terça-feira, 31 de maio de 2011

TOQUE ASTRAL


TOQUE ASTRAL I  

"A vida é uma roleta em que todos apostamos,"
ditado antigo, espanhol ou mexicano...
Quantas apostas já fui durante o ano
em que vivi no cassino que habitamos!...

Sem escolher entrar, fomos lançados
à mesa da roleta e somos fichas...
São outros os que apostam, nossas michas
tristezas chacoalhando ao som de dados...

Seria bom que pudéssemos apostar,
mas não é bem assim...  Outros nos lançam,
embaralham ou apertam os botões

dos caça-níqueis e só podemos esperar
que ganhem ou que percam.  Nem alcançam
que a cada lance nos cortam os corações.

TOQUE ASTRAL II

Cobre teus ombros com as dores que enviei:
São manto grosso e bem afasta o frio.
Se achares melancólico o que envio,
lembra que é feito da alma que te dei...

Só te escrevo o que sinto...  E se mandei
bolor de versos de um amor vazio,
é que foi grande, mas gastou-se o fio,
depois que sucedesse o quanto sei.

Cobre teus ombros, portanto.   O manto é grosso
e te protegerá das próprias dores
que vêm de fora, rígida armadura.

Embora enquanto teu coração for moço,
bem saberá criar penas de amores,
vindas de dentro e feitas de amargura.

TOQUE ASTRAL III

Amor é flor que aos poucos se congela,
em quadros ostentados pela sala.
Amor é gelo que se despetala,
onda de luz no meio da procela...

Amor tem a importância de uma estela
erguida a um deus antigo.  Amor é gala
que dura sete dias...  E assim se fala
do grande amor enquanto nos é bela

a companhia da alma.   E eis que aparece
contra a amada um só instante de verdade,
como de fato o é.   E então, perjuro

é quem só ama o amor como uma prece,
em atos demonstrando sua saudade
por aquela que amou ainda no escuro...

TOQUE ASTRAL IV

Está mais próxima, agora que não mora
perto de mim, bem mais que quando estava.
De quando em vez, é certo, me buscava,
com intervalos de irregular demora.

Agora penso que lamenta o outrora,
tal como lamentei quando se achava
tão próxima de mim e me aceitava
como um amante que não se manda embora.

Porém quando está longe, até parece
que me percebe bem mais do que um amigo,
como alguém que a seu lado sempre quer

e só me resta aos deuses erguer prece
de que quando a visitar, em seu abrigo,
também perceba inteira essa mulher!...

TOQUE ASTRAL  V

Quando meus dedos a pele te percorrem
e a derme reverbera na epiderme,
quando a epiderme reflete o som da derme
e nos meus dedos teus líquidos escorrem;

quando, à sorrelfa, deslizam para o cerne
dos tegumentos que para amor se adornem
e teu botão, muito de leve, entornem
até a carícia que te faça inerme,

nesse jogo gentil de sedução,
até que a carne em quente carne encaixe,
na litania fremente do carinho,

então te busco, em plena exaltação,
quando tua derme a derme minha enfaixe
e, por momentos, não me sinta tão sozinho...

TOQUE ASTRAL  VI

Nem ouso mais sonhar.  Só vejo a vida
fluir entre meus dedos.   Grãos de ouro
que não se prendem e sem qualquer desdouro:
sequer a poeira encontra em mim guarida.

Nas linhas de minha mão, um bom agouro
de que a vida me lava e não revida,
mascando derme e carne, nessa lida
em que o tempo mastigo e os dias estouro.

Vivendo apenas nesse sonho hipnótico
da ampulheta de ouro, cintilante,
em que cada momento é jóia rara...

Tão cara que é impossível tal despótico
fluir perpétuo de um sonho triunfante
coagular... por mais que me esforçara.

TOQUE ASTRAL  VII

Não te queixes de mim, se eu te deixar.
A cada instante de nossa relação
te demonstrei amor, te dei perdão
por maldade ou grosseria demonstrar.

Não te podes queixar.  Foi geração
que passei perto de ti, sem reclamar
e quando me ofendias, por azar
de minha natureza, dava a mão,

mesmo depois de me teres maltratado.
Mas tudo tem um fim, até a paciência:
tudo contado, não sou anacoreta.

E chega o dia em que concluo, atribulado,
depois da taça da amargura ver repleta,
que para ti não passei de conveniência.

TOQUE ASTRAL VIII

Sempre fui para os outros servidor.
Não que me queixe.  Nasce cada um
para funções no mundo. Quando algum
tem condições, deve ser ajudador.

Existe um outro que é apenas tomador.
É natural.  Como seria incomum
que alguém servisse, mas sem ter nenhum
a quem servir...  E assim, sou doador.

E sempre foi assim.   Mui raramente,
ou quase nunca alguma coisa recebi,
um presente, talvez, ou gratidão

pelas pequenas coisas... Mas a gente
a quem mais dei e a quem melhor servi
nunca me deu senão desilusão.

TOQUE ASTRAL  IX

Quando na escuridão estamos, toda luz
nos assombra.   O olhar se nos ofusca.
Por mais escuridão então se busca,
fechando os olhos para o que reluz...

Do mesmo modo, quando a alma em pus
se infecciona e vê que a febre a abate,
prefere debater-se em seu embate,
que entregar-se à cura que a reduz.

Infectei-me de ti.   O tempo passa,
reage o corpo inteiro e o organismo
quase se recupera.   E então, não quero,

pois me curar de ti é qual desgraça,
que me mastiga o total metabolismo
e novamente de ti infectar-me espero.

TOQUE ASTRAL  X

Só me buscas de longe.  Por que evitas,
não sei exatamente.  A cada vez
que abandono por um tempo a insensatez,
então me falas e ao amor concitas.

Do coração não sais.  Sabes que habitas
no seu recôndito, escorra ano ou mês.
É lá que reinas, luzente de altivez,
sempre me dobro quando mais te irritas.

E então me deixas, passas dias a fio
de mim ausente, mesmo estando perto
e o coração, coitado!  já tem calos...

São cicatrizes em que não confio,
pois se reabrem quando estou desperto,
em fundos sulcos que se tornam valos...

TOQUE ASTRAL  XI

O tempo passa e meus temas vão fluindo,
um a um, docemente, se ajuntando
à pilha de outros temas, se mesclando,
sem que se esgote o fluxo, no infindo

quefazer com que os dias vou passando,
esperando por ti, delírio lindo,
ou temendo de ti, que assim agindo,
novamente me queime em fogo brando.

É difícil saber o que me espera,
o que virá de ti, se o desencanto
ou um estéril ribombar ligeiro,

dentro em meu peito, qual frágil magia,
ou se a cruel rainha de meu pranto
me surgirá no instante derradeiro.
TOQUE ASTRAL  XII

Mal sei se te verei uma vez mais.
quando te deitas, cheia de brandura,
o peito lindo e pleno de doçura,
que até parece serem imortais!

E então te acordas, como se jamais
me amado um dia tivesses, na amargura
do mundo e das pessoas, nessa impura
conjugação de dores, nem sei quais...

Também eu tenho as minhas, mas não uso
como pretexto para te magoar,
em dor que invada o corpo ou o coração.

Apenas me recolho, de confuso,
amargurado em idêntico penar,
por teu caleidoscópio de emoção. 

TOQUE ASTRAL XIII

Porém meu manto ainda te recobre:
de minhas penas é feita a tessitura,
a linha foi cardada em amargura
e o debrum costurado em fio de cobre.

Elétrico esse manto, não se dobre
por demais o tecido da loucura,
que seja feito de esperança pura,
e que mais esperança assim te sobre.

E se meus versos cheiram a bolor,
é que hesitei por anos te enviar
as lágrimas em gelo condensadas.

Porém as dores, no congelador
foram mofando e no seu degelar
nem mais recordam por que foram causadas.

TOQUE ASTRAL XIV

O corpo astral formado por meus versos
é muito mais que um mero cascarão:
foi-se forjando em folhas de emoção,
acorrentado aos traumas mais diversos.

O corpo astral desses poemas tersos,
como as correntes que os fantasmas vão
arrastando após si, é assombração
de mil suspiros em clarinar conversos.

Porque esse corpo astral nunca foi meu,
embora eu tenha tais poemas redigido
e tenha a obrigação de redimi-los.

E é por isso que os envio para o teu
olhar de gestação, olhar nutrido
na longa escuta do cricrilar dos grilos.

TOQUE ASTRAL XV

E no grande cassino, cada ficha
é apostada sem critério ou nexo,
sem distinção de idade ou qualquer sexo,
nessa avidez da mão que assim se espicha.

E nessas cartas ásperas de lixa,
em cada mão, se torna desconexo
nosso destino e muda cada amplexo
em rutilar de sangue que se esguicha.

E nesse amor eterno que congela
os versos destituídos de calor,
tua carne não percorrem mais meus dedos,

arrancados, um a um, pela procela.
E só perdura em seu astral candor,
a murmurar-te ainda mil segredos...

sábado, 28 de maio de 2011

SOMBRA DA ÁGUA

                                                                  Connie Tom – Missouri, USA


SOMBRA DA ÁGUA I       

Na sombra da água eu me escondo; em tal sombra,
a água que rola a cabeça me esconde:
não vejo a mim mesmo e nem sei sequer onde
eu sei que se esconde meu corpo na alfombra.

Na sombra da água, na sombra me escondo,
nem mesmo reflexo na água ressumbra:
nem mesmo tristeza no peito me obumbra,
na sombra que alumbra meu corpo estou pondo.

A sombra da água que rola me escuda:
eu vivo na sombra, na sombra da água,
a água me lava e percorre os pulmões.

A sombra da água na vida me ajuda:
eu vivo na sombra, na sombra da mágoa,
meu peito ocultando entre mil ilusões.

SOMBRA DA ÁGUA II

Na sombra da água me abrigo e não me molho:
sou sombra de minha sombra, em liquidez.
sou cristal do cristal que assim me fez,
sou espelho desse espelho a que me acolho.

Sou redemoinho ao redor de todo o escolho.
sou turbilhão de luz sem lucidez.
sou cada bolha límpida que vês.
eu sou a correnteza em cada espólio.

Sou sangue de teu sangue, em branca espera,
sou linfa em tua ferida e assim te curo,
sou a emoção que teus nervos vivifica.

Sou a gota que pinga, de era em era,
a chuva longa me percorre o escuro,
que toda sombra em água santifica.

SOMBRA DA ÁGUA III    (21-6-09)

Na sombra da água, meu sangue se dilui:
sou linfa de minha linfa, sangue branco,
que do fundo do ventre assim arranco,
sombra de sêmen, semente que já fui...

Na sombra da água, em linfa o sangue flui,
mesclado ao ícor de um inseto manco,
mesclado ao pó da pedra, com que estanco
a hemorragia, que a escrever me imbui...

Sou água de tua água, sombra móvel,
sombra inconsútil, fluida e transparente,
nesse fulgor da pedra só um reflexo.

Sou sangue de tua linfa, sonho nóbil,
clorofila de som e de aguardente,
sonho de pólen que se expande em sexo!...

SOMBRA DA ÁGUA IV

Sonho de pólen sou, sou mil sementes,
diluídas em sombras imortais:
penetro em tuas narinas, teus canais,
inutilmente, em sexo impotente.

Penetro na tua boca, na inclemente
confusão de que és flor e que me vais
reproduzir, na luz de teus fanais:
teus olhos puros, castanhos, transparentes...

Assim é que te quero, sombra e alumbre:
sombra de sangue que penetra a luz,
sombra da água que aciona o coração.

Sombra da sombra, sonho que deslumbre,
sombra de estrela que não mais reluz,
nesse moinho de sonhos, que é tua mão.

SOMBRA DA ÁGUA V

Meu corpo firme sobre o teu, fremente,
na água dura desse amor nascente,
na água hirta da emoção fervente,
sou água sobre água permanente...

Meu corpo tenso sobre o teu, carente,
dessa fusão de águas imanente,
que novas águas produz, remanescente
para o futuro deste amor presente...

Meu corpo móvel sobre o teu, jacente,
na expectativa plena da semente,
albergue e abraço do óvulo contente...

Minha água se derrama, branquicente,
em teu anel de espera, assim quiescente,
no sangue e prata do esplendor potente.

SOMBRA DA ÁGUA VI

A sombra da água escorre por meu rosto:
sombra salgada que no rosto desce,
sombra de raiva, sombra de uma prece,
sombra melíflua, mesclando malte e mosto.

A própria sombra é o apoio em que me encosto,
firmada nas paredes...   A água cresce,
cachoeira de mim mesmo, que me aquece,
mergulho interno, em seu amargo gosto.

Mas a sombra da água traz ternura
e me reveste da luz que tem a sombra,
a luz morena desse arco-íris doce.

O claro som pintado em escala pura
e até parece que me diz a alfombra
que a sombra da água esse teu beijo fosse.

SOMBRA DA ÁGUA VII

Do Sol a sombra escorre sobre mim:
líquido aroma de ouro multicor.
Fulgor das nuvens, com todo o seu calor,
só a sombra do Sol protege assim.

São líquidos seus raios, outrossim:
delírio essa cascata em pundonor.
Os raios me recobram, no frescor
do escudo protetor de um serafim.

(Eu deveria dizer: "de um querubim",
que são anjos guerreiros, mas aqui
as coisas se inverteram.  Serafim

virou o anjinho sedutor que sempre vi
acompanhando a Virgem.)  Mas enfim,
não se pode combater ao Sol daqui...

SOMBRA DA ÁGUA VIII

Voltemos, pois, ao Sol que me ilumina,
com sua sombra de feição divina,
que me persegue, quando se aproxima
demais de mim, nos dias de verão,

porém que me conforta o coração,
quando sua sombra penetra em meu pulmão
e me enche de estranha exultação,
quando o rigor do inverno me vindima.

O Sol corre em minhas veias e alimenta,
que toda erva nasce dessa luz
e da umidade que brota desde a Terra

e é a sombra do Sol que me sustenta,
quando aos portões do sonho me conduz,
nessa modorra que tal sombra encerra.

SOMBRA DA ÁGUA IX

Sombra da lua, que se faz presente
em cada noite passada mansamente,
noites perdidas ao computador,
nesse combate ao fado meu premente,

sombra da lua, sonho agitador,
que me troca o sonhar pelo calor,
sendo acordado, em ritmo frequente,
oculto sonho, em que aqui venho me expor,



sombra da luz, tão pura e cristalina,
sombra metálica, túrbida, argentina,
sombra perfeita para meu calvário,

sombra da fuga para o plenilúnio,
sombra da gula plena de infortúnio,
correndo inversa à de meu calendário...

SOMBRA DA ÁGUA X   

Sombra dos ossos líquidos em poeira,
o meu suor escorre e o mundo espelha,
em arco-íris cada gota se avermelha,
qual refração da vida verdadeira;

sombra dos músculos atrás de minha esteira,
do fígado e do estômago, esta palha
de fruta e de cereal em maravalha
a escorrer de mim, bênção certeira,

que assim devolvo ao mundo que fruí,
nesse usufruto em que a vida não é minha,
mas recebida apenas como empréstimo,

que em mim o esgar alheio revivi,
por curta hora apenas, pequeninha,
até que eu mesmo deixe de ter préstimo.

SOMBRA DA ÁGUA XI

Sou sombra de mim mesmo, intercalada
com as sombras de velhos ancestrais,
com as sombras dos que vejo meus iguais,
com as sombras da tolice revelada.

Sou sombra humana, apenas encarnada
por breve tempo, covil de minerais,
aminoácidos, vitaminas e cereais,
na sombra da água, gárgula inundada.

Na incandescência da água iluminada,
a pedra inteira dissolvida em sais,
os olhos transformados em cristais,


a pele externa macia, sem jamais
esquecer que fui gárgula criada
para calha das antigas catedrais!...

SOMBRA DA ÁGUA XII

É desse modo que a sombra faz-se luz,
sombra do sol envolto no nevoeiro,
sombra do sonho sobre o travesseiro,
sombra da lua, em cristalina cruz...

Sombra dos órgãos revelados nus,
sombra da poeira que ergue o bandoleiro,
sombra do féretro final do carroceiro,
sombra da sombra que à glória me conduz...

Na sombra morta das épocas passadas,
sombra indecisa do futuro incerto,
sombra sem pouso no ramo inexistente,

desse presente que corre para os nadas,
fechada a chama do futuro aberto:
a sombra da água, a gotejar contente...