terça-feira, 28 de junho de 2011

BOTÕES DE OSSO


BOTÕES DE OSSO I

Plantei
o meu amor por ti no meu jardim:
lancei meu sêmen e o retrato
que não tinha;
na mesma cova juntos enterrei.
Semeei
meu coração da mesma forma assim,
na mesma cova em que
a semente vinha,
por garantia do sonho que sonhei.
Um dia,
passada a geada e vinda a primavera,
a dicotiledônea 
eu vi brotar enfim:
entre outras flores quase não se via.
Sentia
não fosse mais uma esperança mera:
que o broto assim nascido,
em parcimônia,
minha carne inteira me devoraria.
Aguardei,
dentro do mais solene ceticismo,
querendo crer, porém ainda descrendo,
em meu solipsismo,
até te ver crescendo em meu jardim.

BOTÕES DE OSSO II

Chamei,
inutilmente, pela tua atenção,
com a chama fraca deste meu chamado,
em som manchado:
que quem procura acha, encontra lenha.
Talvez não tenha
nada mais que combustível para queima
do próprio coração, em fogo brando:
minha voz reclama,
chamei a chama e afivelei a flama.
Flanou o archote,
sem chegar a esquentar-me a refeição;
guardei na mão essa inteira erupção,
em ácida ilusão,
das bolhas dessa mesma queimadura.
Queimei
o meu chamado na mesma ignição
que teu nome gravou na minha palma
e retirou-me a calma
por todo o tempo que o porvir me traz.
Pois no chamado
que me queimou, em tão singela paz,
aceso o facho da auto-cremação,
apenas vejo que meu coração
não se desfaz.

BOTÕES DE OSSO III

De fato,
eu já nem sei porque "botões de osso" ganhei ou escolhi para ser título
ou ser legenda,
dada a esta série de sabor mais grosso.
Bem mais puro
sempre foi o brilhar de meus sonetos,
são mais secretos, são menos herméticos,
porém melhor descrevem 
os meus afetos e tantos desafetos.
Este formato livre
me escraviza e igualmente martiriza
essa medula de meus próprios ossos,
 rasguei na carne fossos
e os minerei para fazer botões.
Drenei
toda a medula no interior do cálcio,
guardei em tubos feitos de minhas veias,
em rubras peias,
amarradas as pontas com meus nervos.
E fabriquei,
com mil cuidados, meus botões de osso
para prender as vestes que vestia,
cobrindo a carne em verde investidura,
que, sem os ossos, nem mais se movia.

BOTÕES DE OSSO IV

Foi, portanto,
belo exercício de inutilidade,
como são tantas ilusões humanas
e desumanas:
nem mãos eu tinha para pregar botões!
Tomei
essas redes neurais de minha mente,
para forjar-me um par de novas mãos
e a inteligência
sofreu bastante, como consequência.
Mas estes dedos
me permitiram a quebra de gravetos,
mil galhos secos que roubei pra mim,
até montar um esqueleto vegetal
que introduzi, de novo, na minha carne.
Enverdeci,
com a clorofila das dicotiledôneas,
fluindo entre meus músculos,
arcanos os opúsculos:
lavor de estátua viva e sem maldade.
Então vesti
essa mesma indumentária que tirara,
pele por flor e a flor tornada em pele
brotou-me assim,
como uma planta óssea em meu jardim.

BOTÕES DE OSSO V

Esperar o que se pode
de roupa presa por botões de osso?
Tendo roubado o próprio sustentáculo,
desperdiçando
o próprio viço nessa atividade?
E assim eu fiz:
cada poema foi um botão de osso,
que retirei de minha carne mesma,
sem ter piedade,
ossos partindo, com desfaçatez.
Por que teria?
Meus ossos só serviam de suporte
a transportar meu porte, sem destino
e, em gesto fino,
fui polindo um a um em diadema.
Não precisamos
só para as vestes ter tantos botões:
eu fiz colares para os corações,
tornozeleiras,
para adornar os pés de minhas senhoras.
E assim, marchei,
desprovido de meus ossos, afinal,
que os dei como presentes, cada um,
nos versos pobres
de quem não tinha ouro para dar.
E desse modo,
preciso de ossos de uma mulher viva,
que queira partilhar minha carne
e o sangue,
e se disponha a me nutrir, exangue.
E se enrolar
numa só pele que a nós dois envolva,
que de dentro, em conjunto abotoaremos,
 com o que restou
de meus botões de osso.

BOTÕES DE OSSO VI

Que a vida é assim:
só pode cada um dar o que tem
e quem dá o que tem a pedir vem:
pedi também
qualquer botão de osso para alguém.
Mas até hoje,
por mais que ossos tenha distribuído,
meu esqueleto segue destituído:
não recebi em troca
dos ossos meus os ossos de ninguém.
Eu poderia,
é claro, ir correndo ao cemitério,
que fica bem pertinho de minha casa,
abrir as sepulturas
e roubar novos ossos para mim.
São ossos secos,
meio roídos de ratos e baratas,
que não possuem medula ou hemoglobina
nem clorofila
e mal me podem servir como arcabouço.
E é por isso
que ossos preciso de mulheres vivas,
que comigo repartam carne e sangue:
não mais exangue,
enfim completarei botões de osso.

BOTÕES DE OSSO VII

Eu só percebo
como é difícil para mim o verso livre.
Eu realmente tento outro formato
e então descubro
que tão somente criei nova cadência.
A experiência
que iniciei com meus botões de osso
apenas reciclou final insosso,
e para o mesmo fosso
redunda sempre e escorre nesse sulco.
Mesmo que busque
evitar novo formato permanente
eu vejo aqui apenas alternados,
cinco quintetos com versos mutilados,
porém compostos em ritmo constante.
É interessante
descobrir que por trás destes quintetos:
dois versos curtos contra três mais longos,
se acha o secreto
descantar da meiga trilha do quarteto.
E mesmo aqui,
por mais que eu queira dar novo formato,
contra a cesura e as rimas eu me esbato
e fico sempre
acorrentado a verso nada livre.

BOTÕES DE OSSO VIII

Eu vou empós
a trança inexistente nos cabelos
de quem eu decidi chamar de amada,
mulher completa,
em sua pureza e em sua desfaçatez.
Eu vejo nela
o rosto expectante de outras mil:
olhos castanhos, verdes, cor de anil,
mulher secreta,
nunca sei se me espera ao amanhecer.
Já me queixei,
em centenas de versos rebotalhos,
descrevendo a profundez de tantos talhos,
mas eu a quero,
mesmo sabendo que me desapontarei.
Não é quem quero:
ela é si mesma, em sua independência,
ela é si mesma, nessa inconsequência
de ter mil almas,
violentas, ponderadas ou mais calmas.
E assim a quero,
sem saber a quem terei no dia seguinte,
se me dará carinho ou mau acinte,
mas fiel regresso
aos mil pendores que habitam numa só.

BOTÕES DE OSSO IX

Eu bem queria
que me desse mais um pouco de carinho
e menos amargura me mostrasse
nessa surpresa,
com que parece oscilar por outras mentes.
O corpo é um só,
com tantos atributos femininos
e me desperta humores fesceninos,
mas a maneira
com que me encara oscila diariamente.
E talvez seja,
realmente, um conjunto esquizofrênico,
alguns de cujos membros mal toleram
estar comigo,
enquanto eu me convenço que amo a todas.
Algumas têm
o que parece ser amor profundo,
mas outras, de pendor mais iracundo,
me põem em fuga,
pois nem sequer ela sabe o que me espera.
Mas permanece
junto de mim, seja seu vulto irado
ou com sorriso apenas esboçado
e nunca saberei
quando se acha pronta para um beijo.

BOTÕES DE OSSO X

Mas eu usei
a pele de minha carne por tecido
e um manto costurei, que tem unido
seu corpo ao meu,
mesmo quando procure estar distante.
É como a capa,
tanto buscada pelos alquimistas,
para serem invisíveis nas conquistas
dos dons do mundo,
sem serem atingidos por hostis.
É inconsútil
essa capa costurada com fibrilas
geradas por plaquetas de minha alma
e não há como
separar os que se encontram sob ela.
A única abertura
é a bainha em que caseei botões de osso,
usando como linha minhas pestanas,
olhando cego,
por olhos que não podem lacrimar.
Mas fechei bem
e assim a trago aninhada contra o peito,
quer tenha, quer não tenha tal direito
e a chamo minha,
na mesma chama que a queimara no meu leito.

BOTÕES DE OSSO XI

E, no entretanto,
por tanta vez já provocou meu pranto,
nos dias mornos do desapontamento,
que desconfio
dos dias quentes desse seu carinho.
Fico a cismar
porque agora me trata deste modo,
se tanta vez tratou-me como incômodo
e então me disse
palavras tolas, sem arrependimento.
Já tive antes
súbitas fases de amor sem condições,
mas surgiram depois as ocasiões
em que mudou,
nem parecendo ser a mesma de antes.
Por isso, temo
entregar-lhe o coração mais uma vez,
nessa esperança de que seja permanente
o novo jeito
com que sorriem seus olhos para mim.
E às vezes, quero,
mas não chego a dizer que assim prefira
que se demonstre mais indiferente
e não oscile
entre os extremos opostos do carinho.

BOTÕES DE OSSO XII

Que brote, então,
esse enlace final da hemoglobina,
nessa verde reunião das mariposas,
com a clorofila,
mesmo que seja rede que me prenda.
Os meus botões,
transformados em versos cor de tinta,
costurados sem rimas, mas caseados,
estão bem firmes,
em suas casas de pele sem rasgões.
Que chegue a hora
em que os gravetos que formam os meus ossos
se enlacem firmes nos gravetos dela,
a ninfa esquiva,
que até aqui não abdicou do bosque antigo.
E que perdure
essa farsa em que ponho todo o alento
e que forneça amor como sustento,
mesmo que ela
o aceite apenas como um dom devido.
Porque os botões
pregaram firme sua alma contra a minha
e por mais que se rebele de mesquinha,
está comigo,
nas entranhas felinas de sua alma.