sexta-feira, 30 de março de 2018





A BRUXINHA DA PRIMAVERA &+
Novas séries de William Lagos.

A BRUXINHA DA PRIMAVERA -- 2/1/2018
AMORES ESQUECIDOS -- 3/1/2018
ÁGUAS CALMAS -- 4/1/2018
MUITOS AMIGOS -- 5/1/2018
SENHOR DE TUDO -- 6/1/2018
O GEMIDO DA CARROÇA -- 7/1/2018

A BRUXINHA DA PRIMAVERA I -- 2 JAN 2018
(Traduzido e adaptado de um conto de Ray Bradbury)
Versão Poética de William Lagos

Sob a luz das estrelas Cecy ondulava,
sobre campos e valados invisível,
igual que as brisas da meiga primavera,
tal como o trevo que perfume exala;
por entre as asas de uma pomba penetrava,
farfalhava como um ramo inexaurível,
o rugido a partilhar de alguma fera,
era a hortelã que ante a margem trescala
e se inseria entre os pelos de algum cão,
latindo alegre, igual que em oração!...

Os musgos todos da terra percorria
e como um grilo brilhante cricrilava,
era a cigarra estridulando num portão
e ainda coaxava pela boca de uma rã!...
Em cada ser do entardecer se intrometia
e no crepúsculo ainda mais dançava,
estranho impulso a lhe tanger o coração,
percorrendo dos esquilos cauda e lã...
Mais do que nunca executava tais afanos,
pois completava seus dezessete anos...

Hoje eu desejo poder me apaixonar!
-- murmurava Cecy para si mesma...
Dissera coisa igual no desjejum,
consternados, seus pais a lhe falar:
"Paciência", seu nome a pronunciar,
Cecy seu apelido, em breve resma...
"você não pode apaixonar-se por nenhum
desses rapazes que pode contemplar!
São humanos como nós, mas diferentes,
casar só pode com nossos parentes!..."

"Caso o fizer, perderá os seus poderes
e cedo ou tarde irão os dois se separar,
mas não irá recobrar a faculdade
de projetar sua mente pela noite...
Não entenderão se de dia adormeceres
ou que de noite te queiras levantar.
e muito menos a tua imobilidade,
que te permite viajar como um açoite!
Pensarão ser outra coisa, ser doença,
padres e médicos trazendo à tua presença!"

A BRUXINHA DA PRIMAVERA II

"Pior ainda, ficarão bem desconfiados
caso lhes contes, até terão inveja,
sem compreender que não possas partilhar,
uma vampira afinal te julgarão!
Pensa bem antes de teres namorados,
teu poder se perderá em quem te beija,
mas sem que possa tal poder roubar,
igual que bruxa te considerarão,
sem entender que nós apenas projetamos
as nossas mentes e com elas nós voamos..."

"Pensa apenas no trabalho de teu pai:
numa cidade pouco seríamos notados,
porém de dia não se consegue adormecer;
então para este povoado nos mudamos
e como vigia noturno o pobre vai,
seis períodos a cada noite esperdiçados,
sem poder se dedicar a seu prazer,
enquanto nós com alegria passeamos!..."
"Parentes meus se tornaram escritores,
porém eu nunca partilhei desses pendores..."

"Mesmo assim, ainda preciso, algumas vezes,
durante o dia, assistir a uma reunião
ou acompanhar os companheiros a algum bar,
para que a nossa condição não dê na vista..."
"E se consegues atravessar os meses
Prudência, sem qualquer perturbação,
é de manhã que a comida vou comprar...
E se a um namoro com alguém você insista,
horas noturnas terá de sacrificar,
sem de dia poder de fato descansar!"

Cecy foi forçada a concordar
e prometeu desistir de tal ideia,
mas em seu quarto, um perfuminho colocou
ao se deitar em seu bonito leito,
alguns minutos limitando-se a pensa:
Posso habitar de lobos a alcateia
e nas águas de um riacho inteira estou,
como a poeira de um caminho até me ajeito,
se quiser, passo o inverno sob a terra
ou na caverna que algum urso encerra...

A BRUXINHA DA PRIMAVERA III

Mas que interesse nos meus primos tenho?
Com todos já passeei e não gostei,
mesmo os menores são uns pretensiosos!...
Talvez encontre algum primo europeu,
mas hoje faço aniversário e é meu empenho
me apaixonar - e me apaixonarei!...
Proibiram-me habitar nos vagarosos
seres humanos comuns... Porém se eu
só por mim não me posso apaixonar,
como outra jovem eu irei me enamorar!

Assim pensando, fechou os olhos e partiu.
Nem sei por que meus pais me proibiram
de preencher qualquer gente comum!
Dizem só que causarei sua desconfiança...
Mas quem habito, de fato, não me viu!...
Assim, seus olhos da mente persistiram,
sem avistar a ser humano algum
em que pudesse penetrar com esperança,
até avistar, ainda a noite no começo,
bela jovem, sem sequer um adereço...

Teria, talvez, uns dezenove anos,
robusta e forte e na verdade bela,
com um balde a tirar água do poço
e a cantar enquanto erguia a corda...
Cecy tombou, folhinha em verdes panos,
dentro do poço e passou pela donzela;
dentre as gotas de água, num retoço,
ficou dançando até passar a borda
daquele balde que a moça suspendia
e logo um gole de água a outra bebia!

Com a água, Cecy nela penetrou
e a seguir, por suas vistas ela olhava:
por detrás da testa lisa e amorenada
seu cérebro era uma rosa adormecida...
Por suas narinas a água farejou,
pelos ouvidos os ruídos escutava,
seu coração numa calma compassada,
trauteando a língua canção desconhecida...
E num impulso, se atreveu a perguntar:
"Sabes quem te está agora a acompanhar?"

A BRUXINHA DA PRIMAVERA IV

A garota sentiu um sobressalto;
olhou em volta: "Mas quem se encontra aqui?"
"Somente o vento" -- Cecy lhe retorquiu.
"Foi só o vento," disse a moça, envergonhada.
Mas por que me proibiram este assalto?
Os membros dela são os mesmos que em mim vi!
Na boca um gosto de sidra ela sentiu,
a cabeleira clara numa touca conservada,
o corpo esbelto que se movia, sinuoso,
sua pele lisa como o musgo mais formoso...

"Gosto de estar aqui!" -- disse a bruxinha.
"Mas o que é isso?" -- interrogou a moça.
"Como é teu nome?" -- Cecy lhe perguntou.
"Ann Leary... Mas por que devo dizer
o meu nome em voz alta?  Estou sozinha!"
"Ann, Ann," falou Cecy, em tom de troça.
"Vais te apaixonar daqui a pouco," -- lhe afirmou.
"Mas o que é isso?  O que está a acontecer?"
Como em resposta, apareceu na estrada
um carroção, que suspendeu a disparada.

Um rapaz forte, alto e moreno,
puxou as rédeas e assim fez estacar
seus dois cavalos robustos de parelha.
Vistos de baixo, seus braços pareciam
ter músculos imensos.  Num aceno,
da boleia ele pulou, sem vacilar:
"Ann, querida!  Seu rosto o sol espelha!"
"Ora, Tom, és tu..." "Quais mais seriam?"
"Eu não desejo mais falar contigo!"
"Não, Ann!" -- disse Cecy, do seu abrigo.

Ann parou de repente, olhou ao redor,
para as colinas e as primeiras estrelinhas,
perdeu o controle do balde e derramou
parte da água sobre os próprios pés.
Contemplou o rapaz com algum temor:
"Olha o que fizeste! Molhei minhas sandalinhas!"
Tom soltou uma risada e se ajoelhou.
"Olha o que eu vou fazer!"  Com rapapés,
tirou um lenço do bolso e começou
a lhe secar os pés.  Mas Ann recuou...

A BRUXINHA DA PRIMAVERA V

"Não quero!  Não me toques!  Vai embora!"
Mas o rapaz em sua tarefa prosseguiu...
Cecy lhe viu o formato da cabeça,
a largura dos ombros e o perfil
e controlou-lhe a língua nessa hora,
e a dizer "Muito obrigada!" ela insistiu.
"Da educação é bom que não se esqueça..."
brincou o rapaz, com seu riso varonil.
Não fora Ann a falar dessa maneira,
porém Cecy, a controlar-lhe a fala inteira...

"Eu já antes te falei que não te quero!"
"Calma, Ann, hoje precisas ser gentil!..."
Levou-lhe a mão a passar por sobre a testa
do rapaz...  Mas estou ficando louca? --
pensou Ann.  "De ti mais nada espero,
sem dúvida... Foi só um gesto feminil...
Mas, então?  Afinal, vamos à festa?"
"Ah, não sei!" -- já dominava a própria boca.
"Por que não vais com essa tua namorada?"
"Qualquer outra já é coisa ultrapassada!"

"Foi só a ti que eu hoje convidei!..."
"Ah, sim?  E a Martha, a Thereza, a Micaela?"
"São minhas amigas," -- disse Tom, "e nada mais."
"Pois eu não sou sequer amiga tua!"
"Vamos, Ann... Olha, até me preparei...
Só alguma poeira me subiu... A noite é bela!
Vamos ao baile!  Vai ser lindo por demais!..."
"Não!" -- disse Ann.  "Vai tu, põe-te na rua!"
"Ah, sim!" -- disse Cecy. "Eu quero ir!
Quero ir ao baile, não podes me impedir!"

"Ah, já nem sei..." -- Ann balbuciou, confusa.
"Eu quero!  Eu quero!  Eu quero hoje dançar
a noite inteira, meus pais nunca me deixaram,
só posso ir se estiver dentro de ti!,,,"
"Vamos lá!  Não inventa alguma escusa..."
"Está bem.  Então vou te acompanhar...
Sei lá porquê.  Minhas ideias se mudaram..."
"Então vai te arrumar... te espero aqui..."
"Tudo bem, vou lá dentro de banhar..."
"Fico aqui fora para te esperar..."

A BRUXINHA DA PRIMAVERA VI

"Mamãe..." -- falou Ann. "Mudei de ideia..."
"Mas por que?  Vocês não tinham brigado?"
"Não querias nunca mais ver o rapaz?"
"Ah, não sei... Deixei ele lá fora..."
"É primavera!" -- disse Cecy de sua soteia.
"É primavera," -- disse Ann.  "Está explicado."
E foi banhar-se. Então falou: "é bem capaz
que outro galã me agrade nessa hora!..."
Durante o banho, Cecy se distraiu
e pela espuma do sabão se imiscuiu...

De repente, sentiu que a jovem lhe escapava
e bem depressa para ela retornou.
"Mas quem és tu?"  Ann agora percebeu.
"Sou uma garota de dezessete anos..."
"Mas eras tu que minha língua controlava!
Não fui eu!  Foste tu quem aceitou!...
"É verdade, mas bem que te valeu,
é um lindo rapaz, sem mais enganos..."
"Mas eu não o quero!  Já fomos namorados
e me traiu mais de uma vez, sem mais cuidados!"

"Estou emprestando meu corpo à feiticeira
da primavera!" -- disse Ann, cheia de medo.
"Que mal vai ela esta noite me causar...?"
"Não te farei mal algum!  Eu sou gentil.
Mas deves ir à dança e ser brejeira,
deste prazer esta noite jamais cedo,
por mim podes até trocar de par,
só não escolhe qualquer matuto vil!..."
"Mas sai agora, enquanto o rosto pinto...
Quero ao menos saber como me sinto!"

Por um momento, Cecy se retirou
e de imediato Ann sua mente endureceu:
"Vai-te embora!  Não deixo que entres mais!"
Entrou a Mãe.  "Tom ainda está lá fora!
Com quem você agora mesmo conversou?"
"Ele que vá embora!  Boas razões me deu!
Que vá embora para retornar jamais!..."
Porém Cecy a controlou mais do que outrora:
"Não podes fazer isso com o rapaz
e é preciso que ao baile hoje tu vás!..."

A BRUXINHA DA PRIMAVERA VII

"Afinal, digo o que para o rapaz?"
"Que vá embora!   Não, que me espere!
Eu já nem sei!..." "Eu que não vou me intrometer...
Queres ajuda para prender o colar?..."
"Não, isso a gente mesmo faz..."
Gritou Cecy, sem que a expressão se altere.
"A gente?  Não és tu que o vais prender?"
"Tom é ótimo rapaz!  Vocês vão se arranjar,"
A pobre Ann já começou a chorar...
"Não faças isso!  A pintura vais borrar!..."

Ann pôs o xale sobre seu vestido.
"Não sei por que você quer me obrigar!"
"Eu te prometo não fazer nada de mal,
eu só desejo ir ao baile desta vez..."
Saiu Ann para fora com um gemido.
Disse-lhe o Pai: "Vê se não vais maltratar
o pobre Tom, igual que no Carnaval!"
"Foi culpa dele! Já esqueceu o que me fez?
Boa noite, então! Só vou voltar bem tarde!"
"Confio em Tom para que bem te guarde!"

Falaram pouco ao longo dessa estrada.
Tom respeitou-lhe o silêncio com cuidado. 
Já quase lá, falou: "Eu te agradeço,
esta noite, que para mim já era especial,
por tua presença ficou mais aprimorada..."
Ann o mirou de um jeito desconfiado
e sua ajuda recusou: "Eu mesma desço..."
Viu no salão um brilho espectral,
mas estava cheio de seus conhecidos,
ela e seu par estavam bem vestidos...

E assim dançaram por horas a fio,
sem Ann querer sequer trocar de par;
Cecy sentia-se no Sétimo Céu,
a alegre música a fazia rodopiar,
olhos brilhantes como luzes de pavio...
Cada ritmo Ann sabia dominar,
em longo vórtice, como um fogaréu,
porém bailava quase sem falar.
"Estás estranha..." -- Tom lhe comentou.
"Sim, estou estranha.  Não sei quê me pegou."

A BRUXINHA DA PRIMAVERA VIII

"Eu não queria vir aqui, entendes?"
"Tenho hoje uma estranha sensação,
vejo teus olhos e mal te reconheço..."
"É a mim que vês!" -- lhe projetou Cecy.
"Não sei de fato se tu me compreendes..."
"Por que vieste. se não querias, então?"
"Eu que quis vir, se bem mal te conheço!"
"Foi a Bruxa da Primavera que me fez vir aqui!
Nem sei por que estas palavras me saíram!"
"O que importa é o que nos permitiram..."

"Fui eu que vim, Tom, hoje sou eu!"
falou Cecy.  "E eu já me apaixonei!"
Mas foi a voz de Ann que o pronunciou...
"Querida Ann, sabe o que está dizendo?"
"Não sei, não sei!  Não sei o que me deu!"
Mas eu sei! -- pensou Cecy.  Eu que falei!
Prosseguiu Tom: "Meu coração te amou,
anos atrás e não o estavas esquecendo,
mas tenho medo outra vez de me iludir...
Irás de novo meu coração partir...?"

"Mas foste tu, malvado, que partiste o meu!"
"Éramos jovens, eu não agi por mal...
Foi tão só uma tolice, a tentação,
não sabes quanto eu já me arrependi!..."
E sem parar de dançar, o par desceu
pela escadinha, em passo natural
e Tom pediu-lhe então a permissão
para beijá-la e um beijo deu-se ali...
Era Cecy correspondendo ao beijo,
algo tão novo, mas louca de desejo!

Mas, de repente, não era mais Cecy,
mas Ann somente que ao beijo respondia,
suas faces encarnadas de paixão...
Cecy sentiu-se um tanto deslocada:
"Para com isso!  Não é o lugar aqui!
Vamos logo para casa!" -- ela pedia...
Tom aquiesceu.  Tomou-a pela mão
e até a caleça levou sua namorada...
Em silêncio, os dois voltaram para casa,
seus pensamentos ocultos nessa vaza...

A BRUXINHA DA PRIMAVERA IX

Quando chegaram, afinal, junto ao portão,
"Ann," -- disse Tom -- "preciso te dizer
duas coisas.  Primeiro, eu me alistei
e vou passar dois anos no quartel.
Fica bem longe daqui a guarnição..."
"Foi só por isso que insististe por me ver?"
"Não.  Uma segunda coisa eu te direi:
Esse teu beijo foi doce como o mel,
deixas que agora te beije novamente,,?"
Sim! -- pensou Cecy. Ann disse: "Sim!", contente.

E novamente foi um beijo bem sincero...
Mais uma vez, Cecy viu-se de fora!
"Era essa a outra coisa que querias?"
"Não," disse Tom. "Queres casar comigo?
"Em cada folga eu voltarei."  "Te espero,
mas eu não quero que te vás embora!"
"Agora é tarde...  Porém, me escreverias?"
"Toda a semana!"  "E eu estarei contigo,
mesmo estando lá longe no quartel...
Eu também te escreverei, Lábios de Mel!"

"Virei te visitar quando puder
e o meu primeiro soldo empregarei
para comprar o par das alianças...
Posso contar com o noivado, então?"
"Claro que sim.  Será o que Deus quiser..."
"Até a porta eu te acompanharei;
de um novo beijo terei as esperanças..."
Porém Cecy sentiu partir seu coração:
Mas não é ela!  Eu que me apaixonei,
amado Tom!... Eu não te perderei!...

E num, impulso, para Ann falou:
"Diz a ele que vá me visitar!
"Escreve num papel meu endereço!
Ann se percebeu forçada a obedecer
e para o namorado, murmurou:
"Quero primeiro minha bolsa segurar...
Tenho uma amiga do maior apreço...
Seu endereço vou agora te escrever..."
Logo rasgou um pedaço de papel:
Vai visitá-la numa folga do quartel!"

A BRUXINHA DA PRIMAVERA X

"Está bem, se for essa a tua vontade...
Cecy Elliot -- 36, Alameda do Pinheiro...
Mas preferia visitar a ti somente,
pois não terei muitas folgas no quartel..."
Experimentando qualquer perplexidade,
Ann pespegou-lhe um beijo derradeiro.
Cecy nesse último estando bem presente:
"Não vás perder esse pedaço de papel!"
"Não vou perder," disse Tom, embaraçado.
"Mas por que isso?" ­-- pensava, desconfiado.

Passou-se o tempo.  Voltou sempre que podia
e realmente comprou-lhe as alianças
e os dois noivaram, cheios de alegria;
cumprido o prazo, mais tarde se casaram.
Mas nessa noite, já Cecy se despedia,
para casa a levar falsas esperanças...
Porem Tom já depressa se esquecia:
deixou o papel num bolso e então lavaram
as suas calças e o endereço se apagou...
Só uma vez que outra ele lembrou...

Anos depois, já um casal feliz,
Tom e Ann daquela noite recordavam:
"Estavas tão estranha nessa dança..."
"A Bruxa da Primavera me levou...
Mas lá no fundo, fui eu mesma que quis,
bem diferente das coisas que falavam,
foi a Bruxinha que causou nossa bonança...
Quem sabe ela também se apaixonou?"
E os dois riram, a seus filhos contemplando,
sem sequer desse endereço mais lembrando!

E o que ocorreu com a pobrezinha da Cecy?
À própria custa, aprendeu dura lição:
por que não devia habitar seres humanos,
maldade alguma havendo na sua gente...
Seu coração rejuntou daqui e dali
e eventualmente até aceitou, sem emoção,
casar com um de seus primos lituanos,
para uma tépida relação benevolente...
De vez em quando, de Tom até esquecia,
quando em seus voos pela noite se perdia!...



AMORES ESQUECIDOS I -- 3/1/2018

"Só se esquece de um amor por outro amor",
diz o ditado, ao contrário de Neruda,
que a tal primeiro amor em verso escuda,
como perpétuo a conservar o seu calor...

Do mesmo modo, a infância tem odor
que permanece nas narinas, uma aguda
memória, a que qualquer perfume ajuda
e quanta coisa se ajunta a tal olor!...

Faz o perfume recordar qualquer visão,
a própria luz em anterior coloração,
as sensações que então nos trouxe o frio,

o sabor nas papilas, em que estão,
mais do que doces, o azedo em desafio
e de uma vespa, a picada de ocasião!

AMORES ESQUECIDOS II

É impossível se olvidar as sensações
que a memória iniciaram nesse então;
tábula rasa nesse tempo o coração,
fundos os cofres dos iniciais pendões.

Até recordas do perfume dos balões
que ante teus olhos te encheram de paixão;
fica a lembrança de tal coloração,
fica o estouro gravado nos pulmões!

Ou daquele brinquedinho de magia,
que por detrás de uma cadeira se escondia,
nos meandros a que a corda o conduzia!

Ou aquele doce que na língua derretia,
do rádio ou algum piano a melodia,
ou os beijos que nas faces se sentia!

AMORES ESQUECIDOS III

Assim, de fato, o vero amor nunca se esquece,
igual que se recorda a humilhação,
qualquer vergonha ou castigo sem perdão
ou as sentenças decoradas de uma prece.

Mas no momento em que novo amor nos desce
e banha em calda nosso coração,
não se renova do velho amor a brotação,
que o novo amor as tristezas nos aquece...

Não é que morra de fato o amor antigo,
se bem nos traga novo amor felicidade,
se o amor recente nos for correspondido,

mas o buquê se deposita no jazigo
do arcano amor, até contra a vontade,
em memorial desse tempo já perdido.

ÁGUAS CALMAS I -- 4/1/2018

"As águas calmas são mais perigosas,"
eis um conselho a que pouco se atende;
com más palavras até mesmo se ofende
quem nos exprime tais palavras cautelosas.

Não é de fato que em torrentes caudalosas
menor perigo para nós se prende,
mas facilmente o atrevimento rende,
ao ver que trazem forças poderosas.

Dificilmente se as buscará enfrentar,
quando ainda temos mínima experiência,
até os troncos que arrastam se assistindo.

Mas há um remanso bem perto do lugar
que nos parece não possuir grande potência,
tranquilas águas nesse banho lindo!...

ÁGUAS CALMAS II

Mas com frequência, a água é mais profunda
do que se espera, junto da ribeira,
que até desce, de repente, a ribanceira
ou se encontra no sopé um lodo imundo.

Ou é de areia límpida, mas é fundo
esse estrato sem firmeza e bem traiçoeira
a bela água, transparente e lisonjeira,
que não dá pé, de fato.  E num segundo

vê-se o incauto puxado para baixo,
coisa comum também na beira-mar,
quando ondas mansas chegam a bailar,

mas de repente, o pé perde o encaixo
e já o refluxo arrasta o infeliz
que ouvidos moucos deu ao que se diz!

ÁGUAS CALMAS III

Pois isto ocorre também na sociedade,
em que evitamos lugares de má fama
e aquele amigo a quem fiel se chama
é quem nos trai, tendo oportunidade.

E é nessas ruas calmas, bem verdade,
que um veículo sem buzina que o proclama
de repente envereda, numa trama,
sem controlar a sua velocidade.

E o mesmo ocorre com nossa esperança,
a feiticeira verde e lisonjeira,
por quem deixamos de lado a precaução,

pois não é sempre que se espera que se alcança,
mas essa calmaria é bem traiçoeira
e causa mal maior que a agitação...

MUITOS AMIGOS I -- 5/1/2018

"Quem é amigo de todos, na verdade,
não o é de ninguém."  Busca somente
a melhor situação que se apresente
para proveito tirar dessa amizade.

Muita gente se apresenta, sem maldade,
como sendo tua amiga, realmente,
porém de fato é tão só indiferente
ao mal que te possa advir da sociedade.

E nem ao menos será um ser malvado;
é apenas egoísta e pensa em si,
cada amigo a servir-lhe de degrau;

mas é bom que seja sempre bem tratado,
sem que confies nesse bem-te-vi,
que para si somente busca um vau.

MUITOS AMIGOS II

Não é em vão que se proclama o dente
como aquele que somente a ti ajuda
e a ninguém mais, por demasiado aguda
necessidade tenha tal vivente!...

Claro que é algum dos odontos impaciente
e te morde a bochecha em talha ruda
e nesse caso, não existe quem te acuda,
se o próprio dente te for malevolente!

Mas é difícil que mesmo um desdentado
se disponha a engolir o mastigado
nos carinhos de tua língua e tua gengiva!

Nem com um beijo frequente acostumado,
um certo nojo existe, que se ativa,
se um tal alvitre lhe for apresentado!...

MUITOS AMIGOS III

É só amigo de si mesmo quem afirma
amigo ser de todos, ainda que
haja de fato algum de quem se vê
que como amigo de muitos se confirma.

Will Rogers, o cowboy da antiga firma,
seu laço a manejar qual bilboquê,
costumava dizer, ou assim se lê,
"Nunca encontrei alguém," -- nisso reafirma,

"de quem eu não gostasse." Homem valente!
Especialmente se lembrarmos que, frequente,
se encontraria com gangsters e bandidos!

Mas uma coisa é gostar, naturalmente,
e outra ver-se sacrifícios, concedidos
pelo bravo vaqueiro a tanta gente!...

SENHOR DE TUDO I -- 6/1/2018

"Senhor, só há um e está no céu."
E por certo Ele o é de todos nós.
Senhorias requeriam-nos os avós,
nesse respeito que hoje segue ao léu.

Mas convencido aqui existe "pra dedéu".
Há empertigados, qual que nos seus cós
das calças amarrassem com bons nós
alguma tábua, melhor servindo a fogaréu!

Nem é de fato que sejam só egoístas
ou de indiferenças por demais deliberadas;
mas a inteligência é neles limitada,

sem qualquer sensibilidade a lhes dar pistas
dessas pequenas crueldades praticadas
a qualquer um que cruze por suas vistas...

SENHOR DE TUDO II

Procuram ser, certamente, populares,
por mais que julguem serem importantes:
"Não sou "senhor", use "você", igual que dantes,
falam eles... ou usam frases similares.

Mas na verdade, são falsos seus olhares,
sem que deem importância aos circunstantes,
por submissão alheia delirantes,
buscam no mundo só interesses singulares.

Quando de fato, só recusam "senhoria",
porque respeito de fato não indica
e muito menos a "Excelência" autoritária

com que deputado ao colega xingaria,
ou senador contra o colega "intica"
e no Supremo tal ofensa é até diária!...

SENHOR DE TUDO Iii

Não obstante, no Céu está o Senhor,
muito acima de qualquer autoridade,
a Senhoria a demonstrar nossa humildade,
que cada um se curve em Seu louvor!

Seu Santo Nome respeitando com amor,
sem nunca em vão O tomar pela cidade;
mesmo em igreja, repeti-Lo é uma vaidade
que se devia evitar com certo ardor...

Os Céus e a Terra estão cheios de Sua glória,
como escrito se encontra no Evangelho
e até mesmo quem nutrir mínima fé

o Seu Poder reconheça pela história:
tudo fez bem -- somos nós rachado espelho,
mas Senhor nosso Ele por certo o é.

O Gemido da Carroça 1-- 7/1/2018

"O boi é que sofre, mas a carroça geme!"
E quanto sofre, às vezes o animal!
Não tem descanso sequer no Carnaval.
Ao ver o sol raiar, o esforço teme...

Para o trabalho funciona como leme,
Dele cortada a potência semental,
Músculos crescem, trabalho não braçal,
Porém "patal", na carga que o condene...

O boi somente arfa ao respirar
E como o burro, quase não se queixa,
Do carroção só as rodas a gemer

Pela carga de que precisam suportar,
Se bem sozinho o carro não se mexa,
De fato o eixo a lhe dar todo o poder.

O Gemido da Carroça 2

Há muita gente pelo mundo assim,
A se queixar das cargas mais pequenas,
Mas seu esforço pouco ajuda; é apenas
A força doutrem que as carrega enfim.

Colaboração se reconheça, no outrossim,
Mas nunca ouvi queixar-se as açucenas,
Sendo os talos que suportam suas empenas,
Tampouco queixa-se a raiz que está no fim.

Mas para o solo a flor a fronde pende,
Sem equilíbrio fornecer ao cabo...
Quiçá se queixe o chocalho da serpente,

Embora a força esteja nos coleios...
Talvez se queixe do cachorro o rabo,
Embora a espinha ative seus meneios...

O Gemido da Carroça 3

Mas há quem traga à casa seu sustento
E apenas queixas escute no chegar...
Inversamente, há quem na casa trabalhar,
E busque o outro só divertimento...

A coisa é certa: o vento traz lamento,
Mas é a chuva que vem fertilizar
E é bem mais, igual que o vento, se queixar
Quem menos sofre de padecimento...

Gira o badalo, porém o sino geme,
O sapato se desgasta e dói no pé,
A mente estuda, mas se cansa o olhar,

O barco voga, porem range o leme,
Corre o crioulo altaneiro, sem dar fé,
Mas o ginete vai das costas se queixar!

O Gemido da Carroça 4

Assim bem mais se queixa um comensal
Do que quem lhe preparou a refeição;
Gostos de muitos caprichosos são:
Causou a comida um gás intestinal!...

Mastigação é um trabalho perenal,
Longo cansaço lhe provoca a digestão
E nem sequer oferecem dar a mão
Para lavar os pratos no final!...

Falando sério... Nem é por ingratidão,
Mas só por falta de sensibilidade,
Só se interessam por seu próprio mundo.

O centro esta no ranger do carroção,
Que marcha o boi com longanimidade,
Enquanto a carga dorme em dom profundo.

O Gemido da Carroça 5

Você também conhece gente assim,
Que de explorá-la se acha no direito;
Seu bem-estar está ao deles sujeito
E a Colombina servir deve ao Arlequim...

De quem zombou queixar vai-se o pasquim,
Da acolhida a reclamar quem foi aceito,
Queixa-se o hóspede de seu duro leito,
Vai a bexiga protestando contra o rim...

O ordenhador a lamentar que é dura a teta,
O caçador contra o cansaço da caçada,
O anzol a reclamar ser gordo o peixe...

O espertalhão fala do esforço de sua treta,
Parente pobre se julga injustiçado
E o sem-terra até quer que a enxada o deixe...

O Gemido da Carroça 6

O "encostado" a reclamar de sua pensão,
A filha egoísta por ter menos que queria,
O padre que as coletas maldizia
E mesmo o gato querendo mais ração!

Por ser preso a chorar qualquer ladrão,
O advogado que cobrar demais queria
Por um trabalho que qualquer outro faria,
Sem precisar praticar a profissão!

Processando por direitos o peão
Que na fazenda menos trabalhou;
Resmungando dos doentes a enfermeira!

De tantos mais terás recordação,
Se foste o boi que o carroção puxou
E não as rodas a queixar-se da canseira!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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