quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018







MEIGUICE DE OUTONO & MAIS
WILLIAM LAGOS -- 2-6/12/2017

MEIGUICE DE OUTONO i A iv -- 2/12/2017
ENGODO I A IV -- 3/12/2017
MEMÓRIA DOS ASTROS -- 4/12/2017
MANHA DO VENTO I A III -- 5/12/2017
CHUVA VERDE I A III -- 6/12/2017

MEIGUICE DE OUTONO I -- 2/12/2017

Ela tentou, de forma bem furtiva,
aproximar-se de mim, em beijo lento,
mas não pensei pudesse em tal momento
adotar qualquer postura decisiva.

Era um capricho, julguei,  Aquela diva
só poderia trazer-me sofrimento:
um instante de prazer sem julgamento
bastante longo na memória viva.

Destarte, eu evitei, fiz-me de tonto,
fingi não perceber o que queria,
foi sugestão somente feita a giz,,,

Causei a mim e a ela desaponto?
Quem sabe quanto mais resultaria
desta ameaça de beijo que não quis?

MEIGUICE DE OUTONO II

Não foram beijos em ardor de primavera,
quando plantas e animais se reproduzem,
pólen lançado ao léu sem que se escusem,
beijos sem rumo, deiscência de uma antera.

Nem foram beijos do cio de besta-fera
que ao consumar direto nos conduzem,
que da razão e sentimento abusem,
sem o mínimo possível de uma espera.

Já que tais beijos são apenas transitórios,
só destinados nossa raça a perpetuar,
em feromônios apenas a encadear,

de um verdadeiro amor grãos ilusórios,
mas tão robustos nessa virulência
que poucos podem se evadir de tal tendência.

MEIGUICE DE OUTONO III

Não foram beijos tampouco de verão,
quando o mundo se afunda no calor
e o sangue ferve em rota de esplendor
na senda antiga da final consumação.

Não foram beijos de ardente cremação,
nos quais um corpo num alheio ardor
se incinera num ideal louco de amor,
nessa espantosa lua-de-mel sem graduação.

Porque tais beijos são mais fortes cravos,
um corpo noutro em crucificação,
braços abertos que se fecharão,

dedos nos ombros, unhas em agravos,
em totalmente maculada concepção,
de todo o mel nos derradeiros favos...

MEIGUICE DE OUTONO IV

Foram beijos de sabores outonais,
já perdidos os do auge do verão,
da primavera esgotados os que são,
os longos beijos de angústias sazonais.

Quando partiram as esperanças imortais
e se procura. no final, consolação,
algo que adoce o já amargo coração
em permanências já quase imateriais.

Quando ardor não se busca, mas meiguice,
quando desejo não se quer, porém confiança,
quando a chegada do inverno se pressente,

quando se almeja garantia e não pieguice,
nesse ósculo uma certeza de aliança
e o morno ardor que a solidão torna presente.

ENGODO I -- 3 DEZ 2017

Mais de uma vez, seu beijo foi promessa,
entre as grades trabalhadas do portão,
por entre as fendas requeimadas do galpão,
permeio às brumas da cerração espessa.

Queria, às vezes, que a memória esqueça
de minha imperícia ante a aceitação,
de minha incúria a causar desilusão,
mas na alma a lembrança ainda se engessa.

De forma tal que se esquecer não pode,
por mais negada essa lembrança inútil
do que podia ter sido e nunca foi.

Se esforça a alma, mas por mais que engode,
volta o fantasma em túnica inconsútil
e crava a agulha que em meu peito dói.

ENGODO II

Toda promessa é dúvida, por certo,
só é certeza o que se tem na mão
e mesmo isso se perde em ocasião,
se não se encerra bem o peito aberto

mais do que o punho.  Só se mantém perto
o que se guarda bem no coração;
do amor as dúvidas bem perenes são,
toda a certeza do futuro em desconcerto.

Beijos são beijos e não deixam marca;
se assim deixassem, mordidas se fariam,
que um beijo dá-se, mas arranca uma mordida...

Pouca certeza contudo um beijo abarca
de que um prêmio maior nos brindaria
desses lábios vermelhos de ferida.

ENGODO III

Porém melhor é termos falsos beijos,
os mil beijos de certeza inconsistente,
do que beijos de desdém indiferente
ou de tais beijos jamais termos ensejos.

Mesmo beijos de carinho feito adejos
deixam na boca da alma o seu latente
sabor esquivo que a emoção esquente,
rememorados em fantásticos cortejos.

Algum poeta até teria preferido
que fossem beijos tão só imaginados,
que assim pudessem ser idealizados;

sobre o papel cada beijo perseguido
na multidão das frases apressadas
que se derramam como lágrimas geladas.

ENGODO IV

Porem mil beijos de separação,
adrede dados, mas nunca doravante,
são outras puas de sanha delirante,
qual chamariz de vento e de ilusão.

Os beijos tidos tal qual condenação,
como um rosário de saliva estuante,
ptialina ressecada de inconstante,
beijos antigos sem mais ter conexão.

Beijos de ópera mais que de opereta,
geralmente conduzindo a amargo fim,
em que o sabor anteriormente pervasivo

já ressecou, reminiscência tão secreta
que não se lembra sequer se foi assim
ou só memória de algum sonho esquivo.

MEMÓRIA DOS ASTROS I -- 4 dez 17

A luz da Lua se quebra contra as trevas
e mil cacos de luz entram nas gretas;
cortam em mim e minhas paixões secretas
revelam para o mundo em longas levas.

A luz do Sol é lava contra as grevas
que protegem minhas pernas das completas
centelhas das malícias.  São diletas
gotas de ouro pingadas pelos devas.

Não sei se são da Lua as acendalhas
ou do Sol os filetes que mais valem,
mas o dia se derrete em tais caudais

e a luz da Lua se enrola em maravalhas
nesse argênteo fazer que as cores calem,
enquanto a noite se enregela em mil cristais.

MEMORIA DOS ASTROS II

É quando a Lua desce e me enovela
nesses ramos de prata das gavinhas
que as flores se corolam de rainhas,
adormecidas na murchez que as vela.

Sonham as flores, recolhidas em gavelas,
sonham os caules em flácidas bainhas,
sonham os galhos em suas tortas linhas
e até as raízes imaginam serem belas,

que o luar penetra pelo saibro e a greda,
cada radícula pensando em liberdade,
à luz saltando para a individualidade

e o plasma germinativo em pauta leda
escreve a música da mais nova expansão:
dá ao verde-prata o verde-vivo da invasão.

MEMÓRIA DOS ASTROS III

E quando desce o Sol em clorofila
o ouro dorme em célula esverdeada;
engrossa o caule a luz depositada,
em seu cerne e lignita firme fila.

Igualmente cresce a lã e aguarda a esquila,
a água brota em vapor desencarnada,
galopa a nuvem. incontida sua tropeada
e a casa-grande se transforma em vila.

Os astros dentro em nós.  A carne é erva
e a erva é o Sol que pinga no verão
e o Sol explode na sua aceitação

que a vida inteira sobre a Terra ferva...
Para onde vai a energia que se perde?
Qual outra raça seus mil raios herde?

MEMÓRIA DOS ASTROS IV

A memória da Lua em teu olhar,
a memória dos beijos das  estrelas,
cintilam meteoros nas donzelas,
vejo estrela cadente em teu andar.

Os cometas nas melenas a habitar,
cachos de Sol, redomas de procelas,
e nos teus ossos as insensatas selas
das nebulosas muito além do mar.

Em mim também habita a luz solar,
pois igualmente sou filho do capim,
verde meu queijo e todo o leite assim,

verdes os ovos das aves a voar:
na gigantesca prenhez de um ser minúsculo
habita a aurora até vindo meu crepúsculo.

MANHA DO VENTO I -- 5 dez 17

Um dia a tinha presa nos meus braços,
mas por um breve instante os afrouxei
e de um perigo certo não pensei,
tanta certeza tinha de seus traços!

Mas no instante frouxo dos abraços,
chegou um zéfiro manhoso e nem notei.
Tornou-se em brisa e não me aprecatei,
formou-se em vento e rebentou-me os laços.

E ela se foi, em permanente ausência,
voga nas nuvens qual meiga quimera,
braços vazios restaram-me por fim

e ao furacão contemplo em impotência,
enquanto permaneço ainda na espera
que um dia o vento a assopre para mim...

MANHA DO VENTO II

Tornou-se fluida como a luz da aurora,
um sonho adormecido no lamento,
sonho de nuvem no ouro do momento
que a nuvem chumbo reveste como auréola.

O azul do céu no seu gume de espora
corta os limites da nuvem sem alento;
ela está presa entre o plúmbeo sentimento
e o cerúleo enganoso da demora.

Não tem como escapar da nuvem parda
que apenas impulsiona o vendaval,
ela se estende algodoada na lembrança

e quão inútil o meu anseio dela aguarda!
Em vão galopo qual tolo bagual,
pandorga presa no fio de minha esperança! 

MANHA DO VENTO III

Porque Éolo a tomou não saberei.
Talvez apenas por achá-la bela,
talvez por qualquer manha mais singela,
porém não tê-la mais é só o que sei.

Do meu anseio não me aliviarei:
o meu remorso nele se revela
por ter o abraço que prendia a ela
afrouxado no descaso que mostrei.

Mas a esperança é como fio de seda,
em sua fragilidade resistente,
uma estátua de poeira no arrebol

e nesse fio minhalma inteira queda,
a nuvem perseguindo, persistente,
na escuridão cinzenta do farol.

CHUVA VERDE I -- 6 DEZ 2017

Que são a flores senão gotas de chuva?
Cada pingo de orvalho condensado,
um pingente de glória colorado,
abertas pétalas em rasgada luva.

A chuva desce, vai-se tornando ruiva,
cada flor branca em rosa aperolado,
cada sépala num verde consternado,
cada estame afiado como goiva.

De onde brota o sangue dessa flor?
Pois rubra sonha ser uma princesa
e é amarela sua linfa, com certeza.

Será que sente, por te ver, amor,
que brilha igual na retina de minhas vistas
enquanto seguem matreiras em tuas pistas?

CHUVA VERDE II

Chupa da terra o sangue dos antigos
que ali murcham dos tempos ancestrais;
não toma a linfa dos defuntos vegetais,
mas o cálcio dos ossos dos jazigos...

Se a linfa ela tomasse, seriam figos,
brancos por dentro em verdes castiçais,
Amareladas seriam as flores tais
e não vermelhas quais feros inimigos.

Porem há flores de um azul perfeito,
quando as gotas de chuva transportaram
a refração da luz no multifário

firmamento atmosférico sujeito
e assim as flores em coro se lançaram
no cerne arcano do acaso perdulário.

CHUVA VERDE III

Destarte as folhas, brácteas e gavinhas
aos poucos mudam sua coloração.
Quais os metais espalhados pelo chão?
Qual polvadeira não mais amesquinhas?

E a chuva se condensa nessas linhas
dos arvoredos em robusta geração;
cada tronco foi de um caule brotação
e cada caule foram gotas pequeninhas.

E quantas vezes teus olhos castanhos,
nas lágrimas de chuvosa melanina
eu imagino como a chuva os cobriria,

por mais azuis as gotas de seus banhos,
marrons seriam em suavidade que fascina,
no pranto verde que meu peito lavaria.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018






FIADO & MAIS
Novas Séries de William Lagos
22 novembro - 1º dezembro 2017

Fiado I a III -- 22 Nov 2017
Adão sem Sogra I a III -- 23 Nov 17
Planadores I a III -- 24 Nov 2017
Rosário I a III -- 25 Nov 2017
Partilha I a IV -- 26 Nov 2016
Paraísos I a VI -- 27 Nov 2017
Jornadas I a III -- 28 Nov 2017
Legado I a IV -- 29 Nov 2017
Esfolamento I a IV -- 30 Nov 2017
Surfando em Seco I a III -- 1º Dez 2017

Fiado I -- 22 Nov 2017

"Entre amigo, que esta casa é sua,
mas se aqui veio me pedir fiado,
certamente, por mais seja apreciado,
acho melhor que fique aí na rua!..."

Amigo existe que só nos senta a pua,
vindo a pedir-nos algo de emprestado,
que melhor fôra que lhe fosse dado,
que para ter de volta a gente sua!...

Dizem que livro bom nunca se empresta,
pois quem não perde o livro, perde o amigo,
que o guarda para si ou passa adiante.

Apreciação pelo objeto atesta
quando o deseja conservar consigo
ou recomenda por achá-lo interessante...

FIADO II

Existe ainda quem diga claramente
que um livro não devia ser guardado,
por puro egoísmo sendo conservado,
sem que a diverso olhar o apresente.

É o princípio da biblioteca realmente,
acervo sendo já a empréstimo votado;
sempre é possível que não seja retornado:
já alguma perda se prevê indiferente.

Mas aquele que os reúne com carinho
e mesmo algum adquiriu com sacrifício,
prefere sempre conservá-los perto,

cada livro para si o melhor vizinho,
nas estantes a cumprir distinto ofício,
lá contemplado de coração aberto.

FIADO III

Já numa loja, há outro objetivo:
mais do que livros, vende-se alimento,
pelo retorno sem espera ou sentimento,
somente exposto, a estragar-se num momento.

O lucro esvai-se no apodrecimento,
deve o estoque manter-se sempre ativo,
a venda à vista a trazer dinheiro vivo,
a venda a prazo bem diverso crivo.

Pedir fiado já sugere inadimplência
e realmente um pouco de confiança,
porém frutas não se guardam numa estante;

somente o livro tem mais permanência,
são só ideias que se leva avante:
que um par se cede só enquanto dura a dança!

ADÃO SEM SOGRA I -- 23 Nov 2017

Corre o ditado que feliz foi mesmo Adão,
no Paraíso vivendo com sua Eva,
que após a operação costela leva,
mas sem ter sogra nem aporrinhação!

Salvo, talvez, a da menstruação,
que há de passar caso Eva for longeva;
cada fruto do jardim sua fome ceva,
sem ser preciso se cair em tentação!

Mas o problema vai de parte a parte,
porque talvez a mãe de seu marido,
da pobre noiva seja sempre enciumada!

Feliz foi Eva, recebendo obra de arte,
pois só do saibro Adão foi concebido,
sem qualquer mãe jamais sendo mencionada!

ADÃO SEM SOGRA II

A lenda fala, porém, nessa Lilith,
em quadros medievais representada,
meio serpente, como o Mal assim mostrada,
dando a comer esse fruto que se evite!...

É de supor-se que o próprio Adão se irrite
pela presença da amante descartada,
amiga falsa de Eva -- a despeitada!
Embora o Gênesis seu nome numa cite...

Não era sogra, nem ao menos divorciada,
pois não haviam inventado o casamento,
Adão e Eva sem qualquer impedimento.

Dizem que Lilith gerou monstros, a coitada!
Quem sabe fosse mulher Neanderthal,
vendo na Filha da Costela todo o mal!...

ADÃO SEM SOGRA III

Nossa mãe Eva então foi a primeira
da longa lista das sogras virulentas!
Se a Bíblia leres com vistas mais atentas,
nenhuma filha se menciona nessa esteira.

Porém Caim, após fugir, se abeira
da Terra de Nod, com passadas lentas,
mulheres a encontrar da Lei isentas,
a que tomou sem ter sogra... a derradeira!

Mas Jesus Cristo, que o amor nos ensinou,
talvez tenha cometido algum pecado,
quando a sogra de Pedro estava à morte!

Pois da doença a megera ele curou,
o pobre Pedro novamente atribulado,
mais uma vez de genro tendo a sorte!...

PLANADORES I -- 24 Nov 2017

"Das telhas para cima, Deus e os gatos,"
assim menciona também velho ditado:
pensar em voo só um tonto descuidado
que se quebrava ao cair em tristes fatos!

Hoje alguns voam sem quaisquer recatos,
em ultraleves, planadores, mesmo alado
triciclo voador, assim motorizado,
livre do trânsito, multidão de ratos!

Em minha terra até caiu um balonista
que pretendia dar a volta ao mundo;
seu aparato consertou e lá se foi...

Dos fortes ventos perseguindo a pista,
de quaisquer gatos perseguido em iracundo
olhar que desde as telhas se constrói!...

PLANADORES II

Claro que existe aqui outra intenção:
que não se busque um ato perigoso,
sobre as telhas deves ser bem cuidadoso,
teus ossos quebras ao bater no chão!

Certo que existe algumas vezes precisão:
de uma goteira o pingo vagaroso,
de uma antena corrigir sinal ocioso
ou mesmo ao gato levar a refeição!

Porém sempre se encontra alguma emenda
pior do que o soneto, Quebra a telha
ou a antena se deixa ainda mais torta,

sem que o chamado teu bichano atenda
e a tua tolice o claro sol espelha,
quando teu plano facilmente ali se aborta!

PLANADORES III

Do passado nos vem cada brocardo!
É a voz do povo, oriunda da experiência;
melhor que fiques em casa, com paciência,
que projetar-se das telhas como um dardo!

Mas igualmente nos traz pesado fardo:
sem ousadia, sem temor da violência,
seja ao luar, seja em solar ardência,
passa-se a vida num nevoeiro pardo!

Mas é melhor que não se vá buscar
o aguilhão da adversidade,
que cedo ou tarde vem-nos procurar,

que então se enfrente na maior coragem,
mas sem um ato de temeridade
que mais depressa nos exponha a tal voragem!...

ROSÁRIO I -- 25 Nov 2017

Dizem também que quem gosta de cochicho
é o rosário em sendo dedilhado,
ave-marias em ritmo apressado,
em penitência do valor mais micho.

Cada conta passando ao outro nicho,
da mão que conta na outra mão tomado,
como um sinal de que foi completado
o envio de algum pecado para o lixo!

Poucos sabem, talvez, que esse rosário
foi adotado, no tempo das Cruzadas,
então copiado a ser dos muçulmanos,

como o sinal da cruz, tão necessário,
qual resposta a saudações de paz mostradas
na testa, boca e corações humanos.

ROSÁRIO II

Por gerações, o símbolo cristão
foi a figura do peixe, as iniciais
de ICHTHYS, mnemonias naturais (*)
para o Cristo que nos trouxe a salvação.
(*) Artifícios para recordação.

Só mais tarde se impôs a crucifixão
como signo, em aceitações universais,
variadas cruzes em formatos especiais,
sinais antigos de vetusta aceitação.

Como o aberlemno, a bela cruz dos celtas,
um astrolábio para a navegação,
bem diferente das formas mais esbeltas;

e a cruz gamada da hindu mitologia
como a suástica encontrando difusão,
da verdadeira cruz a zombaria!...

ROSÁRIO III

"De cochicho quem gosta é o rosário"
advertência contra o falatório,
elevação perturbando do cibório,
em desrespeito, afinal, pelo sacrário!

Tal cochicho é no silêncio perdulário,
de testemunho falso sendo o espólio,
contradição por igual do santo óleo,
o sacrossanto pondo a nível do ordinário.

Que do rosário cada conta seja um guizo,
em seu tinido um real preito de fé
e não apenas uma prece oca,

que assim denega o verdadeiro siso
e nessas falsas preces que se invoca,
a culpa tua a reforçar até!...

PARTILHA I -- 26 Nov 17

Dizem também que "quem parte e reparte
e não guarda para si a melhor parte
ou é tolo ou não dispõe de arte..."
Isso experiência será ou desconfiança?

Com o partidor é feita uma aliança,
talvez somente ingenuidade de criança
ou probidade que ao coração alcança
até o momento em que confiança se descarte.

Existe a fábula do Rei dos Animais
que certa presa dividiu com seus iguais,
três quartos dela já guardando para si.

"A primeira por de todos ser o rei,
segunda minha, como ordena a lei
e a terceira pelo nome que assumi."

PARTILHA II

"Assim é minha a Parte do Leão;
e a quarta parte... podem vir buscar,
que embaixo de minha pata vou guardar...
Quem buscará primeiro sua porção?"

Raposa, Lobo e Urso em aceitação,
o animal forte sem querer desafiar.
qual gente humilde, enfim, vai aceitar
só as migalhas que recebe na ocasião.

De fato, vê-se aqui certo desprezo
por quem reparte e do lucro não se adona,
dizem que é tolo ou que não sabe repartir,

tão natural sendo entre nós o vezo
de partido tomar, no qual se toma
muito mais do que se chega a dividir.

PARTILHA III

Este é o fruto desta errônea educação
ou falta dela: que a desonestidade
leve o povo a votar sem probidade,
escolhendo quem bem sabe ser ladrão,

pois esse encontra sempre aceitação,
por partilhar da comum iniquidade:
ninguém progride pela honestidade,
mas somente quem explora a seu irmão.

Não é de admirar a corrupção
que permeia cada nicho do governo:
nossa gente se queixa, mas respeita...

Pois sabe muito bem que na ocasião,
acesso tendo a tal poder interno,
de forma igual agiria por sua feita!...

PARTILHA IV

A maioria de fato sente é inveja,
por mais que finja sua indignação,
querendo em tal fortuna pôr a mão,
que a Mega-Sena raramente enseja...

Não interessa a agremiação que seja,
todas buscam do poder dominação,
com firmeza a defender conservação:
só ultrapassar aos outros se deseja!

Isso, afinal, é a natureza humana,
quando não tem um freio inibitório,
que somente se adquire desde o berço;

sempre algum que trabalha mais se afana,
a maioria atende ao fim perfunctório (*)
de algumas velas acender durante o terço!
(*) obrigatório, insincero.

PARAÍSOS I -- 27 Nov 2017

São tão claras as luzes das estrelas
nas noites em que a Lua desfalece,
quando o frio tiritante de uma prece
preenche o altar da alma com mil velas.

Somente Vênus, sedutora das donzelas
brilha no espaço enquanto o Sol não desce,
Selene oculta que no céu se engesse, (*)
ainda mais raras as estrelas nas procelas.
(*) A Lua dos gregos.

Sempre é preciso que morra a Lua Cheia
e que se funda do plenilúnio a prata,
para que estrelas demonstrem seu fulgor

e enquanto da paixão o ardor permeia
não se consegue enxergar, que a luz nos mata
chama discreta de um real amor...

PARAÍSOS II

Como é aprazível o jardim que Alá daria,
ideal perfeito que não concederia
no céu cristão a gentil tapeçaria,
no céu judaico nenhuma huri se abraçaria.

O ideal budista ameaças não faria;
na fé bramânica se reencarnaria,
no céu de astecas só ingressaria
quem qualquer morte violenta sofreria.

Se eu fosse um bom pagão, só passearia
pelos Campos Elíseos em que o dia
nunca mais por avistar eu sofreria;

se por acaso qualquer deus ofenderia,
talvez ao Orco em seu furor me lançaria
enquanto Roma soberana ainda seria!

PARAISOS III

Que ocorreu, afinal, com tantas almas
que habitavam o Orco sob Roma?
Foram lançadas ao Limbo, estranha coma,
na qual ressonam em suas longas calmas?

E que dizer dos egípcios, em suas palmas,
papiro e tamareira em larga soma?
Seus pecados e ações Osíris toma
e então decide o destino dessas almas...

O coração a ser pesado na balança,
mais leve que uma pena em tal juízo,
sob os olhos faminto do inimigo...

Qual resultado que finalmente alcança
a obediência a seus deuses, velho siso,
que no meu sêmen trago ainda comigo?

PARAÍSOS IV

O que houve no Valhalla se os guerreiros
os combates finais já não mais querem?
Nessas lutas infindáveis não se ferem,
mas se restauram saudáveis e inteiros...

Se não houver Ragnarok, esses lanceiros
asgardianos, ferozes quando inserem
montantes e francisques, sem que alterem (*)
a seus corpos tantos monstros verdadeiros...
(*) Espadas longas e machados de dois gumes.

Para que lutam, então, sobre esse arco-íris?
E que dizer dos celtas, em suas piras,
sob o langor do visgo e a cornamusa?

Alma moderna, quando os olhos gires,
todo o antanho recortado em mil estiras,
qual paraíso te servirá de escusa?

PARAÍSOS V

E que dizer do sonho fluorescente,
desse brancor de nuvem inclemente,
do gêiser puro em límpida nascente,
gerando arco-íris em jato intermitente?

E que dizer do raio incandescente
que me ilumina às vezes, tumescente,
em relâmpago e fragor iridescente,
que parte o coração e agita a mente?

E que dizer do derradeiro instante,
do grito desse pasmo delirante,
do barrido incontido do elefante?

E que dizer do orgasmo de uma amante
redolente de ardor, perto e distante
em seu espasmo de entrega triunfante?

PARAÍSOS VI

Resta descer a teu ventre um dedo longo,
mais delicado que um punhal vermelho;
de teu vulcão encarnado a cor espelho,
espelho o coração ao som de um bongo.

É longo o som do sexo em tal gongo,
o gongo que assinala o sonho velho,
o fim do sonho velho em som de relho,
lançado contra ti vigor de congo.

Meu dedo é delicado e acaricia
apenas teu prazer sem nada em troca,
tange o clitóris sem que nele adentre.

Porém teu sexo é carnívoro e angustia,
um paraíso em purpurina boca
quando minha espada desce no teu ventre.

JORNADAS I -- 28 NOV 17

O amor longe foge do amor perto;
o amor cutelo procura o amor alfanje;
o amor de chama amor de fogo tange;
o amor povoado busca o amor deserto.

Amor de sono encontra amor desperto;
amor sem gume afia amor de flange;
amor silêncio esconde o amor que range;
o amor concreto abraça o amor incerto.

Amor amargo que doce amor atura;
o pétreo amor conduz a amor areia;
amor dolente nos braços do amor cura;

amor de linfa escorre no amor veia;
amor sublime pela paixão impura,
na cor do amor que treme em branca teia.

JORNADAS II

Na palma de minha mão as cinzas trago
para espalhar lentamente sobre o oceano;
sobre a espuma preconizam ledo dano,
do oceano a fome as recebe em brando afago.

São cinzas do cinzel que empunha um mago,
o corpo a dissolver-se em fogo lhano,
no transparente véu de fino pano,
dossel de alfombra em sortilégio vago.

Não te cremei, é certo, foi um sonho
que se desfez em poeira, lentamente,
enquanto o rosto se me acinzentava,

de mim punhados a escorrer, tristonho,
ventos perdidos no interior da mente,
enquanto o coração em dor cantava.

JORNADAS III

Tannhäuser se aproxima, majestosa
melodia em meus ouvidos, som solene;
triunfal essa marcha de perene
conotação da morte portentosa.

O peregrino abandona a flor da rosa
e se recobre das cinzas em que fene- (*)
ce a juventude e a mente indene:
só remanesce a atração mais olorosa.
980 Emprego da Sinafia.

Para usar de caminhante tal burel
é preciso primeiro essa estamenha
amortalhar ao redor da alma pequena,

reduzida a um retalho só de fel,
rasgado o cérebro através da brenha
a que a si mesmo só a culpa lhe condena.

LEGADO I -- 29 Nov 2017

Quando morrer, só terei pena de meu corpo
deixado para trás, que me serviu
tão bem nos anos todos que me viu
habitar em seu seio a contragosto...

Quando morrer, ao ver meu corpo torto,
abandonado a cada abutre que sorriu,
que em seu rictus sardonicus me expeliu,
mau grado seu, ao mundo etéreo exposto.

Ai, que pena terei!  Sempre aos doenças
e os acidentes soube dominar,
mas que tem de terminar, que tudo acaba....

Exceto, quanto pregam as minhas crenças,
meu próprio ser que há de se evolar,
contra a evidência, pois de imortal se gaba...

LEGADO II

Em testemunho do que, firmo e assino,
para em minha vida nada mais constar,
sequer um verso em documento apresentar:
datilografo e dou fé, porque combino

para que seus efeitos legais possa
donde quer que venha a ser apresentado,
que levarei meu fardo designado
por toda a vida, até chegar a comum fossa.

Que meus deveres cumpri por toda a vida,
sem ter deixado nenhum deles para trás
e de meus crimes me tenho absolvido,

que circunstâncias me levaram de vencida
e de perdoar-me todo o tempo hoje me faz,
sem que na culpa dos versos tenha crido.

LEGADO III

Mas não me sinto acorrentado pela lei
que lá no antanho nos legou Moisés,
nem Mandamentos calcarei aos pés,
mas por vontade própria os seguirei.

Só nas Epístolas de Paulo ainda crerei,
bem melhor que na obediência dessas fés;
no coração e na mente guardo as sés
da graça plena a que me entregarei.

Posso sentir algum dia o desalento
ante amargura, desdém, monotonia
e na poesia perder o atrevimento;

porém conservo ainda o bom-humor
e mesmo em meu momento de agonia
o meu sorriso trairá igual pendor.

LEGADO IV

Se hoje morrer, só sentirei saudade
desse meu corpo que me serviu tão bem,
feito em geleia meu cérebro também;
não sei se poeira fui ou divindade.

Sei que em mim desembocou a humanidade;
em seus legados contradição nos vem;
os ancestrais a coabitar nos veem:
olham de dentro a exterioridade...

Porém lástima não tenho pela vida,
que bem ou mal, em plenitude foi vivida,
chegado o tempo da final separação;

e caso seja o fim, um igual sorriso
eu mostrarei, por mais seja impreciso
meu passo firme direto à escuridão.

ESFOLAMENTO I -- 3O NOV 17

"Toda nudez será um dia castigada"
nos declarou o teatrólogo Rodrigues;
se por acaso em tal temática te intrigues,
muito mais do que a carne é revelada.

Mas não me dispas em público por nada,
só à memória de meus versos ligues
bem mais nudez do que a do corpo abrigues,
neles a alma é que se acha desnudada.

Por tal razão, seu castigo é bem maior
nesta época em que nudez é até premiada,
se for do corpo, em plástica perfeita;

mas quem desnuda o coração melhor,
é desprezado na fantástica caçada
a que sincero coração o povo enjeita.

ESFOLAMENTO II

Comentei com a mulher a ferraria
que empreguei como imagem num soneto;
ela me disse, com ar de zombaria,
que ferraria é esse galpão repleto

de ferraduras para montaria
e que esporas tem bastante, no indiscreto
comentário que a traição me cheiraria,
se não notasse o seu teor secreto.

Isso que a leva a falar dessa maneira
é mais temor de ver-se descartada
em favor de meus versos seresteiros,

pois já percebe que minha vida inteira
foi à trova mais romântica legada
que no final da solidão nos faz herdeiros.

ESFOLAMENTO III

Nós abortamos a morte diariamente,
deliberadamente ou por acaso;
a alguns talvez não tenha vindo o prazo,
outros porque a combatem duramente.

B. Traven, que redigiu ocultamente
sob este pseudônimo até o ocaso,
admitiu certa vez que tal atraso
havia escolhido sem temor fremente.

Quando a Morte se põe à cabeceira
de um doente, por certo o levará,
não importando os cuidados que se tenham.

Mas se ficar aos pés, mais sorrateira,
é que, ao contrário, até o protegerá,
não obstante os males que lhe venham.

ESFOLAMENTO IV

Talvez percebas como alucinação,
mas todos nós um dia já a encontramos,
de vez em quando, se não mais sonhamos
e de lado descartamos a ilusão.

E ao se falar sem falsificação,
todos nós igualmente asseveramos
que dia houve que para nós imaginamos
um outro mundo de melhor feição.

E é só assim esta vida.  Se aceitamos
o que o olhar nos mostra, padecemos
e é por isso que de noite nos perdemos;

mas quem igual que eu dorme tão pouco
nem em delírio a enxergará tampouco,
porque somente na poesia alucinamos.

SURFANDO EM SECO I -- 1º DEZ 17

Me inclino para o chão, vejo os ladrinhos
e sinto penetrá-los.  Para trás
fica meu corpo, ainda a contemplá-los,
vista esgazeada em seus antigos trilhos.

Me esquivo desse chão, mas vejo os brilhos
e me esforço em dominá-los.  Tanto faz
que sejam apenas reflexos a copiá-los,
arcos mortiços dos desejos filhos.

Por baixo dos ladrilhos, outro mundo
de nuances negras, mas magia acesa,
são mudos os seus sons e a cor macia;

nadando pelo chão, o olhar rotundo
tateia erradamente, a língua presa
nesse desmaio que nem sequer havia.

SURFANDO EM SECO II

Não há alusão a qualquer embriaguez
senão aquela que me vem de Dionyso (*)
nas dunas do poema em que preciso
deslizar sobre a prancha da nudez.
(*) Deus grego da inspiração poética.

Todo poema um certo grau de insensatez,
é mais na prosa que se revela o siso,
Minerva e Júpiter enviando seu aviso
de que a poesia já grande mal nos fez.

Pois quem se perde nos versos, como eu,
e inerme surfa pelos pavimentos,
o equilíbrio mal sabendo conservar

cantou nos versos o quanto não viveu,
vogando em vida sem tomar assentos,
enquanto o verso vem-nos devorar!

SURFANDO EM SECO III

Assim contemplo o que ninguém mais vê,
em meus abismos feitos de agonia,
nos quais a mente surfando pretendia
algo existir em que ninguém mais crê.

Mas quem nos diz que a estrutura dê
só permissão a quem desvendaria
e como em Raio-X penetraria
por trás das letras da página que lê?

Assim surfo nas folhas e minha prancha
é uma caneta que escorre sáfica
toda a ilusão que as ondas me dariam,

quando a maré meu coração desmancha
na tinta apenas de uma esferográfica
em que os neurônios audazmente surfariam...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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