sábado, 26 de novembro de 2011

MARANDUVÁS & IL DUOMO



MARANDUVÁS I 

São estranhos artifícios que minha musa
emprega em me manter comprometido.
Parar de rascunhar já decidido,
eu tinha, ao ver a ruma tão profusa,

que se alça mais e mais, nessa difusa
maravalha de tintas, em verbo puído,
capaz de transmitir sonho ferido
e resistir ainda mais que ferro gusa...

Desistir pretendia ou, pelo menos,
até passar a limpo essa muralha
que vejo erguer-se ao lado, inexpugnável,

em suas ameias de doçuras e venenos...
Mas a musa fez-se ouvir, numa mortalha
de sonho totalmente indeclinável...

MARANDUVÁS II

A musa enviou-me essas lagartas
para roer retalhos da mortalha
que me reveste a alma e que se espalha
por velhos naipes de esquecidas cartas.

Enchendo os ventres até ficarem fartas,
a alma deixaram assim com grande falha,
na árvore da mente, que se esgalha,
com as folhas corroídas pelas dartas.

Melhor maranduvás abrindo espaço,
que pelo menos areja-me o interior,
do que ceder à impingem e ao mosaico,

pintalgando de manchas todo o traço
que a alma reveste em pálido exterior,
mumificada em seu amor arcaico...

MARANDUVÁS III

Contudo, o rascunhar eu pretendia
interromper, mas a musa não deixou!...
Passei a limpo e mais me provocou
a incrementar a ruma que crescia.

Tirei da alma as lagartas que lá havia
e as coloquei na pilha que restou.
Mas cada inseto esse alimento rejeitou,
pois diferente alimento preferia.

Se elas desejam tornar-se borboletas,
banquete vivo precisam, natural...
Quando na ausência de matéria vegetal,

procuram folhas um pouco mais secretas,
como essas tiras que envolvem a minha alma,
para que as possam devorar em plena calma.

MARANDUVÁS IV

Essas não são as larvas do comum,
que servem de festim a passarinhos.
Não eclodem mariposas desses ninhos,
formados por casulos, um a um...

Quem gostaria de um lugar nenhum,
como são intangíveis os arminhos
que me acolchoam a alma em seus carinhos,
senão seres formados de simum...?

São criaturas de areia as borboletas
que me devoram as faixas restringentes,
numa fúria que parece de neurose...

E quando saem dos novelos, lentas setas,
voltadas para os ares candescentes,
será em versos a sua metamorfose...

MARANDUVÁS V

Não esses versos que guardo em mil rascunhos.
Serão mais leves, de outra natureza,
com as asas multicores, com certeza,
e não os versos calcados por meus punhos...

Quando se abrem os casulos, testemunhos
darão dos sentimentos de pureza,
darão dos pensamentos de nobreza,
que revelam de minha alma os brandos cunhos.

Terão asas de ouro os lepidópteros,
meus poemas proclamando pelo espaço,
de forma tal que eu nunca fui capaz...

Pois meus escritos são mais os coleópteros:
têm élitros sedosos os que faço,
mas não te seguem aonde quer que vás...

MARANDUVÁS VI

São poemas mais pesados, certamente,
que esses que na mente concebera
e que, ocasionalmente, já escrevera:
vagalumes silvando em luz candente.

Eles se prendem à terra redolente,
resultados imperfeitos de uma mera
busca de luz de qualquer vela de cera,
que queimará suas asas, inclemente.

Meus poemas são os ovos dessas traças
que só vêm para furar originais:
amam palavras, em refeições secretas...

Enquanto os verdadeiros têm as graças
que nunca eu alcancei, porque jamais
consegui dar à luz as borboletas!...                  

IL DUOMO I 

Durante a noite é que sai a mascarada
que me sorri, espiando das paredes,
com seus olhares famintos ou de sedes,
cada uma de seu gancho pendurada.

Existe máscara de couro fabricada,
comprada em Porto Alegre, como vêdes,
da Redenção num stand, sobre redes
exibida e em purpurina marchetada.

Existem máscaras que dizem venezianas;
parecem mesmo serem importadas,
mas quem nos diz que não vieram lá da China?

E há máscara de gesso, com humanas
feições, como Mercúrio desenhadas,
parcialmente quebrada pela sina...

IL DUOMO II

Durante o dia permanecem quietas,
embora, às vezes, pressinta o seu piscar
ou seus olhos vazios a observar,
quando passo a executar diárias metas.

Se as encaro, com intenções diretas,
de meu olhar procuram escapar,
de novo cegas, inermes, a empoeirar,
se não recebem limpezas bem completas.

Porém à noite, depois que a casa dorme,
elas saltam das paredes, ao comando
do deus Mercúrio, cuja face se refaz

e dançam horas a fio, em sua enorme
farândula secreta, alegre bando,
purificado de suas lembranças más...

IL DUOMO III

De certo modo, os corpos recuperam
para seus pés assim tamborilar;
a música que acompanha seu dançar
algumas vezes meus ouvidos perceberam.

Corpos, de fato, muitas nem tiveram,
foram só máscaras feitas para usar
no Carnaval, aqui ou no além-mar,
porém faces verdadeiras esconderam.

E se alguém, em certo dia, experimentou,
deixou-lhes no interior sua epiderme
e, com ela, alguns traços de sua alma.

Parte de si ali se aprisionou
e, a partir dessa lembrança inerme,
os corpos recompõem com toda a calma...

IL DUOMO IV

Hoje contemplo Il Duomo de Veneza,
entronizado sobre águas cinzentas,
recordação que com a memória tentas
recuperar dos véus de tua incerteza.

A catedral, soberba em sua nobreza,
muito escutou as penitências lentas
desses rostos, cujas vestes desatentas
se ergueram, num instante de leveza,

para desconhecidos, sem cuidado
ou, quem sabe, que conheciam bem:
máscaras anônimas, de falsa proteção.

Contudo, após o Carnaval passado,
confessionários, em longo vaivém,
escutaram sua estéril confissão...

IL DUOMO V

Assim as máscaras nas paredes presas
refazem essas danças silenciosas;
não têm orelhas, afinal, por mais sinuosas
que sejam suas feições lisas e tesas...

Mas essa música, durante suas proezas,
elas escutam, ao rodopiar saudosas,
pelas salas pequenas, mas formosas,
cujas paredes as mantêm ilesas...

No escritório, a música é constante,
mesmo depois de apagada a luz:
sua melodia mal e mal escuto...

Mas ouço, às vezes, ladrar incessante
a cadelinha Penélope, que induz
qualquer presença de alegria ou luto...

IL DUOMO VI

Então, levanto e acendo muitas luzes,
percorro a casa em busca de algum gato
que entrou pela janela; ou então um rato,
acompanhado por ela, ainda a bufar...

Porém só vejo as coloridas cruzes
desses rostos tracejados de recato,
pendurados e imóveis, triste fato:
não me permitem seu destino partilhar...

Que dessa dança nunca participo:
só me contemplam suas órbitas vazias,
sem qualquer crânio para as habitar...

E, no entretanto, algum estranho tipo
de mim mesmo, durante as noites frias,
talvez possa seus fantasmas abraçar.

Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

FALSA HAMADRÍADE & VERA HAMADRÍADE


FALSA HAMADRÍADE I 

A hamadríade é de madeira branca...
Certo formato alguém no tronco percebeu
e o descascou.  E, aos poucos, concebeu
de uma mulher completa imagem franca.

A morta árvore que tal ninfa tranca
bem facilmente, sob o escopro, concedeu
o resultado a quem dela se condoeu
e para a vida essa deidade arranca.

Ficou perfeita, em todos os detalhes:
forquilha dupla lhe desenha os braços
e os seios com mamilos se projetam.

Parte da casca foi poupada nos entalhes,
para mostrar do baixo-ventre os traços
bem femininos, que claros se intersectam.

FALSA HAMADRÍADE II

Acima das forquilhas de seus braços
se estende tronco branco e então se alarga.
O rosto se esculpiu e não se embarga
a parecença por faltar-lhe traços...

Tem lábios e nariz, tem olhos baços,
a sugerir-me uma expressão amarga...
Talvez por suportar a inteira carga
e longos galhos manter em seus abraços.

A árvore secou.   Ou assim parece,
pois de verde vê-se apenas sugestão
(talvez de sua nudez seja a estação...)

e assim se alça, perdida numa prece,
exposta inerme ao olhar da multidão:
seu corpo é a cruz e dela nunca desce.

FALSA HAMADRÍADE III

Quem descascou a árvore, a matou,
provavelmente.  É na casca que está a vida.
A escopro e faca abriu-se tal ferida
que seu vigor nunca mais recuperou...

Foi sua perfeição que a condenou!
Pelo formato dessa ilusão querida
foi a ninfa inicialmente percebida:
morreu do amor de quem apaixonou...

Ou, quem sabe, ela mesma ressecou
e só depois os detalhes se afirmaram.
Poderia ser só lenha de fogueira...

E foi a exibição que a preservou,
nesses entalhes, que aos poucos revelaram
a deusa aprisionada na madeira...

FALSA HAMADRÍADE IV

E assim se ergue, branca, contra o azul
e, quem sabe, um longo tempo permaneça.
Quiçá está viva ainda e talvez cresça,
preservada contra o sol e o vento sul...

Talvez a ninfa goze um tempo exul
e alguém lhe traga oferendas e até peça
algumas graças e acredite nessa
estátua, com poder capaz de expul-

sar as doenças e outros malefícios.
Talvez de sua vagina uma semente
ao solo desça e se enraíze forte...

Qual reação a todos esses vícios
que os mais grosseiros mostram, certamente,
ao contemplarem seu feminino porte.              

VERA HAMADRÍADE I 

Existe outra bem mais natural
erguida hoje em algum lugar da Europa;
o tronco é branco, mas é verde a copa,
porque viceja em vida vegetal.

Não recebeu um corte assim fatal,
que a natureza dessa tortura a poupa;
qualquer um a reconhece assim que topa,
qual dançarina em salto triunfal.

Estende os braços e ramifica os dedos
em variedade de ramos e raminhos
e sua cabeça se lança para trás,

talvez a sussurrar os seus segredos,
quiçá a sugerir até carinhos,
orgulhosa dessa pose que assim faz....

VERA HAMADRÍADE II

Ninguém tocou no tronco desta planta;
como hamadríade cresceu naturalmente.
Um espírito gentil se fez presente
e congelou-se em posição que encanta.

A pele é rosa e branca sob a manta
da canópia que repele o sol ardente,
verdor brilhante de vigor potente,
enquanto ao espaço soergue sua garganta.

Lança uma perna para trás em fino
e majestoso salto para o ar,
nesse balé ritual da despedida...

Sabe-se lá por que favor divino
foi transformada assim para durar
muito mais tempo do que a humana vida!

VERA HAMADRÍADE III

Ou quem sabe, essa ninfa se matasse
por força de um amor mal recebido,
que não fora por alguém correspondido
e não pudesse suportar que a desprezasse...

E assim, nessa clareira, derramasse
todo esse amor que havia concebido...
E a tal visão, um deus, compadecido,
nessa árvore virente a transformasse...

E que o vermelho sangue da donzela
em seiva branca assim se condensasse
e desse vida e forma ao seu verdor...

E o amor fervente que brotara nela
em galhos congelado rebrotasse,
como a prova final de seu amor...

VERA HAMADRÍADE IV

Talvez, à noite, quem chega na clareira
a possa ver dançando à luz do luar...
Ou, em noites mais escuras, rebrilhar,
num rodopio de luz alvissareira...

Quem sabe em salto imóvel, derradeira
demonstração da energia de valsar,
por sua hubris quis o deus a castigar
e, em vulto branco, petrificou-a inteira.

Mas eu sinto, ao contemplar sua harmonia,
um não-sei-quê que a mente me comove
e até queria de seu baile partilhar...

Talvez eu tire de uma lira a melodia
que esse tronco estremece... E assim renove
seu espírito cativo, em cintilar...

VERA HAMADRÍADE V

Mas o que ocorreria se eu, então,
fosse tocar, igual que Orfeu, a lira?
Os espíritos da noite agitaria
e escutariam minha encantação?

Despertaria Eurídice a emoção
que ao longo dessas cordas tangeria...?
E se esse olhar que sob a casca mira
se preenchesse de lágrima e paixão?

Não obstante, se nem o próprio Orfeu
trouxe Eurídice, afinal, à luz do dia,
como a hamadríade eu despertaria?

Por mais forte este amor que fosse meu,
dos caprichos de um deus dependeria,
muito mais do que minha lira desprendeu...

VERA HAMADRÍADE VI

Vamos supor, então, que um deus travesso,
buliçoso, a zombar do romantismo,
se dispusesse a executar um cataclismo,
para atender a essa graça que lhe peço...

Em meu corpo, de repente, já eu cresço,
a terra foge, qual para um abismo,
pois nem entendo qual tipo de exorcismo
causou a mutação que já nem meço!...

Ela me olha, com pupilas reluzentes
e meus braços entrelaçam seus cabelos,
mas não foi nova vida que lhe dei...

Meus dedos se alongaram, mais potentes,
e reconheço, à luz dos pesadelos,
que noutra árvore igual me transformei!...

Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.