criaturas?
Perdem meu anzol e não sabem mais fazer
que a minha pobre barba “encurtecer”?
Deus as castigue, meninas impuras!...”
Saltou após o peixe, dentro da água
e retornou com um saco de diamantes,
pelos costuras cintilações brilhantes!...
E lá se foi, resmoneando na sua mágoa!...

As duas garotas, já quase adolescentes,
se encararam e só puderam gargalhar,
na ingratidão do Anão podendo achar
tão só motivos para risos complacentes.
“Mas como é rico o tal do Anãozinho!”
Comentou Rosa Rubra nesse instante.
“Ouro num saco e outro com diamante!
Mas por que então não se livrou sozinho?...”

Era um enigma, decerto, que olvidaram,
até passar-se mais de uma semana
e Rosa Rubra para a irmã exclama:
“É o Anão!” – quando gritos escutaram.
De fato, uma águia o segurara,
pelos fios de sua barba já mais curta!
Aos berros, a criatura quase surta:
“Minhas pérolas não dou, vil águia avara!”

Viram que a águia e o Anão assim lutavam
por outro saco, cheio até bastante
e logo as duas perceberam, nesse instante,
que bem depressa no ar já se elevavam!
Foram correndo, para de novo o socorrer,
a barba nas garras de novo emaranhada;
por Flor de Neve foi rápido aparada:
caiu o Anão, sem do saco se esquecer!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA IX

Partiu a águia guinchando em revoada,
deixando o Anão abraçadinho ao saco:
“Desgraçada!   Você rasgou o meu casaco
e outra vez minha barbinha foi cortada!”
Saiu o Anão, resmungando os impropérios
e as duas já nem mais acharam graça,
acostumadas a escutar tanta pirraça,
pondo de lado o Anão e seus mistérios!

Mas quarta vez, contudo, o encontraram,
a barba curta a branquejar no rosto,
que as encarou, supremo o seu desgosto:
“São meus tesouros que vocês buscaram?”
E começou a pegar pedras do chão
e a atirar-lhes com certeira pontaria!
Muito em breve a alguma delas feriria,
em sua raiva iracunda de paixão!...

Mas neste ponto, apareceu um vulto enorme,
que se lançou sobre ele e o agarrou!
Louco de medo, o mau Anão gritou:
“Terrível Urso, criatura disforme,
não me mate, eu lhe darei o meu tesouro!”
Mas viram o Urso, com patada, o derrubar;
no chão caiu, quase sem respirar,
já moribundo a parecer nesse desdouro!

Flor de Neve e Rosa Rubra se assustaram,
ao ver o Urso debruçado sobre o Anão.
“Senhor Urso, tenha dele compaixão,
Disse Rosa Rubra, tão logo ali chegaram.
“Não o quero matar, só a barba quero
de seu rosto totalmente retirar...
Tem sua faquinha para me emprestar?”
Flor de Neve atendeu-o, bem ligeiro...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA X

Com cuidado, para não o machucar,
raspou-lhe os pelos, delicadamente;
o Anão abriu os olhos, já consciente,
começando a gemer e a suspirar...
Foi Rosa Rubra depressa o ajudar,
passando óleo no rosto escanhoado.
Um pouco d’água a oferecer ao despertado,
Cujo rosto começou logo a remoçar!...

A olhos vistos, principiou a se esticar,
logo assumindo grandes proporções,
seu rosto a mostrar belas feições
e ricas vestes de repente a ostentar!
Tomou a faquinha e os pelos foi raspar
do grande Urso, com igual cuidado;
tão logo o rosto ficou todo barbeado,
também o viram igualmente se mudar!

E logo os dois assumiram forma humana,
para as garotas a estender as mãos:
“Senhoras, nós somos dois irmãos,
encantados de maneira desumana!...
Só duas jovens nos podiam desencantar,
demonstrando verdadeira compaixão
por animal ou pela feia ingratidão...
Porém o Mago precisamos derrotar!...”

“Somos dois príncipes que, por pura inveja,
fomos lançados nesta condição;
salvou nossos tesouros meu irmão,
mas muitas vezes perseguição se enseja,
pois eram estes que o feiticeiro desejava,
que numa árvore transformou nosso castelo;
contudo agora, nos será fácil vencê-lo,
pelo carinho que cada uma demonstrava!”

E foram os quatro até o velho carvalho
em que o velho Mago se escondia,
mas o bruxedo agora se partia
e o tronco se abriu, num grande talho!
Saiu o Mago, a expressão desafiante,
tentando impor a sua feitiçaria,
mas a presença das garotas o impedia:
sua virtude era pura e triunfante!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA XI

Com uma praga, transmutou-se na serpente,
mas a faquinha do que fora um Urso,
contrafeitiço tomando assim o curso,
transformou-se numa espada reluzente
e com um só golpe, lhe decepou a cabeça!
Virou-se, então, naquele peixe enorme,
ar respirando, por ser monstro disforme;
mas o outro príncipe atacou-o, bem depressa!

Brandiu sobre ele o saco de diamantes,
que reluziram qual linda cascata,
inundando de luz a inteira mata;
e o peixe encolheu-se, em dois instantes!
Terceira vez, em águia transformou-se,
sem os dois príncipes querer mais enfrentar;
abriu as asas e lançou-se pelo ar:
por entre as nuvens para longe alçou-se!

Então o carvalho também se transmutou,
outra vez retornando a ser castelo;
cada príncipe ajoelhou-se, em seu desvelo,
e pela mão de uma donzela suplicou!...
Flor de Neve aceitou o que fora Urso,
Rosa Rubra o que fora antes o Anão;
a cada príncipe uma delas deu a mão
e assim a história retomou seu curso!...

Ao mesmo tempo, desfez-se o encantamento
que impedia a entrada na floresta;
não só os criados retornaram nesta,
porém soldados em breve momento!...
Tinham sido em animais e aves encantados,
para servir os dois casais se apresentaram
e muitos deles às jovens afirmaram
que elas os haviam ajudado no passado!

EPÍLOGO

Logo após celebrado o casamento,
o palácio pelo meio repartiram
e as duas irmãs separadas não se viram,
igual receavam em seu pressentimento!
Durante a festa, surgiu um viandante,
magro e pálido, contudo ainda forte:
era seu pai, que por mágica sorte,
de sua prisão fora solto nesse instante!

Ali ficara após longa batalha,
um prisioneiro com os demais soldados
e ao verem pai e mãe ora abraçados
para sua felicidade nada falha!
Vieram os pais morar no seu castelo:
o retornado tornou-se o Intendente,
sua mãe das fiandeiras a Gerente:
todos se alegram quando o final é belo!

As duas roseiras continuaram na choupana,
mas Margarida fez duas mudas delas
e as plantou em vasinhos nas janelas,
vermelha uma, como rubra chama,
e branca a outra como a pura neve,
cada uma delas dando flores diariamente...
Tenho certeza que sequer o mais descrente
botar defeito nesta história não se atreve!

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com