segunda-feira, 30 de janeiro de 2017





SORRISOS AZUIS (2010)
Duodecaneto em Vinte de William Lagos,

SORRISOS AZUIS I  (2010)

Antigamente, eu ria com frequência,
motivado pelos mais pequenos nadas.
Havia riso nas luzes encantadas,
na música e nos quadros da ciência.

Meu pai também, se ria às gargalhadas
e isso me deu, por certa irreverência,
a noção mais comedida da sapiência:
ria de formas menos desbragadas...

Em tudo via ironia nesta vida
e conservava sempre o bom humor;
sempre um sorriso no rosto me luziu.

Mas agora, tanta mágoa recolhida,
sem esperança de um viver melhor,
perdi meu riso e nem sei onde caiu...

SORRISOS AZUIS II

Esse riso que eu portava na minha face
era, talvez, tão somente afivelado,
máscara apenas, papier-maché dourado,
um retoque, um enfeite, só um repasse...

Era, por certo, um sorriso só de lado,
meio sorriso, da ironia o enlace,
uma persona que para os outros dá-se,
esse fantasma de mim, servo apressado.

Sardônico, talvez, porém presente,
não só nos lábios, mas do olhar no brilho,
pelo saber de que nada é o que parece...

Talvez usado em público, somente,
mas que deixei num cabide ou qualquer trilho,
ao dirigir a mim mesmo alguma prece...

SORRISOS AZUIS III

Eu me apego a fragmentos de esperança,
por minúsculos que sejam ou pareçam
tais pequenos cristais, que nunca cessam,
de surgir das areias qual em dança.

Pois minha fé, com pazinhas, não se cansa
de as revolver, na espera de que desçam,
que na chuva ou no orvalho não me esqueçam
até o ponto em que a memória alcança.

Cada pequeno grão, com intensidade
eu amplifico, nesse afã de garimpeiro;
busco palhetas de ouro deslumbrantes,

embora saiba, com racionalidade,
que essas fagulhas de um futuro alcandoreiro
são só caquinhos de vidro rebrilhantes.

SORRISOS AZUIS IV

Eu vou usar fragmentos de efusão
qual palhetas de luz, tecla dourada,
revestimentos para mim, um breve nada,
mas sedutores como penas de pavão.

Quando os prender ao pescoço, sorrirão
nesse fulgor argênteo da risada,
da galhofa de uma boca acarminada:
de alva alegria me assim revestirão.

Talvez eu possa então, de um riso alvar,
ouro de tolos, fazer verdes turmalinas;
(existem pérolas por trás do cálcio liso)

e quem sabe, obterei condão sem par,
um fio de sangue em gotas matutinas,
que me faça recobrar o dom do riso.

SORRISOS AZUIS V

Afinal, esse é um dom de Dionyso,
esse deus que me inspirou tanta poesia,
por mais que falsa seja essa alegria
da embriaguez de temporário riso.

Mas quero os fragmentos, pois preciso
restaurar o fulgor da nostalgia;
desejo o humor fremente da ironia
com que o mundo, sem respeito, eu analiso.

Sejam estilhas de vidro, sejam cacos,
em nada afetarão meu julgamento,
porque é deles que é feita a sociedade;

e com meu riso, eu provarei os nacos
de tanto falso e ímpio juramento
a que se inclina toda a humanidade.

SORRISOS AZUIS VI

Vou procurar, portanto, meu sorriso
em qualquer ponto que o possa ter deixado,
em séria senda talvez abandonado,
no esforço de um dever mais indiviso.

Não me parece ser questão de siso;
talvez num bolso esteja amarrotado
ou no fundo de gaveta foi largado
ou no violino procurar preciso.

Posso ter rido, quiçá, de uma piada,
dessas que atravancam a Internet
e o sorriso desprendeu-se, descuidado

ou se encontra num espelho de minha escada,
em qualquer fenda na qual o humor se mete...
Quem sabe os gatos o tenham afugentado?

SORRISOS AZUIS VII

Nunca se sabe... Gatos são daninhos:
veem um sorriso solto e dão o bote!
Cada patinha veloz como um chicote:
o pobre riso se esconde nos cantinhos!

Nas frestas, nos recantos e escaninhos...
Afinal, quando nasce, vem da glote,
fero e espantoso para qualquer mascote:
atrai a curiosidade dos gatinhos...

Assim pegaram meu sorriso desnorteado
e se puseram a brincar sem pena,
como fazem com ratos ou insetos...

E o coitado escondeu-se, amedrontado...
Talvez eu veja uma pontinha, bem pequena
e o consiga atrair com meus afetos...

SORRISOS AZUIS VIII

Vou procurar meu sorriso em qualquer parte,
quem sabe possa pelas alças o puxar,
sem um pedaço menos firme rebentar
caso num bolso se encontre, sem descarte.

A funcionária é honesta e de boa arte,
se acha dinheiro, vem logo me entregar;
se nas calças um sorriso fosse achar,
iria prendê-lo em alfinete... Destarte

é improvável que perdesse meu sorriso,
caso o tivesse encontrado alguma vez,
mas o traria, bem contente, para mim!

Portanto, é em outro nicho que preciso
investigar o que meu sorriso fez
a fim de se esconder tão bem assim!...

SORRISOS AZUIS IX

Talvez se encontre nalgum álbum de selos
no qual tempo não tive para olhar,
que dirá sob as charneiras procurar
esses risos que me davam tantos zelos!

Quiçá no bolso de um casaco?  Foram belos
os dias de inverno, isentos do penar
que me traz o verão e o fui guardar
trouxe-o da boca num lenço em meus desvelos.

Talvez o encontre no meio dos CD’s
ou nas páginas dos livros – são milhares!
Ou foi varrido para baixo do divã?

Ou entre meus empoeirados LP’s,
guardados com cuidado, sem azares,
num plástico amarrado em fio de lã!

SORRISOS AZUIS X

De onde podia retirar um novo riso?
Talvez o destrançasse dessa aurora
que dizem sorridente, a qual outrora
até avistar podia de meu piso...

Mas não a vejo sorrir mais.  Quiçá de um guiso
pendente de trenós, que noutra hora
ouvi em passeio, na memória que descora,
subindo aos céus sem deixar qualquer aviso.

Quem sabe o encontrarei entre os insetos,
nesse limar esquivo de mil grilos,
no pó dourado que deixam borboletas,

nos fios de aranhas de oito olhos indiscretos,
nos carunchos aninhados pelos silos,
ou nesses vespas que picam como setas.

SORRISOS AZUIS XI

Meu riso encontro nas cartas do passado,
quando minha voz trauteava de esperança,
até o ponto em que a memória cansa,
nos acordes de um descante dispersado...

Encontro o riso em partitura mansa,
quais redigia com o maior cuidado,
que impressas pareciam, lado a lado,
com as que ouvia tocar quando criança.

Encontro o riso nas vozes de meus filhos,
quando pequenos e quando adolescentes;
somos amigos hoje, se bem que raramente

riamos juntos.  Cada qual segue seus trilhos.
São risos fáceis os tirados de parentes,
mas nada trazem de firmeza permanente.

SORRISOS AZUIS XII

Só quando faço o balanço é que descubro
como foi séria esta vida que levei.
Por centenares de vezes gargalhei,
até sentir o rosto ficar rubro,

mas são galhofas fugazes, que recubro
com as fatias de tédio que espalhei,
por entre os goles de sombra que tomei,
pelos panos de tristeza que ainda dobro.

Tudo contado, até mesmo no prazer
eu sentia estar cumprindo uma função:
no verdadeiro orgasmo há pouco riso;

desde pequeno, fui escravo do dever,
mas realizado este pendor de avaliação,
ainda não sei onde larguei o meu sorriso...

SORRISOS AZUIS XIII

Vou procurar os meus risos espalhados
nos gritos estridentes das gaivotas,
nos albatrozes de mil praias ignotas
e nas fragatas com seus pios estridulados.

Nos pelicanos, com seus papos estufados
e nos pinguins dançando suas gavotas,
nos mergulhões de agílimas cambotas
e nos corvos marinhos apressados.

Talvez meus risos por eles devorados,
que acreditaram ser peixinhos cor de prata:
foram risos argentinos, afinal.

Nos longos bicos apenas empalados
de tantas aves de elegância inata,
dilacerando minhalma em carnaval.

FANTASMAS AZUIS XIV

Vou procurar meus sorrisos entre as flores,
em seu pólen multicor e atemporal,
pelos ares espalhado, em imoral
desperdício desgastado sem amores.

Vejo sorrir dos girassóis os estertores:
foram eles que os guardaram, afinal?
Foram poinsétias em canto atemporal,
meus sorrisos de suas brácteas domadores?

Vou procurar nas glicínias meus sorrisos,
nos agapantos ou nas gérberas carmins,
de cada gloxínia em flores raras,

nos caules das papoulas roxos visos,
nas fúcsias estridentes, nos jasmins,
nas estrelitzias de inflorescências caras?

SORRISOS AZUIS XV

Contudo, eu sei que jamais o encontrarei,
que meu sorriso só está dentro de mim,
que no quintal do coração planto jardim,
cada sorriso uma flor que colherei.

Porque ali o bom-humor um dia semeei,
não deglutido por pássaros assim,
nem nas flores gauchescas do alecrim,
nem nos polvilhos dourados que espalhei.

O que saiu, quando o foi, não foi mais meu,
mas de um canteiro em que adubei meus sonhos
e é com colar de sépalas que adorno

meu otimismo fácil entre o breu,
tremeluzindo nos escuros mais tristonhos
esses sorrisos com que a geada amorno.

SORRISOS AZUIS XVI    

Que seja falso embora tal sorriso
e que eu o aplique qual um aparelho
e sobre os lábios o conserve sob o relho
das intempéries, porque afinal preciso

as comissuras alargar em tampo liso,
ou áspero que seja, moço ou velho,
é a gratidão pela vida que eu espelho,
por mais que seja de sarcasmo o riso.

Levar a vida a sério é desgastante,
ainda mais na desconfiança do futuro,
que pode ser ainda pior do que o passado

e assim achei o meu sorriso delirante
bem no fundo do cálice mais puro
do próprio sangue que havia derramado.

SORRISOS AZUIS XVII

Se estou armado com sorriso agora,
por mais que seja de sobrancelha arqueada,
toda a alegria sugestão só esboçada,
um leve adejo em meu Risório embora,

por Santorini nomeado em antiga hora, (*)
é meu broquel, minha rede, minha armada,
quando agradeço a Deus por não ter nada,
meus males esquecidos já no outrora.
(*) O Risório de Santorini é o músculo orrbicular dos lábios.

Porque, no fundo, o que é a felicidade
senão a ausência de qualquer padecimento?
Que o autoengano perdure um só momento,

em que se pisca, para ocultar a realidade
e se suspende a noção do julgamento
sob um esgar esmaecido em opacidade.

SORRISOS AZUIS XVIII

Pois os sorrisos, a paz, os bons-humores,
esses fantasmas azuis dos lutadores,
são tão somente flamas transitórias,
os fogos-fátuos de amortalhadas glórias,

por sarcástica que seja essa aquiescência,
sardônica expressão de uma impotência,
incapaz de alterar quaisquer histórias,
restos de pele deixando sobre escórias...

Porém sorrisos provocam menos rugas
que as dobras da amargura, em breves fugas,
que ali conservam vigor e elasticidade

e destarte eu sorrirei, minha boca alçada,
mas meu sorriso não me fugiu por nada:
só estava farto de enfrentar a realidade!...
(*) Soneto composto em Rimas Paralelas.

SORRISOS AZUIS XIX

E nem se trata de volver a ser menino:
não fui alegre nem quando era criança,
nunca gozei de calma vida mansa,
só repousava até o tocar do sino

que badalava o final de tal bonança,
um campanário erguido no mais fino
ponto do cérebro, um calvário pequenino,
mais um dobre de finados que esperança.

Pois sempre soube quão falsa é a alegria
e quanto a dor é igualmente transitória:
sempre encarei a vida tal qual era:

que epopeia eu não teria bem sabia
e que a elegia da batalha inglória
melhor descreve o mundo que nos gera.

SORRISOS AZUIS XX

Tudo contado, melhor um sério viso
para as caretas dos outros afrontar,
acalentando meigo e simples divagar,
que ainda elicia um certo grau de siso.

Sempre conserva o rosto bem mais liso
que um esgar de amargura o faz rasgar
e algum sorriso sempre pode consolar
quando pisamos escorregadio piso.

E igual que eu, te recomendo afivelar
um breve soerguer na boca, hospitaleiro,
mesmo não sendo em nada verdadeiro,

que simpatia pode aos outros demonstrar,
guardando a sete chaves desagrado,
sem revelar toda a agonia do teu fado.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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domingo, 29 de janeiro de 2017






OS NETOS DA BRUXA – 8 DEZ 16
(Folclore norte-americano, versificação e adaptação de WILLIAM LAGOS)

OS NETOS DA BRUXA I

Era uma vez, em um país distante,
casal de irmãos a viver alegremente
com sua mãe, sem o pai estar presente,
que para as guerras o levara o rei adiante.

Sua boa mãe os vigiava a cada instante
e encantamentos repetia bem frequente
e até mesmo algum feitiço mais potente
que os protegesse contra o mal constante.

Alguns até a Mo, seu menino, já ensinara;
magia “Branca” que lhe desse proteção,
mas não a Jenny, sua bonita irmã,

ainda pequena, que à idade não chegara
em que pudesse empregá-los com razão:
só decorá-los coisa perigosa e vã.

OS NETOS DA BRUXA II

Sua mãe, Margretha, não era feiticeira,
mas que era filha de uma lhes diziam
seus amiguinhos, que com frequência viam,
que ainda morava na Floresta Pegureira.

Eram histórias de assustar sobremaneira:
que devorava as crianças que lá iam
e tinha bolas de cristal, que perseguiam
as que tentavam realizar fuga ligeira!...

“Mamãe, por que nunca encontramos a Vovó?”
“Ora, ela mora num lugar bem perigoso
e nunca vem nos visitar aqui na aldeia...”

“Mas não tem medo de morar tão só?”
“Bem ao contrário, tem do povo supersticioso,
mas dos monstros da floresta não receia...”

OS NETOS DA BRUXA III

“Mas por que nunca a vamos juntos visitar?”
“Vovó Tusnelda não queria que eu casasse...
Foi necessário que seu pai me raptasse...
Vivemos bem até a guerra o convocar...”

“Mas nós queremos a nossa avó encontrar...”
“Não é época que da casa me ausentasse;
caso os frutos do pomar não retirasse,
na maior parte iriam se estragar...”

“Deixe que vamos só nós dois... Já estou crescido
e os meus feitiços aprendi de proteção...”
“Então terão de sair de manhã cedo...”

“Qualquer criança que por lá tenha dormido
jamais voltou para a própria habitação:
há duendes por ali de causar medo...”

OS NETOS DA BRUXA IV

Mas tanto as duas crianças insistiram
que finalmente ela aprontou uma cestinha.
“É um presente de Margretha, sua filhinha:
seus netos conhecê-la me pediram...”

“Mas quando virem que as sombras já surgiram,
para seu lar retornem, depressinha,
porque é sinal que a noite escura se avizinha
e o mal assalta a quantos lá dormiram!...”

“Mas o caminho para lá é bem cuidado,
muita gente o percorre a cada dia:
compram remédios e ervas para o chá...”

“Ela faz bem à gente do povoado,
mas tanta coisa ruim há quem dizia,
que pegou fama de ser a Bruxa Má...”

OS NETOS DA BRUXA V

“Então meus doze cachorros vou levar,
que certamente nos podem proteger!...”
“Se forem cães, não os há de receber:
nesses feitiços que ensinei deves confiar...”

No dia seguinte, logo após se alimentar,
os seus cachorros Mo mandou permanecer
e disse à mãe: “Se algo mau acontecer,
com um assobio especial os vou chamar...”

“Só meus cachorros escutar isso conseguem;
caso comecem a latir sem ter motivo,
a senhora solte os doze bem depressa,

“que nosso rastro sem demora seguem
e nos protegem de perigo morto ou vivo,
por pior que seja o que nos apareça!...”

OS NETOS DA BRUXA VI

Ficou Margretha muito preocupada,
mas não pensava que sua mãe fosse malvada;
depois de muita recomendação ser dada,
deixou que os dois se embrenhassem na floresta.

Numa das mãos carregava Mo sua cesta,
Maninha Jenny pela outra apresta;
brilhava o sol, mil flores como festa,
sem ver motivos para temerem nada,

pois no caminho havia outras pessoas
que pretendiam encomendar ervas e chás,
seguindo alegres, sempre a conversar,

falando apenas sobre as coisas boas,
que a companhia gentil sempre nos traz,
enquanto o astro-rei fica a brilhar...

OS NETOS DA BRUXA VII

O grupo chegou logo na choupana:
havia uma velha, toda de azul vestida;
esperaram acabar da venda a lida
e só depois foram ver a velha dama.

Não parecia merecer a sua má fama
e quando a história foi contada e crida,
abriu-lhe os braços, no carinho da guarida,
num perfume de alfazema que a recama...

“Finalmente notícias manda minha Margretha!
Claro que ouço o quanto o povo conta,
mas só agora é que conheço meus netinhos!”

“Chorei mil lágrimas de emoção secreta
pela saudade de não pouca monta,
dez anos a separar nossos caminhos!...”

OS NETOS DA BRUXA VIII

Pelas pessoas que ainda ali se achavam
mandou a Margretha o mais gentil recado,
que não tivesse mais qualquer cuidado,
pois em sua casa seus netos pernoitavam!

“Seus dois priminhos também hoje chegaram,
que coincidência!... Até parece combinado!”
Almoço lhes serviu bem preparado
e com os primos depressa se enturmaram...

Se bem que tinham dentes pontiagudos,
uns olhinhos puxados, pele escura,
orelhas longas, cobertas de pelinhos...

Falavam mal e eram meio cabeçudos,
mas a estranheza pouco tempo dura:
logo brincavam como velhos amiguinhos!

OS NETOS DA BRUXA IX

Ora, o tempo foi passando e, de repente,
se começaram as sombras a alongar,
os dois irmãos já a se preocupar...
“Não há qualquer perigo, certamente!”

“Há papões pela floresta, é evidente:
não vou deixá-los pelo escuro caminhar,
mas em minha casa podem pernoitar,
bem protegidos contra os males, realmente!”

Porém assim que começou a escurecer,
Vovó Tusnelda fez aos quatro entrar
e trancou portas e janelas firmemente...

Após um saboroso jantar oferecer,
fê-los subir para o segundo andar,
em que camas arrumou rapidamente.

OS NETOS DA BRUXA X

A Jenny e Mo ela tapou com cobertor
muito limpo e de extremada alvura,
mas para os primos um de total negrura:
logo roncavam sem o menor pudor...

Jenny abraçou Mo com o máximo vigor:
“Tenho saudades da Mãe, nessa lonjura!”
“Não se perturbe,” disse o mano, com ternura,
“Vovó Tusnelda demonstrou-nos muito amor!”

Logo em seguida também Jenny adormeceu,
os dois primos a roncar ainda mais forte,
porem Mo continuou bem acordado!...

E um som lá da cozinha o surpreendeu:
Vovó Tusnelda parecia afiar o corte
de alguma faca de se talhar assado!...

OS NETOS DA BRUXA XI

Ainda pôde escutar um forte chiado,
como de água a ferver num panelão!
Mas isso é hora de fazer a refeição?
Ou de afiar uma faca para assado?

Daí a pouco, ouviu passos com cuidado:
degraus rangiam sob a velha, no escadão!...
“Estão dormindo?” – indagou com precaução.
“Não,” – disse Mo – “ainda estou bem acordado.”

“Então durma, meu querido, um feliz sonho!”
Voltou a velha para afiar sua faca!...
Mais acordado o menino ainda ficou!...

Tornou de novo a escutar passo bisonho:
“Dormiu agora...?” – a voz de novo se destaca.
“É estranho este lugar – não me deixou...”

OS NETOS DA BRUXA XII

“Algumas vezes, perco o sono lá em casa
e então Mamãe me traz meu violino...
Fico tocando...” – explicou o menino –
“E o sono chega sem perder a vaza...”

“Também tenho um violino, envolto em gaza,
um instrumento até bastante fino,
com um timbre gentil como o de um sino,
decerto o sono seu belo toque embasa...”

Vovó Tusnelda trouxe logo o instrumento
e Mo se pôs a tocar com gentileza,
tal qual Margretha a trautear um acalanto...

Da faca o chiado, em rápido momento,
cessou...  Sua Avó dormira, com certeza!
Foi sacudir sua irmãzinha no seu canto!

OS NETOS DA BRUXA XiiI

Desceram a escada no maior cuidado,
mas antes Mo trocara os cobertores,
pondo o branco a cobrir os roncadores,
trazendo o preto para a cama do seu lado.

Os travesseiros arrumou num amontoado,
qual se dormissem como dois amores...
Pisaram nos degraus com mil  temores:
que ninguém fosse por rangidos despertado!

Disse então o menino: Escada, escada,
que nossos passos não entortem nada!
E até à sala não se ouviu qualquer ruído...

Disse o menino então: Ó porta, ó porta,
abre tua tranca sem ficares torta!
E nem o menor estalinho foi ouvido!...

OS NETOS DA BRUXA XIV

Só perceberam uma coisa muito estranha:
sua Vovozinha cheirava agora muito mal,
perdera o rosto sua feição original,
pendendo a boca numa solerte manha!

Longo o nariz, tal qual feia artimanha,
o queixo imenso, num focinho de animal,
emaranhados os cabelos, afinal,
como uma fera da mais perversa sanha!

Mesmo sua roupa estava diferente:
vestia-se agora com negro roupão,
muito diverso daquele azul de antes...

Chapéu usava, entortado para a frente,
com bico longo, lembrando um boticão,
abas caídas como orelhas de elefantes!...

OS NETOS DA BRUXA XV

Por fora a porta fecharam com cuidado,
logo saindo a correr pela vereda,
a Lua lembrava a cor de fruta azeda,
sentiam perigos a espreitar de cada lado!

Mo murmurava encantamentos, apressado,
que a proteção a seu redor não ceda!
E nem liana nos seus pés se enreda,
mas o caminho era escuro e prolongado...

Enquanto isso, a bruxa se acordou,
sem escutar mais o som do violino...
Levando a faca, pela escada ela subiu,

do branco cobertor se aproximou,
matar pensando a garotinha e o menino,
sem perceber quando o parzinho lhe fugiu!...

OS NETOS DA BRUXA XVI

Mas no momento em que ergueu o cobertor,
descobriu que eram os outros que matara!
Os dois “sobrinhos”, como antes os chamara,
porém seus filhos, de fato, que pavor!...

Ela os gerara com qualquer horror
que saído da floresta a visitara...
Terrível grito então aos céus lançara,
feroz vingança buscando com vigor!

De uma arca, tirou uma bola de cristal
e logo após conjurar algum feitiço,
em nenhum ponto da casa os encontrou...

Abriu a porta, então, presa do mal,
e pôs a bola a correr no maior viço,
que inicialmente o caminho não achou.

OS NETOS DA BRUXA XVII

Girou a bola da casa ao derredor
e então tomou seu rumo com firmeza,
pela vereda a rodar com ligeireza,
forte alarido produzindo com vigor!...

Logo os meninos perceberam, num horror,
que haviam sido descobertos com certeza,
e numa árvore subiram com leveza,
de tronco grosso, mas no maior fervor!...

Encantou Mo: Ah, bela Castanheira,
solta depressa teus galhos mais de baixo!
E o caule abaixo deles ficou liso...

Mas bem depressa apareceu a feiticeira:
“Ah, seus malvados!  Vou acender um facho,
fazendo um fogo desde o lugar que piso!”

OS NETOS DA BRUXA XVIII

Mas disse Mo: Consome-te, Capim!
Que não consiga nos queimar a feiticeira!
E logo se apagou toda a fogueira,
vasto perigo sendo afastado assim!...

Disse Jenny: “Por que nos quer dar fim?
Somos seus netos!”  “A sua Mãe traiçoeira
deixou-me só, tal qual pomba ligeira!
Foi uma tonta em enviá-los para mim!...!

“Vocês até sabem de algum encantamento,
mas há feitiços bem mais fortes do meu lado:
vou derrubar bem depressa a Castanheira!”

E resmungou um bruxedo num momento:
logo em sua mão se condensou um machado,
tirando lascas do tronco, bem ligeira!...

OS NETOS DA BRUXA XIX

Contudo Mo conhecia outra defesa
e cada vez que desferia machadada,
ele dizia: Castanheira, és encantada,
cura teu tronco e logo fica ilesa!...

Pegou a bruxa a faca e com firmeza
cravou-a no tronco, em terrível punhalada,
fazendo a seiva escorrer logo em jateada,
do novo encanto a Castanheira presa!

Jenny gritou: “Ela vai nos derrubar!”
Mas Mo falou: “Meu bem, não perca a calma.”
E começou a silvar seu assobio!...

Lá na granja os doze cães logo a escutar!
Sentiu Margretha uma pontada nalma,
ouvindo os cães ladrando no vazio!...

OS NETOS DA BRUXA XX

Bau-bau! Uau, vai cair a Castanheira
e os meus netinhos vão cair depois!
Vou fazer uma geleia desses dois!...
Mas falou Mo sua magia derradeira:

Engrossa, Tronco, contra a Feiticeira!
Afina em cima e vê se a Faca róis!...
Em cada golpe, vê se o Machado móis!
E logo a árvore obedeceu, hospitaleira...

Porém em cima foi depressa se afinando
e já mal dava para as crianças segurarem!
E a cada golpe estremecia o tronco inteiro!

Mas no momento em que estava desabando,
escutaram os seus cães se aproximarem,
o maior deles a chegar logo primeiro!...

OS NETOS DA BRUXA XXI

Os doze cães atacaram a Feiticeira,
que defendeu-se com faca e com machado;
logo foi um dos cachorros derrubado,
depois um outro e onze de fileira!...

Mas o maior a mordeu de tal maneira
que lhe rasgou o pescoço lado a lado,
morreu a Bruxa, todo o sangue derramado
e só depois é que caiu a Castanheira!

Mas os meninos não se machucaram
e Mo tirou-lhe a faca de sua mão,
vendo os seus cães caídos ao redor

e logo carne e ossos se rasgaram,
arrancando-lhe para fora o coração,
encantamentos gritando com ardor!...

OS NETOS DA BRUXA XXII

E segurando nas mãos o coração,
foi apertando até o sangue jorrar,
a cada um dos onze cães indo banhar,
até que a vida lhes voltou nessa ocasião!

A Bruxa se desmanchou, de sopetão
e ainda escutaram sua choupana desabar,
enquanto o sol começava a despertar
e a Castanheira ressurgia desde o chão!...

Lavaram as mãos na água de um regato
e voltaram para casa, onde os abraços,
sãos e salvos, de sua Mãe foram ganhando!

E para ainda mais alegre ser o fato,
pela estrada se escutou o som de passos:
era seu pai, da longa guerra retornando!

Entrou pela porta e saiu pela cozinha:
quem quiser outra, vá pedir à sua Mãezinha!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
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