segunda-feira, 2 de maio de 2011

A LONGA RECORDAÇÃO



Éramos quatro, no início do caminho:
Robert e William, Maria e Susana.
Seus sobrenomes não repetirei;
Basta dizer que, por estranha gana,
Caprichos do destino, em seu carinho,
Começavam por "A" --- mais, não direi.

A e A, B e B, Bob e Bill, os dois casais,
Decidimos seguir a velha trilha,
Seguida desde o século anterior,
Dos Apalaches, nos montes que perfilha
E nos seus vales, sendas que jamais
Tornarei a seguir, com tal vigor...

Acampávamos em tendas e cantávamos,
Fazíamos amor sob as estrelas,
Era uma trilha segura e muitos mais
Encontrávamos na senda, jovens belas,
Rapazes vigorosos; conversávamos
Até seguir em frente; e os eventuais

Companheiros perdíamos em marcha.
Às vezes trabalhávamos, dia ou dois,
Para seguir avante: alternativas
Sempre era possível encontrar depois,
Ao acaso das vistas, na demarcha
Das novidades sempre redivivas...

Maria quis voltar, após semanas,
Alegando cansaço, mas bem que eu escutara
A discussão que com Bob ela tivera,
Depois da noite em que me visitara,
Depois de combinar trocas insanas
Com minha Susana; e que prazer me dera!... 

Bob ficou mais três ou quatro dias:
E então partiu também: e éramos dois,
A minha Sue e eu, em pleno amor,
Até que ela cansou, já bem depois
E decidiu que eu poderia aos guias
Pedir orientação: deixou-me a tenda e a dor.

Levei-a a uma estação rodoviária,
Nos despedimos com um longo beijo,
Seus cabelos vermelhos me abraçaram...
Mas não voltou atrás: e quis o ensejo
Que sozinho eu ficasse na diária
E longa senda que meus pés trilhavam...

Eu decidira seguir até o fim:
Se ela me amava, por mim esperaria,
Mas eu queria, no ardor da mocidade,
Fruir dessa experiência e pressentia
Que algo importante me aguardava, enfim,
Nesse longo caminho da saudade...

Um dia, afinal, cheguei ao Cemitério
De longas filas brancas, tantas cruzes
Em Gettysburg, marcavam aos milhares
Sulistas e nortistas, entre as urzes,
Naquele vasto campo e eremitério:
Bandeiras junto às tumbas, tantos pares...

As brancas filas pus-me a percorrer,
Sem um destino certo: parecia
Apenas a olhar: nomes sem fim:
Tenente, capitão, major, tanta elegia
Nos nomes desses mortos reviver...
E fui andando sem rumo, até que, enfim,

Um túmulo maltratado a atenção
Me chamou:  a cruz, meio partida,
A lápide de musgo quase recoberta...
Não sei quê me levou a tal guarida,
Por que me despertou tanta atração
Aquela tumba, na vastidão deserta.

O certo é que o coração me trepidava,
Enquanto me ajoelhei para a inscrição
Conseguir ler, saber qual militar
Morrera na batalha...  sem razão;
E cujo corpo ainda descansava,
Debaixo dessa pedra tumular. 

Limpei o musgo: "William", como eu;
Nome comum; "Lewis", também...
E então meu dedo limpou o sobrenome:
As letras vão surgindo e já me vem
Que era "Geddes" -- o mesmo nome meu!...
E o choque então minhalma me consome!

"William Lewis Geddes", um tenente,
Que morrera pelo ideal confederado,
Segundo me informava essa inscrição!...
Meu coração bateu descompassado.
Mas como esse meu passo indiferente,
Me tivesse conduzido, que intenção

Oculta havia, em me levar ali,
Àquela tumba obscura e maltratada,
Cheia de líquens, musgo, ervas daninhas?
O que levara minhalma atribulada
A ajoelhar-se tranquila, bem aqui,
No meio dessas cruzes tão mesquinhas?

Isso foi fato.   Mas tive, no momento,
Uma ilusão, talvez só fantasia:
Que recobria a carne de meu braço
A manga acinzentada; e que trazia,
Nessa túnica rasgada, num portento,
Manchas de sangue e o furo de um balaço!...

Ergui-me então depressa, que a atração
Eu tinha de romper...  Era a camisa
Verde que usava antes: nem o sangue,
Nem o rasgão, nem sequer a tal divisa
Apareciam mais...  Tudo ilusão...
Meus dedos pálidos e meu rosto exangue.

Cabelos arrepiados, calafrios
Correndo pela espinha, já recuei,
Pensando até em fugir... Mas li de novo.
E ali estava o nome, tal que usei,
Nas madrugadas daqueles dias frios,
Marchando para a morte por meu povo. 

Claro que foi estranha coincidência:
Fiz uma prece por esse morto antigo,
Dei as costas ao túmulo, fui embora;
Mas, num impulso, olhei para o jazigo:
E já em nova ilusão dessa vidência,
Vi ajoelhada ante a tumba uma senhora,

Cabelos negros, lisos, até a cintura,
Toda de negro, igual... E, pela mão,
Trazia duas crianças, um menino
E sua irmã; de novo, o coração
Pôs-se a bater, num medo, de mistura
Ao reconhecimento, em desatino,

De que aquela mulher era a viúva,
Morta também há décadas; e até
As duas crianças: todos do passado.
Pisquei os olhos... E juro, por minha fé,
Que ninguém estava ali, só a luz fulva
Do sol sobre o capim meio amassado.

Saí de Gettysburg, pela estrada,
Até encontrar a mesma trilha antiga,
Sem contar a ninguém o meu espanto.
Foi como verso tirado de cantiga:
A mais estranha experiência da jornada
Que tive pelo mundo, nesse encanto

Que tanto me espantou, que até apaguei
A memória da mente, ano após ano:
Garanto que esqueci-me, totalmente,
De traumático que foi o desengano...
Por longo tempo, nem sequer lembrei,
Ao fato fantasmal irrespondente. 

Alguns meses atrás, ouvi canção,
Cantada então pelos confederados:
Uma porta se abriu, dentro da mente
E tudo me jorrou, fatos passados,
Que buscara ocultar do coração...
E como esse esconder fora eficiente!...

Pois ver meu nome naquela sepultura,
Numa tarde de sol... Que coisa trágica:
Ver a mulher que amara em outra vida!..
Foi realmente uma experiência mágica,
Porém que me causou tal amargura,
Que não queria a memória revivida...

E agora, ela está aqui, não vai embora,
Bob morreu no Viet Nam; elas, porém,
Saíram de minha vida, sem lembrança.
E a cruz partida, eu apaguei também,
Escondida no estertor de meu outrora,
Por conservar um resto de esperança...



Convido  a todos  para o  lançamento  do  meu  livro, Horóscopo Cigano, que acontecerá no dia  20 de maio (sexta-feira)  às 18 horas, na Casa de Cultura Pedro Wayne  (Av. Sete de Setembro, esquina General Netto, Centro, Bagé).

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