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ABANDONO I
Tanta coisa se faz, tanto se deixa
pela metade ao longo desta vida...
Há tanto plano que não tem guarida
senão no sonho, no lamento ou queixa...
A vida para mim nunca foi gueixa
que a beijos me banhasse: à despedida,
ainda ignoro o porquê de tanta lida,
tanto trabalho que o passado enfeixa.
Pois ainda agora, as tarefas que hoje tenho
me impedem de volver à velha estrada
em que meus sonhos jazem, lado a lado...
Mas conservo a revolta; e ainda venho
a completar tanta coisa inacabada,
que ficou pelo meio, em meu passado...
ABANDONO II
A questão de deixar sonhos para trás,
escondidos nas moitas e cavernas,
é que tais guardas não serão eternas,
mas falharão por muitas coisas más;
caso algum dia puder volver atrás,
em busca de meus sonhos nas cisternas,
esperando encontrar lembranças ternas,
é bem possível que tudo quanto jaz
depositado à beira do caminho,
tenha sido por um outro viandante
recolhido, por maldoso ou por bisonho:
nada mais acharei de meu carinho
e, por mais que estas mágoas ainda cante,
será um outro a vivenciar meu sonho.
ABANDONO III
Talvez seja melhor, caso esse sonho
mereça ser vivido em opulência,
que o reparta entre outros, com frequência,
sem que esvazie a cisterna em que reponho,
mês após mês, em meu viver tristonho,
o que dele tiraram, na impaciência
de viver mais depressa, na inconsciência
de tomarem de mim o quanto exponho;
de certo modo, eu vivo qual profeta,
anunciando uma vida mais dileta,
enquanto a mim só cabem gafanhotos:
mas que meus sonhos outros vivenciem
não me perturba; melhor ver que sorriem,
do que lancem tais sonhos aos esgotos...
ABANDONO IV
Havia sonhos que lavei e pus na corda
para secarem, do sangue meu desnudos:
são sonhos dessangrados, sonhos mudos,
pálidos sonhos que, quando se acorda,
mal se recorda a meada em que se borda
a tessitura desses sonhos rudos:
foram sonhos poderosos e tesudos,
até que o alvorecer sua força morda...
Quando desperto, vejo os pobres sonhos
amarfanhados, no meio dos lençóis:
são outras tantas rugas de minhalma.
Depois que os levo à pia, tão medonhos
já não são mais, porém não são faróis,
mas tão somente o suor que brotou dalma.
ABANDONO V
Eu vi meus sonhos secos no varal,
apenas leves manchas de ilusão,
que o vento não levara de roldão,
abastecendo um outro carnaval.
E fui buscar tais sonhos, afinal:
pus numa cesta de vime, em sopetão,
misturados, em pequena multidão,
aos pesadelos do viver real.
Levei a cesta até a lavanderia,
coloquei os meus sonhos amassados
numa singela mesa de passar...
Liguei o ferro, sem sentir grande energia,
mas distraí-me com os sonhos amontoados,
em devaneio, e sem querer, deixei queimar...
ABANDONO VI
Varal de sonhos, sonhos desfraldados,
sacudidos como folhas de jornais,
aventados para a praia do jamais,
sonhos de fralda, cueiros mal lavados...
São lavados à mão e não levados
para a máquina, junto com as demais
peças de roupa, dançando nos varais:
precisam ser em balde mergulhados,
com um pouco de anil. Eu já tentei
pôr em máquina meus sonhos a lavar,
mas me causaram tanta comoção!
Ressentindo o tratamento que lhes dei,
chegam-se ao vidro e ficam a espiar,
com rostos de partir o coração!...
ABANDONO VII
Tive sonhos de música no outrora;
sonhei teatro, sonhei todo o meu canto,
sonhei a mágoa transformar em pranto:
não aprendi a chorar até agora.
Sonhei viagem, sonhei em ir-me embora;
sonhei em transformar-me em monge santo,
sonhei ser rei para ostentar um manto:
feito de sonhos, acabei por jogar fora.
Sonhei ser general, tive soldados,
recortados de folhas de papel:
alguns ainda se encontram amontoados.
Porém jamais eu enverguei burel
e reduzi-me a traduzir outros passados,
numa batalha que não tem quartel!...
ABANDONO VIII
Em Tenerife havia uma donzela
(que donzela há muito tempo já não era:
a juventude para trás deixara,
mas, nem por isso, deixara de ser bela).
Essa mulher eu vi, em sua janela
(não era apenas prostituta mera:
ao perceber que em sorriso me acenara,
eu pressenti que me acenava estrela).
Porque as estrelas brilham para todos,
sem que nelas exista meretrício:
seu fulgor honradamente distribuem.
De modo igual, essa dama tais apodos,
não merecia, quais se fossem tão só vício
essas dádivas de amor que dela fluem.
ABANDONO IX
Não que encontrasse tal mulher na vida:
foi apenas em sonho, uma quimera;
nem sei quem me aportou tal ilusão.
Mas em mim alheio sonho acha guarida
e a mulher de Tenerife também era
uma aquarela roubada ao coração...
Por isso é que inverti este soneto:
nestes meus controlados desafios,
anzol existe para estranhos brios,
que guardava no escrínio mais secreto.
Não sei qual dos fantasmas que projeto,
quando destilo, sem cessar, os fios
desses penares e gozos luzidios,
de que sou relator tão indiscreto...
ABANDONO X
Com a mulher de Tenerife tive sonhos
que nunca foram meus, só reproduzo
a vida ou sonho alheio, em multiuso.
Alguns foram cruéis, outros bisonhos,
alguns somente as mágoas de outras vidas:
os sonhos de Sadim, sonhos de Midas...
E como os deuses dos sonhos assim troçam,
deram a Midas o imortal toque do ouro,
em que tudo transformou e, em seu desdouro,
até o alimento e a água e os próprios filhos...
E a seu irmão Sadim, o dom endossam
de transformar em palha o trigo louro...
Em rastolho transformou todo o tesouro:
morreu de fome igual, por outros trilhos...
ABANDONO XI
Quando as mulheres turcas retiraram
aqueles véus já multisseculares
para ostentarem cabelos e alamares
e tais tabus de antanho abandonaram;
Quando os turcos sobrenomes adotaram,
usando novos nomes singulares,
adjetivos ou verbos ou lugares
e seu país assim modernizaram,
Alá olhou do alto, sem malícia
e não lançou seus raios na Turquia
(só transcorreram os terremotos de costume);
mas agora que os véus voltam, pudicícia
é forçada pela falsa ideologia
de quem só lê o Alcorão com azedume.
ABANDONO XII
Mas entre as nossas mulheres, o abandono
foi muito além do que tirar a touca...
Saíram os vestidos, toda a roupa
foi sendo descartada, qual em sono...
E andam por aí, quase sem dono,
tanto a sensata como a mulher louca,
dando bandeira e outras dando sopa...
mulheres belas ou feias como um mono!
Sem perceber que o Sol, que as desidrata,
a pele enruga muito mais depressa,
ao sopro desse vento e desse sal...
O sol da luz também é o sol que mata
e o câncer de suas mamas nos professa
que essa nudez é pouco natural...
ABANDONO XIII
Sonhei essa nudez de cada praia,
somente quando era adolescente;
imaginava ver, sonho frequente,
esse tesouro oculto em cada saia...
Porém os deuses, em sua estranha raia
concederam-me o desejo, finalmente;
e ao contemplar tal nudez, assim saliente,
perdi todo o desejo por tal laia...
Se é para todos, então por que sonhar?
De Tenerife a mulher quis abraçar,
porque somente a meu sonho pertencia...
Mas as mulheres que andam seminuas
em cada praia, ou mesmo pelas ruas,
não me conseguem animar a fantasia.
ABANDONO XIV
Pois aquilo que se vê, não mais se sonha
e o que todos podem ter, perde o valor.
O que eu sonhara, com maior pendor,
era essa comunhão, quente e bisonha...
Mas o que eu vejo, em percepção medonha,
é apenas material, sem mais amor.
Coberta de seus véus, tem mais calor
qualquer mulher, por mais seja tristonha
a vida que assim leve. Mas sonhei
com amor inexaurível, dom diário,
nessa mistura de sombra e substância,
como dizia James Cabell, que estudei...
E cada sonho, diáfano ou hilário,
eu vi sumir-se, aos poucos, na distância...
ABANDONO XV
Hoje os sonhos que ficaram, estão mudos:
abandonadas as ameias dos castelos,
abandonados os bosques de meus zelos,
abandonada a heraldia dos escudos...
Hoje os sonhos que me restam são desnudos:
ressecados estão os que eram belos,
ressecado se acha o ópio dos desvelos,
ressecados até os ódios mais agudos...
Hoje os sonhos morreram, empalados,
cada qual numa estaca rubrescente,
abandonadas as pretensões de voo...
Ficaram na galé dos enforcados,
do patíbulo em tortura permanente,
em que meu sangue, às vezes, ainda escoo.
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