terça-feira, 18 de março de 2014






CÁRCERE ABERTO & MAIS
William Lagos

CÁRCERE ABERTO I – 22 FEV 14

Que o horizonte seja apenas uma linha
Já ouvi dizer – no coração deserto,
Qual encontro de areia a céu aberto,
De que a secura sempre se avizinha...

Nesse horizonte teu coração definha:
Por mais que o busques, nunca chega perto,
Teu caminhar toma destino incerto
E o rapinante a teu andar se alinha...

Em tal planura sequer vereda tinha
O palmilhar do passo mais profundo,
Somente a linha pontilhada das pegadas,

Sempre que o vento seu soprar continha,
Apenas grãos escorrendo para o fundo,
No langoroso apagar de tuas pisadas...

CÁRCERE ABERTO II

Mas na planície na qual verde se aninha,
Já se intercalam arbustos e capim;
O teu caminho transpõe a relva e assim
Deixa de ser compacta essa linha

E a pouco e pouco o horizonte se avizinha,
A grande cúpula azul te cobre, enfim,
Mas o tapete glauco do jardim
Ondula e treme rumo à meta que se alinha.

Porém teus passos para trás não lês,
Que o pastiçal é fértil e absorve
A tua vereda na seiva da umidade

E lentamente a variação que vês
Em lentas curvas a retilínea sorve,
Enquanto os montes te encaram sem saudade.

CÁRCERE ABERTO III

Mesmo no mar se percebe a maresia
E então se ondula a linha do horizonte,
Do mesmérico vagar salgada fonte
Ainda sem vento a Lua afligiria...

E quase sempre a linha que se cria
Ser retilínea se transforma numa ponte
Para outro céu em que teu Sol desponte
Ou no seu berço adormeça em elegia.

Triste de quem só enxerga a linha reta
Que nunca chega e não conduz a nada,
Mas somente se afasta em zombaria,

Na pobre vida que nem alma mais excreta,
Atrás da linha sua tumba já escavada,
Para a qual marcha em insana correria!...

LUCIDEZ I – 23 FEV 14

Nesse zoológico em que habitas, minha princesa,
Vês animais da mais estranha natureza,
Com o direito de transportar suas jaulas
E te julgar por tua feiura ou tua beleza.

Cada um pressente, marchando lado a lado,
Quando lhe impingem o espaço seu sagrado;
Nesse invadir te examinam como em  aulas,
Seguindo em frente, sem o mínimo cuidado.

Na verdade, essas jaulas todos temos,
De suas grades a fazer manutenção,
Que revestimos de negro ou de dourado.

Tantas gaiolas que ao redor nós vemos,
Com acúleo pontiagudo em proteção,
Cada ocupante mais receando ser tocado.

LUCIDEZ II

Levianamente, ao abrir da portinhola,
Dás entrada a um tentáculo de amor,
As tuas próprias lianas de calor
Buscando assim inserir noutra gaiola.

Existe vez que um tal tentáculo consola
E se enraíza em ti com mais vigor
E esse cipó que estendeste em teu ardor
É recebido com carinho e não se esfola.

Porém é tão comum que o recebido
Somente algo de ti busque sugar
E até pretenda a tua trança decepar,

Nesse contato incerto e mal havido,
Com o intento de apossar-se totalmente,
Aproximam-se de ti, astutamente.

LUCIDEZ III

E após, locupletados seus desejos,
O tentáculo a extrair, regurgitante,
Teu próprio braço a expelir, vibrante,
Todo esfolado na soma de teus pejos.

Tais experiências de férvidos ensejos
Fazem tua jaula tornar-se mais constante
Em hermetismo, evitando o penetrante
E pegajoso tear de outros adejos...

A tais eventos denominas lucidez,
E em ti provocam futura retração,
No preencher de tuas grades os espaços

Com lâminas de aço, qual outra prenhez
Inesperada, para evitar a sensação
Da ingenuidade dos iniciais abraços.

LUCIDEZ IV

Porém, ao tais espaços recobrires,
Nessa ânsia de futura proteção,
Na indesejável consequência da lição,
Como uma forma do exterior te despedires,

Teus próprios sonhos assim a retraíres,
Cortado o espaço também de sua expansão,
Perdida a água e o ar da brotação,
O teu espaço sagrado a restringires,

Verás que a luz encontra pouca entrada,
Por minúsculos buracos ou frestinhas...
Onde se acha, então, a lucidez?

És criatura tão só ensimesmada,
Que já não tem como lançar gavinhas,
Enquanto o mundo a olvida por sua vez...

Vela Que Vela 1 – 24 Fev 14

A cada vez que me aproximo dela,
a lâmina cilíndrica estremece
talvez buscando ser círio de uma prece,
quer ou não quer que me aproxime a vela?

Quando a retiro do invólucro em que gela,
tola esperança na estearina cresce
de ser fonte de luz que o escuro tece,
sua esfera de calor em branda tela.

A transparente túnica que a veste,
ao mesmo ritmo do círculo de luz
a ingênua vela, de repente, despirá.

E em sua nudez, sublimação celeste,
ela ilumina o mesmo mundo que seduz
nessas volutas que o calor derreterá.

Vela Que Vela 2

Porém, se não a acendo, abandonada
permanece, em seu invólucro constante;
perdura em solidão de longo instante,
talvez sendo por insetos devorada.

E nessa espera incolor e demorada,
a vela teme seu derradeiro avante,
a sopesar o esquecimento delirante;
que quer a vela, afinal: ser tudo ou nada?

Que a vela vela em seu invólucro de vela,
sua mortalha de plástico fechada,
sob o letreiro em capa fina, toda nua

e em sacrifício, à beira da janela,
fechado o vidro, que não seja apagada,
a casa mostra e mal se vê da rua...

Vela Que Vela 3

Qual o propósito, enfim, que tem a vela,
senão o de escorrer em dez volutas,
caprichosas, verticais, depois polutas
por mariposa que cruzou pela janela...

E em castiçal, sob a força da procela,
gerada na catálise e labutas
dessa chama de fósforo, nas grutas
da escuridão que à noite a casa sela,

a pouco e pouco, de forma langorosa,
ela se deita, cansada, horizontal,
ainda retorcida, sobre o prato,

lembrando aqui o cisne e ali a rosa,
restos mortais do ouro do fanal
que luz me deu enquanto as letras cato.

Vela Que Vela 4

Quando criança, sobre espelho derramava
gota após gota, inclinando a doce vela,
que então se condensavam como em tela,
quadros formando consoante a mão pulsava.

Era bem rápida essa flama que a queimava,
em diagonal a lamber a forma dela;
em vez que outra, nos dedos pisadela,
quando à sorrelfa sua cera me alcançava.

Pois nesse espelho, que a imagem duplicava
havia mais castelos que em Castela,
em retortas curvilíneas e sarcásticas,

enquanto a vela perecia e se esboroava,
soltando a alma que rebrotara dela
em cem imagens loucas e fantásticas.

Vela Que Vela 5

De forma semelhante, uma donzela
guarda em invólucro o seu coração,
a palpitar no pulso, junto à mão,
ou no pescoço, em beijo de procela.

Amortalhada em sua pureza, não quer ela,
porém desperta de algum fósforo a paixão,
pequena chama de rascante brotação,
seu pavio a acometer, branda querela.

Porque é então que a donzela se ilumina
e lhe pinga a emoção que traz no peito,
gota após gota escorrendo nessa lida,

puro fulgor, bem igual da vela à sina,
as suas volutas puro amor, sem ter defeito,
tão sedutor o brilho jovem de sua vida!...

Vela Que Vela 6

Qual o destino melhor para a donzela?
Imóvel estender-se, a vela panda,
em calmaria que ao porto não demanda,
para as gaivotas sua vela feita em sela?

Ou queimar-se de luz, fugaz estrela,
a derreter seus filetes, banda a banda
até o descartar, em ação nefanda
de quem a troca então por nova vela?

Donzela zela como a vela vela
e a vela zela por não ser donzela,
donzela vela na espera da paixão,

a flébil luz avistada na janela,
a doce boca que em carinhos zela
pelo fulgor que trago ao coração...

EUFORIA I – 25 fev 14

Quando caminhas, os prédios marcham lentos,
cada parede mostra as portas e as janelas,
sobre teus próprios calçados te encastelas,
a mente inteira espraiada aos quatro ventos.

Porém se marchas na armadura dos portentos
desses veículos de faróis, ferventes velas,
metal e plástico a te servirem como selas,
para poupar certo punhado de momentos,

só vês os postes sendo ultrapassados,
até os pedestres simples sombras nas calçadas
e nem percebes o eriçar de quaisquer gatos,

só os fios cortantes dos cabos colocados,
por ti zunindo, cimitarras aguçadas
e a vida inteira feita um leque de boatos...

EUFORIA II

Rejubilando em tal velocidade,
as rodas giram a te poupar os pés,
que nas calçadas somente encontram sés
no abandonar de tua domesticidade,

ou em teu ingresso na destinalidade
a que te propuseste em dias de fés
ou na estadia mais fútil dos cafés
ou no salão que alimenta a tua vaidade

ou no trabalho que auxilia teu sustento
e te paga igualmente a gasolina
ou o álcool de tuas patas vicariais

que de tuas pernas poupam seu alento
se fácil vaga te concedeu a sina,
sem longas quadras percorreres  nos finais...

EUFORIA III

Ou então, à academia te reportas,
em teu arfante percurso pela esteira,
ou recebendo massagem corriqueira,
quando, em troca das passadas, te confortas...

Explicações até encontras, meio tortas:
“A gente sua em caminhada mais ligeira...”
Com teu antitranspirante tão faceira,
em suadouro numa sauna te comportas...

Perdes os músculos por não caminhar,
falsa euforia no inconstante exercitar,
não é preciso pagar pelo passeio...

Exceto, é claro, se te vierem a assaltar,
de um arrastão então participar,
da marcha a pé fraco motivo de receio!...

DÍSTICOS I – 26 FEV 14

E novamente volto aqui a registrar
essas lápides de informe assentamento,
aqui e ali, no mais antigo pavimento,
que lentamente estão a se quebrar.

De Izidoro & Silva vou lembrar,
sempre a mudar o anúncio do momento;
ou Isidoro da Silva vejo, atento,
para Izidoro & Cia. então mostrar...

Noutro ponto, Alfino & Nogueira dormem,
Nogueira Pelotas ou Nogueira e Cia.,
Castro e Lopes ou IMB Castro Lopes...

Noutra calçada, Ferragem Borba eu via;
Deiro Bagé que outros ladrilhos formem;
com José Pardo & Cia. talvez topes...

DÍSTICOS II

Em outros pontos, consta Telephone,
Telefone Limitada ou Telefon...
De Telefon Metalúrgica Wolff Esteio um tom;
de outros mais raros a legenda quase some...

Que Geralbiental Monitoramas dome
de teus sapatos a sola a fazer som;
IM & Co, Exgottos A.Z. e B. também é bom
recordar, que Incêndio ou Esgotos o nome tome

algum ladrilho de metal sonoro...
Também há Exgottos Instaladora,
IMB Esgotos 1920 Castro Lopes;

Em  vários outros Esgotos IMB 1920 afloro;
que em Perigo Eletricidade o pé embotes
sobre Válvula de Incêndio protetora...

DÍSTICOS III

Cia. Riograndense de Telecomunicações
em vários outros pontos percebi;
ocasional é a Bouche d’Incendie
ou I. M. 252, esta em poucas ocasiões.

À Caxias I,M.B. 1920 impões
Telefone 1985 Fundição Becker por aí,
Limitada Porto Alegre RS; e ainda vi
só IMB 1920 em várias outras produções...

E ainda A G F Esgoto em ponto raro
Ou Esgoto Pelotas aqui e ali,
I.M. 325 ou Esgotos Rio Pel...

Na arqueologia urbana fui preclaro,
porém encerro esta pesquisa aqui,
sem me estender às calçadas do quartel...

DÍSTICOS IV

Ainda se encontram, de mortas casas comerciais,
tijoletas demarcando suas calçadas,
a Casa Alegre, talvez nem mais lembradas
suas instalações, salvo por mim e poucos mais...

E a Casa Ramos, já importante por demais,
que acrescentava às gentes apressadas
Correaria e Sellaria, em letras destacadas,
em prensa e moldes de atenções individuais.

E existe ainda na Marechal Floriano,
Igreja Episcopal do Brasil, letras graúdas
e Edifício União, igualmente fabricadas...

E aqui concluo este poema insano,
como homenagem às antigas vozes mudas,
só nesses pisos das calçadas perpetuadas...

RUELAS I – 27 FEV 14

NA CIRANDA DAS CALÇADAS
RETORNO À RODA DOS VENTOS
MEUS PASSOS SÃO CONTRATEMPOS
NAS LEGENDAS CONSERVADAS
DAS TIJOLETAS RASGADAS
PELAS ERVAS EM REBENTOS
PELOS PASSOS E RELENTOS
SUAS CORES JÁ CANSADAS
AS QUATRO QUINAS QUEBRADAS
DAS CHUVAS NO EMBOTAMENTO
DESBOTADAS PELO SOL
MAS AINDA ALI PREGADAS
ENQUANTO O PROGRESSO ATENTO
MAIS AS PARTE EM SEU CRISOL

RUELAS II

NO PESPONTAR DOS PASSEIOS
NAS ARGILAS E NOS BARROS
NOS FIOS DE SANGUE DE ESCARROS
NA CORRIDA DOS RECEIOS
LENTOS PASSOS EM PERMEIOS
CEM BORRIFOS DESSES CARROS
NAMORADOS AOS AGARROS
PEQUENAS BOCAS NOS SEIOS
CALÇAMENTO DE PEDRINHAS
COM ALGUMA TIRA PRETA
QUASE SEMPRE AVERMELHADAS
TRAÇADAS A TIRA-LINHAS
E NOS CENTROS LONGA SETA
DE IMAGENS BRANCAS MOSTRADAS

RUELAS III

É MAIS NA CIDADE ANTIGA
QUE SOBREVIVEM PEDRINHAS
COM ESMERO ASSENTADINHAS
QUE CHUVA SÓ NÃO DESLIGA
QUE HÁ DE ESTRELAS LONGA LIGA
OU ENTÃO NÍVEAS FLORZINHAS
OU CRUZES TAMBÉM BRANQUINHAS
OU CÍRCULO QUE ASSIM PROSSIGA
NO CORRER DESSAS PAREDES
E HÁ TAMBÉM ALGUNS QUADRADOS
QUE PEDREIROS APRESSADOS
DESMONTARAM PARA AS REDES
DE CANOS DE ESGOTO OU ÁGUA
SEM SENTIR A MENOR MÁGOA

RUELAS IV

APÓS SEREM MUTILADAS
EM CERTOS PONTOS TROCARAM
E TIJOLETAS SENTARAM
FACILMENTE COLOCADAS
OU SIMPLESMENTE TAPARAM
COM FAIXAS ACIMENTADAS
E AS PEDRINHAS RETIRADAS
PARA ONDE FOI QUE LEVARAM?
HOUVE ALGUM QUE CALCETEASSE
SEM QUALQUER HABILIDADE
DE VOLTA AS POBRES ESTRELAS
SEM MOSAICO QUE ESTAMPASSE
NA MENOR FIDELIDADE
AS FIGURINHAS TÃO BELAS

INVISÍVEL I – 28 FEV 14

Há uma pergunta que perdura como açoite
na tua mente, inda que contra a tua vontade;
certa questão, que retorna em densidade
desse inconsciente no qual encontra acoite

ou que é, às claras, repetida com afoite
na roda íntima ou em plena sociedade:
o que é abrangido pela vasta imensidade
do não-se-vê da madrugada ao não-se-vê da noite?

Olhos abertos de insônia ou em pleno sono,
o que se passa nessa escuridão
quando não foi devassada pelo sonho?

Ou entre o deixar do corpo em abandono
ou no final da própria gestação,
Haverá vácuo ou algo mais medonho?

INVISÍVEL II

Existe o não-se-vê do olho fechado
e o não-se-vê do penetrar no escuro,
o não-se-vê das estrelas de olhar duro
quando por nuvens o céu está ocultado.

Mas, sobretudo, há o sono atribulado
em que as pestanas contemplam o esconjuro;
só a faísca distante em negror puro
nessa mortalha de um fugir desenfreado.

E ainda há o não-se-vê do que acontece
após se exale o último suspiro
e o não-se-vê anterior à prima luz,

o não-se-vê que justifica toda a prece,
mesmo com as coisas materiais em giro,
sem se saber a que a reza nos conduz.

INVISÍVEL III

Antigamente o não-se-vê mais assustava:
havia monstros palmilhando a escuridão
que nossos pais já domaram em ocasião,
com lança e flecha que a tocha iluminava.

Pela manhã, toda a gente se orientava,
o cadáver a encontrar da aparição;
trilhas de sangue que no solo estão:
aquele monstro o povo então carneava...

Outros havia, porém, no vasto oculto,
pelas trevas da noite insatisfeitas:
não se podiam matar os pesadelos

e muito menos dos ancestrais o vulto:
olhos de fogo em tocaias e às espreitas,
mesmo daqueles que em vida foram belos.

INVISÍVEL IV

E o que fazer, quando em sonhos nos surgiam,
mesmo bondosos, tal qual se fosse dia?
Ao se acordar, o não-se-vê para onde ia?
Com lamparinas os cantos não se viam...

A eletricidade amparou os que descriam,
teias de aranha em cinzenta liturgia;
o não-se-vê nas ruas se escondia
e mesmo nelas tais terrores se perdiam...

Mas até hoje permanecem não-se-vês
ante o prevê perlustrar da claridade:
quem enxerga o anterior ao nascimento?

E mesmo em fé, justamente é que não lês,
nesse destino comum da humanidade,
nada que ocorra após teu passamento...

SABEDORIA I – 1º. MAR 14

JÁ MUDEI MUITO AO LONGO DA EXISTÊNCIA;
O QUE NÃO SEI É SE MUDEI AO CERTO;
A VIDA EU ENFRENTEI DE PEITO ABERTO
APÓS TÊ-LA INICIADO EM IMPOTÊNCIA.

DEIXEI ATRÁS DE MIM FALSA SAPIÊNCIA
E DE MELHOR CONHECIMENTO CHEGUEI PERTO;
DA VIDA A LIDA E SEU DESTINO INCERTO
FOI DOMINANDO AOS POUCOS A EXPERIÊNCIA.

E A CADA VEZ QUE PRETENDIA SABER TUDO
CAÍA EM NOVA TOCAIA DE SURPRESA,
NO ESPINHO VENENOSO DO VELUDO,

NA DESCARNADA CAVEIRA DA BELEZA,
PARA NO FIM SÓ GUARDAR CONSELHO MUDO:
NADA SE SABE DO DESTINO, COM CERTEZA.

SABEDORIA II

NÃO CHEGUEI O FILÓSOFO A COPIAR
QUE AFIRMAVA: “SÓ SEI QUE NADA SEI”.
SEM DÚVIDA, VASTO ACERVO CONQUISTEI,
CONHECIMENTO LONGO A ACUMULAR.

DAS ARTES PLÁSTICAS CONHEÇO O DESLIZAR,
DA ARQUEOLOGIA OS LIVROS PERLUSTREI,
NA ASTRONOMIA O CÉREBRO EMPREGUEI,
GUARDO DA MÚSICA O CONSTANTE TILINTAR.

MAS TUDO ISSO NÃO PASSA DE MEMÓRIA:
TUDO PRECISA DE SER ATUALIZADO,
QUE O MUNDO PASSA EM CONSTANTE MUTAÇÃO

E REVIVENDO OS PÁRAMOS DA HISTÓRIA,
CADA CONCEITO TENHO REPENSADO,
NUMA PERENE E CONSTANTE AVALIAÇÃO.

SABEDORIA III

MAS MESMO ASSIM, APRENDI COMO VIVER?
DE NADA ADIANTA O PASSADO RECORDAR,
MAS NOVAS SITUAÇÕES SEMPRE ENFRENTAR,
PARA NOVOS PROBLEMAS RESOLVER.

JÁ SE REPETEM, EM ASTUTO REFAZER,
AS ARMADILHAS PERDIDAS DO PASSADO:
NÃO FOI SUCESSO O QUE NOS ENSINOU,

MAS CADA ERRO COMETIDO A SE REVER,
CADA TOLICE POR PRAZER NEGLIGENCIADO
QUE NOS DÉDALOS DA MENTE ACUMULOU

E AOS RESULTADOS PODEMOS RECORRER,
SEMPRE QUE NOVA SITUAÇÃO SE APRESENTAR,
PARA DE NOVO FALHAR OU ACERTAR,
NOS NOVOS DIAS QUE VEMOS A ESCORRER.

SABEDORIA Iv

SÁBIO NÃO SOU, PORTANTO, PORÉM SEI
DAS POUCAS VEZES QUE ENCONTREI SUCESSO,
DOS MUITOS ERROS DE QUE NÃO ME ESQUEÇO:
TALVEZ ACEITE O QUE NO ANTANHO DESPREZEI.

POIS MUITA AÇÃO ATÉ LOUVADA COMO CERTA,
A LONGO PRAZO, RESULTOU BEM MAL,
QUE INESPERADOS MOSTROU-ME SEUS CAMINHOS

E MUITA FALTA CONDENADA EM VOZ ABERTA,
PASSADOS ANOS, DEMONSTROU-SE NATURAL
ACEITAÇÃO DA VIDA E SEUS ESPINHOS.

CONTUDO, O FILME PASSA A PRÓPRIA LEI
E QUASE NUNCA A MEU PASSADO PEÇO
CONSELHO E NEM DE MIM ME COMPADEÇO
AO DESCOBRIR QUE, NOVAMENTE, ERREI.

CAMPAINHAS I – 2 MAR 14

Bem certamente é a insatisfação
que nos leva à conquista e à descoberta,
que toma a ciência pela senda incerta
e a arte traz até final consumação.

Quem se acha satisfeito, a pulsação
não sente para a busca mais aberta,
não é picado pelo impulso que desperta,
nem incitado para nova exploração.

Quem a vida tem fácil, nada busca,
a inquietação dentro de si não fala,
pois só usufrui do bem que recebeu,

que a luz do gozo a mente nos ofusca
e quem o verso tem fácil não se abala
na busca de uma rima que perdeu...

CAMPAINHAS II

Destarte, quanto custa mais esforço
nos estimula para o próximo combate;
novo obstáculo que surge, não abate,
por mais pesada seja a carga ao dorso.

Maior impulso sentimos para o corso
quando é pesada a carga no açafate;
depositada a inércia, sem que mate,
faz-se alavanca para perna e torso.

Ocorre assim com teus passos.  Devagar,
escolhendo com cuidado o teu caminho,
as coisas chegam com maior demora,

mas se acaso estugares teu andar,
o mal descartas para trás, devagarinho,
nesse abandono final de cada hora.

CAMPAINHAS III

Não que teu bem não fique para trás;
cada dia é outra camada no monturo,
mas quem avança com passo firme e duro
vê a vida a aproximar-se e é mais fugaz

a movediça sensação de um vasto escuro
que os passos prende, em sadismo bem veraz;
tua lentidão é um amargo capataz:
cada passo um novo esforço e novo muro.

O passo rápido é igual a campainhas
que castanholas tocam, como guizos,
impulsionando cada um nova partida;

no passo lento em que teu marchar continhas,
diante de ti se alongam vastos pisos
até que a estrada te leve de vencida.

CAMPAINHAS IV

Quem para tudo tem facilidade
não vê motivo para se esforçar,
nem escolher qual meta a alcançar:
chega mais longe quem mais tem dificuldade

e se arremete, sem mais futilidade,
em uma só direção, mesmo a penar;
sabendo como é fácil fracassar,
nunca enfraquece na lida a sua vontade.

Mas quem a vida premiou com muitos dotes
olha ao redor e nem sabe aonde ir,
pensando sempre que tempo tem de sobra;

mas ao contrário, logo enfrenta botes
que lhe arrancam muitos dias do porvir,
como as presas pontiagudas de uma cobra.

CAMPAINHAS V

Por que na missa tocam campainhas,
toda a atenção convocando nos momentos
em que devam observar os seus portentos
esses fiéis a adormecer nas ladainhas...?

Ou então matracas a desfiar bainhas
de sonolência nos balbuciares lentos,
pela atenção voltada a outros eventos,
os pensamentos desviados noutras linhas...

Talvez se busque ali descanso e paz,
mas é feroz celebração a eucaristia,
cada qual das orações fervente passo

que ao autoexame, em condução veraz,
bem ao oposto de toda a letargia,
busca tomar congregações em seu abraço.

CAMPAINHAS VI

Desta forma, que nasce em berço de ouro
e por si mesmo não precisou lutar,
naturalmente se deixa apaziguar,
sem o possível enfrentar de algum desdouro.

De forma igual, quem já sofreu o couro
do chicote da miséria no seu lar
e então se esforça para só se alimentar,
qual no ditado, trabalhando feito um mouro,

tampouco escutar o tinir das campainhas,
pois nem consegue o passo inicial dar
que sua corrida possa alavancar;

só tens impulso para a vida dominar
se te achas no meio, as próprias vinhas
trabalhando sol a sol a cultivar.

INVENTÁRIO I – 3 MAR 14

Tu mesma tens inventariado o mundo,
sem te prenderes às tramas cartoriais,
nesse exame dos ensinos de teus pais,
na oscilação mais séria do jocundo.

Agora oscilas por entre os pastiçais
desse passado tanto mais profundo
quanto era ausente de teu meditabundo
acervo de instruções imemoriais.

Mas se os cartórios tomam teu dinheiro,
dando em troca do legado certidões,
esse inventário do passado é ganancioso,

por exigir quase teu tempo por inteiro,
na antiga busca de defuntos castelões,
nos calabouços de um passado tenebroso.

INVENTÁRIO II

Tua vida cobra interesses materiais,
por sua própria natureza, transitórios,
impermanentes como hóstias nos cibórios,
de forma oposta, apenas dons espirituais.

Pois se te voltas para ti, preços mentais
são cobrados nos momentos decisórios;
(os materiais, no comparar, são irrisórios)
querem de ti tuas sendas cerebrais.

Meus inventário eu já fiz na adolescência,
ao perceber o quanto eram guturais
os ensinamentos que me foram ministrados,

sem me poder desvencilhar de sua potência,
maiores fossem os ceticismos naturais,
nas atitudes externas entranhados.

INVENTÁRIO III

Na avaliação mais cartorial os bens
que nos legaram são assim contados;
pelo governo aos poucos são fatiados
e a novas taxas satisfazeres tens.

No inventário mental outros poréns
se enfileiram, dificilmente descartados,
como dúzias de fantasmas retornados,
descontentes de seus páramos aléns...

Será que vale a pena inventariar
massa falida dos próprios julgamentos,
nossos motivos cada vez mais obscuros

nesse passado que se quer moratoriar,
nas concordatas de mil ressentimentos
por resultados que nos parecem duros?

INVENTÁRIO IV

E quando fazes, décadas passadas,
o teu próprio inventário corporal,
então percebes que tão só o espiritual
é que aumentou em nossas mentes apinhadas.

Há menos dentes sob as faces enrugadas,
enfraquecimento constante do hormonal,
as juntas duras, ressecado o espinal,
até as formas de sentir fossilizadas...

E completada tal catalogação
de teus amarfanhados sentimentos,
pelos eventos que por décadas viveste,

resta somente esta realização,
bem balanceados tantos pensamentos:
que experiência é renegar o que aprendeste...