quinta-feira, 23 de junho de 2011

YERSENIA PESTIS





YERSENIA PESTIS I 
(Peste negra, peste bubônica)

Nos farrapos do sonho mil carcaças
rebrilham no ouropel das coisas mortas;
toda a esperança já de mim recortas
na mercurial desdita das vidraças.

Sobre minha mente teu olhar perpassas
e fico a referver estranhas cordas,
entrelaçando desterros em que acordas,
ao repassar as bênçãos mais escassas.

Nessa vida, só encontro a turbulência,
no esgar que vem de ti e me devora,
casulo inerme em fiapos de ilusão,

revestido da calma da impaciência,
a marchetar futuro com o outrora,
na saga imemorial da escoriação.

YERSENIA PESTIS II

Enrodilhado estou nessa obscura
revelação do crepúsculo enfadonho;
abrir um poço nas nuvens me proponho:
banhar-me pela Terra é coisa dura.

Mesmo assim, nessa areia se procura
um desjejum de pedra mais tristonho;
com calhaus sobre o prato me disponho
à refeição que minha miséria cura.

São estes os venenos que me embebem,
antídotos de sonhos, lamparinas,
na força azul que a alma me derrota;

nas sombras do passado que me seguem,
a geada desce, em mil estrelas finas
e em rosa o coração assim desbota.

YERSENIA PESTIS III

Eu me esforcei, Deus sabe, e não podia
ter feito mais que quanto já cumpri,
nessa luta em que tanto dispendi,
grasnaram corvos em coro de alegria.

Nessa luta velhíssima, jazia
toda a amplidão da dor que não sofri:
transfigurei bem mais do que vivi,
no momento em que afinal nem existia.

Apenas consegui me contemplar
no espelho azul de minha ineficiência:
meus versos nada mais que poluição,

que nem sequer consigo separar
em lixo orgânico ou de seca proveniência,
na reciclagem de meu coração.

YERSENIA PESTIS IV

Busco alcançar da vida minha vendeta
em siciliano rebrotar, velho rancor;
obrigação de sentir igual frescor
no ódio antigo, que jamais se aquieta.

A paz minha impiedade mal afeta,
congela inutilmente tal ardor;
causou-me o mundo trauma multicor
e permanece assim sempre incompleta

a mente, cujos cacos eu perdi
no tempo em que trabalho consumi:
mil grãos de alma são meu desalento.

Por sílica troquei o meu carbono,
tornei-me refratário a todo evento
que se oculte nas paredes de meu sono.

YERSENIA PESTIS V

A multidão dos sonhos eu retalho
em regimento escasso e desfalcado:
pesadelos, afinal, em disfarçado
repicar dessas linhas que embaralho.

Com faca aguda e rapidez de talho,
nem dou conta do sangue derramado:
coagulado vejo o meu enfado,
a cada gota que a redor espalho.

É assim que a ilusão se manifesta:
apenas uma chuva passageira,
como as manchetes que vejo nos jornais.

Somente um circo em permanente festa,
em que a alma se desfaz em fina poeira
e não se pode recompor jamais.

YERSENIA PESTIS VI

São mil sonhos de vidro e nostalgia,
as lascas em fiapos amontoadas,
as cascas em pavios amortalhadas,
magnético esse choque que explodia,

enlouquecida a bússola escorria,
em mil auroras de gotas despencadas,
cem pétalas, enfim, desencontradas,
cada retalho uma ilusão seguia.

E nessa indagação que perseguia,
cada plano formado com cuidado,
numa chapa de espelho transparente,

a carne inteira em líquido jazia,
apenas símbolo vazio de meu passado
a refletir um futuro inconsequente.

YERSENIA PESTIS VII

Saúde é uma ilusão em que me escude,
nos projetos trepidantes de saudade,
afastada de mim toda a piedade,
na contumaz justiça que me ilude.

Sua falta é uma crise que desnude
cada incerteza que sente a humanidade,
cada rancor que a mente inteira enfade:
rebola a vida quais bolas de gude...

Essas esferas perdidas, sem abraço,
lançadas sempre contra novo alvo,
nesses estalos que nunca se completam,

a projetar-se para fora, nesse espaço
do eterno desencontro, vidro calvo,
lascas das almas que mutuamente afetam.


YERSENIA PESTIS VIII

Contudo, estes simples entrechoques
mostram a vida, tal qual como ela é:
não mais que uma ilusão desde o sopé,
nos efeitos amargos dos remoques.

Por mais de leve portanto, que me toques,
como bolas de gude nos chocamos,
num brando tilintar desencontramos,
envoltos cada qual nos seus enfoques.

De forma igual que bolas de bilhar,
impulsionadas por celestes tacos,
para as grutas secretas das caçapas,

sem que se saiba qual destino irão tomar,
até o seu mergulho nos buracos,
amortalhadas nas derradeiras lapas...

YERSENIA PESTIS IX

Politicamente incorreto se tornou
chamar de "peste negra" essa bubônica.
A língua, passo a passo fica afônica,
de tanta proibição que se ajuntou...

Mas nem por isso a peste se acalmou,
em seus bubões de aparência cônica.
É aguda essa doença, nunca crônica:
Nostradamus uma cura imaginou

com pétalas de rosa, uma raiz
e agulhas de pinheiro e até salvou
a quarta parte de quantos atendia.
Ou, pelo menos, é o que a história diz.
Mas bem menos sucesso ele alcançou,
ao fracassar em tanta profecia...

YERSENIA PESTIS X

E quando ouço falar em epidemia,
qual essa "gripe suína" que me ronda
e que aperta o pulmão como anaconda,
nos anéis de fatal pneumonia...

Recordo quanta gente mais morria,
como bem sabe quem a história sonda,
de influenza ou da fatal gironda
da peste negra que todos atingia...

E não me abala assim a gravidade
da nova gripe, pouco mais que andaço:
só novo circo que nos apresentam,

enquanto a dengue campeia de verdade,
enquanto a AIDS amplia o seu espaço
e os corações aos poucos se arrebentam...

YERSENIA PESTIS XI

O mundo a meu redor, condescendente
eu contemplo, em minha mácula ambiciosa:
o arroz eu aspirei, comi a rosa
e em suas sépalas me sequei indiferente.

Amor passou por mim feito água quente,
escorreu-me pelos ombros, luz leitosa,
espiras de cristal, mágoa viscosa,
para perder-se no ralo, descontente.

Sequei de mim amor, gotas somente:
pequenas poças ficaram na banheira,
pequenos pingos guardei no coração

e finjo não querer, por impotente,
o conquistar da prenda derradeira,
que encheu de ouro todo o meu pulmão.

YERSENIA PESTIS XII

Se te parece assim inesperado
o rumo que tomaram estas linhas,
não te surpreendas, pois não foram minhas
que da mente vem cozido e instigado

o conteúdo de cada verso alado
e me surpreende o ardor destas espinhas
mais do que a ti que agora te avizinhas
desse cantar de ritmo encantado.

O sonho não é meu, pertence a ti:
faz dele o que quiseres e interpreta
como melhor a ti se adaptar...

Que a poesia foi a peste que eu vivi:
não me matou, porém a alma coleta
aos pedacinhos, a cada descantar.




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