sábado, 29 de fevereiro de 2020




TÉSSERAS AZUIS I (*)

Enxergo azul a campina de meus sonhos
(lá não existe horário de verão);
de fato, é sempre outono e saberão
que nunca faz calor nem frios medonhos.

É azul esta campina em tais bisonhos
sonhos meus, nessas sombras sem paixão,
quando percorro a pradaria em suspensão,
sem pisar em rosetas.  Os pés exponho

à fragrância da relva...  Logo eu,
que sempre ando calçado, mesmo em casa
e nem sequer de meias piso o chão;

mas nesse mundo de sonhos que é só meu,
meus pés são verdes, sobre os quais se embasa
a prata amarga do meu coração.
(*) Pedrinhas coloridas com que se fazem mosaicos.

TÉSSERAS AZUIS II

Eu acredito que ali vivam sentimentos
por trás do corpo nutrido com vaidade;
eles amam, talvez, a tua saudade,
as lembranças da infância em seus momentos

a liberdade dos mil agastamentos
que realmente é a desumanidade;
o que se exige das crianças em tenra idade
já se iniciando modelo e treinamentos.

É bela essa mulher.  Bolinhas rosa
contra o estofo azul e a pele clara
que não se expôs demais à luz do sol

e aos refletores se mostra tão airosa,
imagem verde e certamente cara,
para mostrar-se a todos qual farol.

TÉSSERAS AZUIS III

Anfitrite terá assim de desnudar-se,
se quiser dos brasileiros a atenção;
poucos poetas há.  Têm mais paixão
por futebol, cachaça e carnaval

e nos desfiles vêm a revelar-se
de corpo inteiro, em pose natural,
essas mulheres de corpo escultural,
nesses requebros carnais sem emoção.

O que sobra, afinal, para Anfitrite?
Ao requerer do povo a adoração,
terá primeiro de a todos convencer,

nudez perfeita que ao desejo incite,
para depois escutarem a pregação
que a seu louvor o possa converter.


TÉSSERAS AZUIS IV

Ou quem sabe se é o oposto verdadeiro,
olhares cínicos, acostumados à nudez;
todo o mistério feminino se desfez:
quadrís e seios, tudo é corriqueiro.

Bikinis, Topless, o corpo inteiro,
ostentado sem receio de sua tez
queimar-se sob o sol, desfaçatez
que tanto câncer provoca bem ligeiro...

Quiçá atenção maior despertaria
qualquer mulher vestida inteiramente,
mesmo que ondas sua túnica formassem,

logo após que das vagas surgiria,
majestosa em seu porte diferente,
perante o qual os olhares gravitassem...

TÉSSERAS AZUIS V

Talvez ainda tenha de cercar-se
de nereidas desnudas num cortejo,
a despertar nas vistas o desejo
de finalmente a ela consagrar-se.

Anfitrite poderia assim mostrar-se,
vestida em majestade, como almejo
e dominar tanto o Amazonas como o Tejo,
qualquer fosse o rio ou lago a encontrar-se.

Mas como Hera, a domesticidade
e a proteção do lar assim comanda,
Anfitrite requer fidelidade,

embora o mundo encha de aventura,
para o dever materno a mulher manda,
como o sinal supremo de ventura!

TÉSSERAS AZUIS VI

E assim devolvo meu olhar para a mulher,
qual azulejo em meu computador,
com mais admiração do que sexor,
perfeito o corpo qual hoje requer

o ideal estético, do grego o copiador,
num avaliar que fértil vê-la quer,
que duplicar a si mesma é seu mistér,
não sendo apenas feita para o amor.

Ninguém acuse meu sonho de machismo,
também a vejo como sendo atleta,
mais o encarnar de tudo quanto é belo,

ao homem superior no feminismo,
satisfazendo meu ideal de esteta,
com que a admiro no mais puro zelo!

TÉSSERAS AZUIS VII

Nem todos são assim.  Talvez um gole
em seco, a intimar masturbatório,
em breve instante de prazer inglório,
talvez a imagem rudemente esfole;

talvez imprima seu retrato e o cole
numa parede, igual que em clerestório,
talvez o beije qual sacro cibório
que a imaginação fremente mais empole.

Mas eu a olho e vejo nos seus traços
e no seu corpo, dos seios à vagina,
muito mais que um objeto do sexual;

não cede a deusa o gozo dos abraços,
mas beijos puros da espuma peregrina,
que há de gerar em parto natural. 

TÉSSERAS AZUIS VIII

Nunca a encontrei. Que a possa ver duvido,
salvo em mosaico do templo a contemplar
na campina de meu sonho azul do milenar;
paixão não tenho, Posêidon é o marido.

Não sou amante de um amor perdido,
com tantos gregos assim a disputar,
não vejo em tésseras meu desejo despertar;
se ali todos podem ver, eu mesmo olvido.

Mas a seu jeito, ela exerce um sacerdócio,
sacro consolo para os solitários,
longo consolo para a alma de um poeta

e se a descrevo agora, em puro ócio,
roubado a meus deveres multifários
é que um rasgão da alma me completa.

TÉSSERAS AZUIS IX

Sempre apreciei a visão do corpo humano:
é a minha raça, afinal, e lhe pertenço;
ante a nudez da estátua eu me convenço
da antiguidade de meu ideal arcano.

Percebo algo realmente sub-humano
naqueles que contemplam de olhar tenso
certa imagem de mulher em painel denso,
nessa malícia de pecado insano.

E assim encontram na obra do escultor,
na perfeição do corpo masculino,
sentido outro que o padrão mais peregrino,

criado pelos gregos do esplendor,
reduzindo o artista à sua feição,
ao lhe lançarem homossexual acusação.

TÉSSERAS AZUIS X

Tampouco venham me acusar de homofobia!
Cada um o seu prazer que vá buscar
onde quer que sua tendência o inclinar,
ou se restrinja tão só à fantasia,

mas que não venham assim prejudicar,
na interpretação do que a si próprios afligia
essa imagem do artista em sua magia,
que simplesmente não conseguem alcançar!

Quanta pobreza em uma arte sem o nu!
Houve uma orgia de mil panejamentos
sobre os afrescos da Capela Sixtina...

Ou de Miró a desprezar o fatiar cru
do corpo humano em tantos fragmentos,
como um espelho de nossa humana sina!

TÉSSERAS AZUIS XI

Eu volto à imagem reclinada em azul,
sua cabeça a deitar languidamente,
sobre um braço dobrado casualmente,
enquanto o outro se atravessa dul-

cemente, com os dedos a brincar
contra essas ondas frementes de umidade,
que na enseada escorrem sem maldade,
pelo prazer de suas costas carinhar.

E assim contemplo as dobras sugestivas,
empapadas de água, um nó desfeito,
qual Aphrodite a prometer prazer;

desvio o olhar para suas vistas pensativas:
ela é Anfitrite com o ventre seu perfeito,
vida marinha em sua miragem conceder.

TÉSSERAS AZUIS XII

Mas eu não vou até o mar por Aphrodite,
a ver espumas de mulher flutuantes
e nem à praia irei por Anfitrite,
para pregar a religião dos navegantes.

Eu só preciso que a ilusão me dite
como escrever meus versos delirantes,
que essa visão onírica me incite
a tal derrame de cânticos constantes.

E nem sequer no sonho a esculpiria,
nem se pintor eu fosse, a pintaria,
para guardar o transitório feminino;

mas mulher bela eu amo, por saber
que envelhece um dia e há de perder
o seu poder de atração quase divino...



LUPA
William Lagos – 13 ABR 2009 

lupa I

nem sei se poderia, de fato, acompanhar,
com velhos olhos gastos tantos signos.
não vejo jeito de tornar benignos
os longos dias que passo a revisar,
sem ter prazer,
por puro esforço,
as traduções que fiz, buscando erros:
ler e reler,
dores no dorso,
só na folia do verso a refugiar,
nos disfarces mais podres e mais dignos,
em falas brandas e vazios malignos,
que me permitem viver, sem nem notar!

lupa II

porém enquanto esse passado é conferido
mais um formato estranho é sugerido,
mas não consigo deixar livres meus versos
por mais que os tenha pelo ar dispersos,
meu coração ferido
já tem rido
muito mais que meu viver justificou.
assim cantou
e dessangrou
no inútil verso que nem foi poema,
na murcha flor que nem foi açucena,
na opacidade da angústia que envenena,
na vida morta dos corações rasgados.

lupa III

este barulho não me vem daqui:
pertence a outra parte deste mundo
àquele som por vezes iracundo,
àquela vida que, às vezes, assisti,
quando se adense,
mas que não vence.
esse fragor, bem sei, não vem de mim:
apenas ouço ao recruzar a rua
e não me atenho,
pois não me evoca uma esperança nua,
nem me parece revelar, assim,
por que aqui venho.
esse ruído pertence a outras pessoas:
escuto de passagem, impoluto
e nem me agito,
embora nos ouvidos me ressoe,
eu ouço apenas e nem sequer escuto,
tão forte grito.

lupa IV

estou apenas adiando este momento,
em que terei de iniciar o movimento,
a deslizar pela fresta o pensamento,
a deslocar para o fundo o sentimento
uma vez mais
no meu jamais,
me prostituo, sem arrependimento:
tal é minha vida
e dou guarida
nos meus neurônios, sem comedimento,
às ideias de outrem, em travestimento,
que verto ao português, em desalento,
na espera crua de um mísero portento.

lupa V

desta forma, o poema é reticência:
pode ser tudo ou nada, em empatia.
de teus anseios a plena antipatia,
pelo desprezo de toda a tua sapiência,
no descaso profundo do que és.
junto a teus pés
eu o deponho.
talvez julgues meu discurso como ofensa
ou o encares com ressentimento.
feio portento
que nem ao menos
te disponhas a provar de meus venenos.
mas lembra sempre que o verso não é meu:
pela leitura os aceitaste plenos
e neles provas um veneno que foi teu.

lupa VI

se não te serve
a plenitude da quimera que conserve
intacto o bagaço de teu sonho vão,
se não te basta o vácuo no ausente coração
[nada melhor que o vazio a preencher o nada],
toma a bênção desfolhada
e faz dela rodízio
e dá-lhe pleno homízio.
na implosão da alma,
revive a alheia calma
da plena desistência.
preenche teu vazio com ramos de impotência,
ascende a escada fria que te conduz à lua,
espalha tuas entranhas nas pedras desta rua
até ver-te completa,
em total obsolescência. 

lupa VII

sou trovador sem possuir um alaúde,
pois de fato encontrar eu nunca pude
na realidade tal instrumento puro,
mesmo troveiro, encontro-me no escuro,
a flauta experimentei
mas não o flageolet.
não sei tocar fresteu ou chalumeau,
nem o cromorne,
nem o saltério,
nunca soprei qualquer trompa marinha
nem de vielle ou mandora se avizinha
meu pobre silvo de negro rouxinol
cantor da noite e adormecido sob o sol.

lupa VIII

não obstante, sou um menestrel,
mas permaneço preso no quartel,
onde castrar pretendem meu anseio
e meus dedos esmagar com negra luva.
tendo receio
de amor no seio,
querem prender meus sonhos em cadeias,
forçar-me a ouvir o canto das sereias
ou das sirenes,
hárpias modernas.
mas tais cantigas afastam as antigas
sem ter sabor de novos horizontes
e eu não queria me banhar nas fontes
em que o vinho se tornou de novo em água
para minha mágoa.

lupa IX

quero dormir sob o farol do céu,
nos braços da alvorada cristalina
a me orvalhar com saliva de menina,
furtando à lua o seu galhardo véu.
quero vogar
sem sufocar,
pelas ondas multicores do deserto,
entre os corvos passear de peito aberto,
um osso por bengala
em vasta escala,
fazer amor nos píncaros dos montes,
a escutar das cabras os repontes,
enquanto a mim se entrega redolente
uma pastora sempre impenitente.

lupa X

quero sonhar no derradeiro instante,
que já desembarquei no seu afeto
e de sua atmosfera fiz meu teto
por mais que seja um gás asfixiante.
pouco me importa
se o canto corta.
quero beijar os quadris de galateia,
de pigmalião roubar a antiga deia
será minha amante
no meigo instante,
ele que abra outra rocha com o escopro
e compartilhe do beijo delirante
da nova vênus esculpida nesse instante,
enquanto eu mesmo me aninho nesse sopro.

lupa XI

quero beber um jato dessa espuma
que jorrou da serpente e fez-se a cuna
de afrodite em nascimento virginal,
que nem sequer mãe teve afinal
e ingressar de zeus
na sua cabeça,
a esperar que lá dentro não me esqueça,
que venha hefesto com poderoso malho
e à luz do dia me inteiramente espalho
como pallas, da armadura cada peça,
de sua quadriga
serei o auriga.
que mnemósine seja a titã fiel
e que themis me sirva o hidromel,
mesmo que o néctar esteja hoje em falta
e azeda a ambrosia que me assalta.

lupa XII

que meu delírio seja mais permanente
do que o cosmos para mim indiferente,
meu fadário a encarar na inversa lente
do telescópio de olhar opalescente.
de meu destino
tangendo o sino
para a missa de meu sétimo dia
que em paramentos em mesmo rezaria
minha mortalha
tecida em palha
e seguirei na praia em alpercatas
das algas mortas pisando as cinzas matas
lupa de areia que de fato nunca houve,
meus búzios a soprar que ninguém ouve