quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

SEIXOS DE CHUMBO




SEIXOS DE CHUMBO I

Os seixos rolam pela ribanceira,
são levados pela força da corrente,
uns contra os outros batem bem frequente,
nessa liquida e pura cremalheira.

Cada criança rola, por inteira,
do ventre de sua mãe, inexperiente,
mas tão logo se mistura a outra gente
suas arestas vão quebrando na ribeira.

Por mais que seja em casa protegida
e até acredite ser do mundo a dona,
não demora a perder tal ilusão...

Pois somos seixos, através da vida
e aos entrechoques, aos poucos, se abandona
toda esperança, por desilusão!...

SEIXOS DE CHUMBO II

Também te entrechocaste, com certeza,
contra os outros humanos ao redor;
em cada choque uma ilusão menor
desliza pelas águas da incerteza.


São grãozinhos de areia, sem beleza,
que descem para o fundo, na indolor
mistura nessa lama, na incolor
massa alisada pela correnteza.

E nem brilhar conseguem tais grãozinhos,
são alicerce do correr da humanidade
e, lá no fundo, nunca chega a luz.

Nessa camada os sonhos pequeninhos
se fazem lodo para a eternidade,
enquanto o velho seixo a água conduz...

SEIXOS DE CHUMBO III

Eu me entrechoco comigo a vida inteira,
nesta minha permanência na cidade,
na mesma casa, em igual velocidade,
na mesma peça em que vivo a pasmaceira.

Bato na sombra de mim, a sombra herdeira,
enrolada em sua própria opacidade,
sobreposta em camadas nesta idade
a que me sobreponho, derradeira...

Quando me deito na marca que deixei,
nesse modelo de constante gesto,
em tanta noite a sós, vivida a esmo,

eu beijo a sombra que sempre permutei
porque, afinal, pode haver maior incesto
que o realizado com a gente mesmo?

SEIXOS DE CHUMBO IV

De meus seixos já de há muito foi-se a aresta:
se arredondaram nos embates invisíveis,
por mais que os choques sejam inexauríveis,
nas cuícas e matracas desta festa...

Perderam todo o gume e corte nesta
desenfreada corrida aos perecíveis...
Seixos rolados, conchas impossíveis
de conservar a forma em cor funesta...

Dir-se-ia que, assim, nada mais quebra...
Mas há espaços na mesa das esferas:
cabe essa areia que perdeu-se a esmo.

Porém não só de pó.  E nem requebra

a minha substância nas esperas
e nem consigo me encaixar comigo mesmo!

SEIXOS DE CHUMBO V

Envolto em adrenalínico esplendor
(Toda a ansiedade envolta em adrenalins,
eu busco em vão os meus epinefrins),
como contraste ao "verme vencedor"... (*)

Talvez sair devera após o amor,
(mas sou cercado por serotonins,
no banho multicor dos endorfins),
sibarítica a noção de tal ardor.

Mas enquanto me entregar ao hormonal,
sinto que vivo na eletricidade,
ânions e cátions em eterno sexo.

Em suas sinapses de viço natural
eu sou enzimas de imaturidade,
amotinadas contra qualquer nexo.

(*) Um abraço a Edgar Allan Poe.

SEIXOS DE CHUMBO VI

Mais perto quero estar, amor, de ti,
não apenas em encontro intermitente,
mas que seja esse beijo permanente,
tal qual antigamente pressenti.

Eu quero estar contigo sempre ali
onde cálido é o amor e inconsequente,
onde se quer amor sempre frequente,
no perfumado engano em que vivi.

Que seja assim, na dor e na tristeza
ou na alegria de um perpétuo abraço,
em que todo o afastamento seja nulo,

na eternidade feita de incerteza,
ambos envoltos no mesmo chumaço,
como dois bichos-da-seda num casulo.


SEIXOS DE CHUMBO VII

Rolam os seixos quais pedras de rim,
rasgando, lentamente, os seus canais.
Pelos esfíncteres alargam-se, fatais,
nessa dor fina de lacerante fim.

Até a uretra abrem caminho assim,
é demarcado por cansados ais;
finalmente, a pedrinha chega ao cais
e para o mundo é expelida, enfim...

Também a alma possui seu fel e urina,
que se derramam em plena maldição,
corrompendo de vermelho todo o ouro.

E é com esse malquerença que se fina,
porque na alma não existe micção
e tais seixos se acumulam em desdouro.

SEIXOS DE CHUMBO VIII

Não é a lamúria do ressentimento,
nem a exclusão ou mesmo qualquer dor
que nos torna mais nobres nesse ardor,
abrindo a alma para o enriquecimento.

Muito ao contrário, é pelo sofrimento
que se acumula impureza até maior.
A penitência nunca tem valor
se não purgar a mesquinhez do sentimento.

Bem ao oposto do que clamam confessores,
prelados e profetas pela história,
o que nos faz sofrer, nos amargura

e é tão somente o sucesso dos amores,
ou outro alvo qualquer de justa glória
que nossa alma adorna e torna pura.

SEIXOS DE CHUMBO IX

Pois todo amor é luz, seja qual for
o objetivo final que nos alenta:
seja amor por mulher que se apresenta,
quer seja amor ideal, amor de flor,

quer seja amor filial, fraterno amor,
quer seja amor ao seio que alimenta,
quer seja amor ao pão que nos sustenta,
quer seja o êxtase do divinal cantor,

cuja canção o mundo ainda conserva
desde o dia inicial da criação;
quer seja o amor por esse vasto oceano,

quer seja amor por coisas em caterva,
quer seja amor por vento em viração,
é tudo o mesmo amor e amar é humano.

SEIXOS DE CHUMBO X

Mas quando essa amargura nos devora,
quando amor é polvilhado no pilão,
seixos de chumbo invadem o pulmão:
pura areia respiramos nessa hora.

Por isso, tanto dói quando demora
a chegada do amor ao coração,
a saída do amor, desolação,
a evanescência desse amor de outrora.

Por isso, tanto rói esse polvilho
do amor esfarelado no monjolo:
percorre as veias e se solidifica,

em mais seixos de chumbo, falso brilho,
calcificados no coração do tolo
em que o abandono pousou e o mumifica.

SEIXOS DE CHUMBO XI

E permanecem os calos da nudez,
amarfanhados na vazia utilidade
desse tremor que tal futilidade
vai aplicando desde o calcanhar,

até chegar ao próprio polegar,
as carnes amanhando por vaidade,
nessa impureza da espontaneidade,
nessa esperança que é desfaçatez!

Pois no suor escorre cada seixo
ou saem pelos olhos ou saliva
causando o falso alívio da bonança,

mas no caminho que percorro deixo
seixos de chumbo e a areia então se ativa
e retorna a meus pés na mesma dança.

SEIXOS DE CHUMBO XII

E no entretanto, entesouro cada seixo
que já engoli na vida desregrada,
cada ilusão por cascalho demarcada,
cada prazer perdido por desleixo.

Crucificadas as mãos em cada freixo,
toda visão de ouro avermelhada,
toda dolência de amor abandonada,
somente os seixos em memória deixo.

E assim, vou empilhando ao coração
cada doçura em azedume consagrada.
Porém cada cicatriz acumulada

e cada tentativa fracassada
são pequenas migalhas de ilusão,
mil pedrinhas de minha vasta coleção.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

GRÃOS VAZIOS



GRÃOS VAZIOS I

Na vida coletei pequenos nadas:
sorrisos, bagatelas, três suspiros,
talvez só dois... E a sobra desses giros
são flores, em meus livros amassadas,

ressequidas e murchas, mas trançadas
em mechas de cabelos...  Quase círios
são as gotas de suor de meus martírios,
na estupidez das ocasiões fanadas.

São os restos esgarçados dos encontros
que esvaíram depois, rostos benditos,
são tantos lábios e beijos que esqueci.

Um fardo de lembranças, desencontros
propositais às vezes, ou malditos...
Só não consigo é me esquecer de ti.

GRÃOS VAZIOS II

A mansa aranha faz a tessitura.
No orvalho é um resplendor: tece alimento.
Em minha linfa, das feridas banimento,
tecem plaquetas do coágulo à feitura.

Os meus fagócitos, reunidos em mistura,
devoram-me inimigos, num portento.
Travam combate de comandante isento,
numa estratégia cuidadosa e pura.

No coração não tenho tropa igual:
os ferimentos prolongam-se, dolentes;
de certas dores jamais eu me esqueci.

Nesse banquete... falta o prato principal:
os leucócitos enfraquecem os meus dentes,
mas não conseguem devorar a ti...

GRÃOS VAZIOS III

Eternamente te amo e tu bem sabes:
ao som humano da blasfema prece,
meu ser todo desnudo se embranquece,
odiando tais vazios...   Só tu cabes

em seu preenchimento.  Ah, menoscabes
embora meus flagelos, sei não esquece
a mente tua da mente que padece,
em desvelos tiritantes.   Não te gabes

de que és senhora minha.   Nada és.
Eu sou escravo teu, mas relutante
e não me entrego a ti por te dever...

É somente no altar de antigas fés
que deposito, em oblação constante,
este holocausto em bruma a se perder. 

GRÃOS VAZIOS IV

A mácula de ti dorme em meu peito,
como fungo entranhado na minha pele.
Não há unguento ou poção que a mancha dele,
nem tisana que da mangra o negro preito

possa afastar.   És sintoma sem defeito,
hifas profundas em lesão que sele
e te insidiaste ao ponto que só expele
esta úlcera, um corte tão perfeito

que consiga retirar a carne interna
e me deixe malferido e moribundo:
ferida és tu, que inteiro me recobre.

Se me esfolar de ti, em morte eterna,
serei dilacerado ao mais profundo,
sem que resíduo sequer ainda me sobre.

GRÃOS VAZIOS V

Nem é que queira de teu ventre o gosto
proclamar para todos neste instante.
É que hoje brota o verso extravagante:
sonho de ópio temperado a mosto.

Haxixe e coca, cachimbos de desgosto,
alucinado fiquei, sem nunca, arfante,
ter ingerido os festins que me garante
esta farmácia ilegal à qual exposto

me encontro a cada dia, no ardor bélico
do dealbar em mim, psicodélico
nem do deus que concede a embriaguez.

Não preciso de drogas, sou freguês
do fumo de ti mesma, és marijuana,
lembrança pura que a mente me engalana.

GRÃOS VAZIOS VI

Um besourinho se prende ao meu cabelo:
mensagem tua, sem dúvida, um bilhete
que a murmurar em meu ouvido inflete,
amor perdido em recado de atropelo...

Ouço o sussurro, réstia de desvelo;
pelas antenas a insinuação se mete,
de gesso e de argamassa... Numa enquete
de sinovial sondagem me enovelo.

Um pouco eu busco, à luz de minha vidraça
o farfalhar senil do magro escaravelho:
mostra-me o vidro um rosto taumaturgo.

E uma faixa de cetim por mim perpassa,
mensagem refletida em meu espelho,
não mais do que um crisol, que aflito eu purgo.

GRÃOS VAZIOS VII

São nove vagalumes e um desenho
se destaca no chão ao céu noturno;
são estrelas de giz em dom soturno
e quanto menos olho, mais me atenho.

Não é deste verão que em busca venho;
eu sou de um outro tempo, de outro alburno,
eu sou de um outro espaço e aqui me enfurno,
perdido do universo que retenho.


Nem sei que língua falo neste instante:
o código esqueci dos pirilampos,
do vasto resplendor tornei-me escravo.

De vista aberta, em lágrima brilhante,
enfrento essa esquadrilha em canto bravo
e novos códigos decifro pelos campos.

GRÃOS VAZIOS VIII

Existe sempre um círculo vicioso,
em que amores se transmitem, em ciranda,
sem que o real amor, por mais que expanda,
não esbarre no desejo vigoroso

daquela por que anseia e que, teimoso,
se prende a um terceiro, em outra banda,
atrás do amor da quarta... E a sarabanda
continua nesse mundo caprichoso.

Mas olhe em torno: talvez seja essa quarta
que lança um olhar firme e bem lhe vê,
como o parceiro ideal que tanto quer.

Amor não se controla e não se farta,
mas não precisa dominar você...
Deixe a ciranda agora.   Ou assim que der...

GRÃOS VAZIOS IX

Amor não significa segurança,
nem garantia representa a companhia:
primeiro veja que emoção sentia
a sua parceira; só depois crie esperança.

Mesmo ao dizer que o ama, em esquivança
pode negar-se, por coisas que fazia
e não lhe participa... Assim, o que queria
será de amor somente uma lembrança.

Beijos não são contratos, já foi dito;
muitas vezes, sua esperança se dilui:
todos queremos alguma solidão.

Quem insiste em estar perto, até maldito
poderá ser, que o beijo que se frui
só foi um beijo e não pura emoção.



GRÃOS VAZIOS X

Vou calcular minha vida em três alqueires:
o primeiro é bem grande e nele ponho
os cereais que devolvo a esse medonho
coletar de meu sangue por impostos...

O segundo é o maior desses deveres;
a grande tulha em que cereais deponho:
alimenta a família.  E então, eu sonho,
em guardar a semente de meus gostos

nesse terceiro alqueire, pequenino,
em que não cabe mesmo muito trigo
e tanta vez nem se enche por metade.

É nesse alqueire que guardo o som do sino
que conserva a esperança, em que me abrigo,
de um dia enchê-lo poder, à minha vontade.



GRÃOS VAZIOS XI

Já estou cansado de recontar amores
que me escorrem dos dedos, grãos de areia,
que o fulgor do crepúsculo incendeia,
nas palmas de minhas mãos, em mil temores.

Já estou cansado de relembrar sexores:
a minha quota já tive, que me enleia
na lembrança desses corpos, pele e veia
encadernados em tantos estertores...

Apenas deixo escoar por entre os dedos
essas lembranças minhas (e as de outros),
filtradas por meus ossos, no abandono...

Quanto revelo em meio a tais segredos!
Os relinchos fogosos desses potros
que cavalgam incontidos no meu sono!...





GRÃOS VAZIOS XII

Eu como o Sol a cada refeição,
que é dele que provém todo o alimento;
porém, para emoção e sentimento,
eu busco a Lua, em taças de ilusão...

Eu olho a noite pelo coração,
que tem olhos para ver nesse momento,
bem mais sensatos que o fraco rendimento
dos olhos baços de comum visão...

Assim, eu bebo o Sol e como a Lua,
que me dão seu vigor e nutrição,
melhor que trigo ou carne de animal.

Assumo a natureza, toda nua,
que nos meus braços se faz revelação
desse amor, que sei bem ser irreal.