sábado, 29 de agosto de 2015





ALVARRAL (SIFTLING)
(Duodecaneto de William Lagos, 27 SET 10)

ALVARRAL I  (peneirinha)

Não passa a vida, afinal, de peneirinha,
por entre cujas malhas, sem maldade,
os dias escorrem da felicidade,
enquanto ela os amargores nos retinha.

Conservam seus arames toda linha
de desgostos, de tristeza, falsidade,
enquanto o bem gozado, de verdade,
para a próxima vasilha se avizinha.

O dom feliz é qualidade rara,
que não pode pertencer somente a um:
é pequeno demais para guardar-se,

mas é grande demais, ágata rara,
para prender-se nos dedos, bem comum,
para com todos, enfim, compartilhar-se.

ALVARRAL II

Só há uma forma de reter felicidade,
enquanto a vida escorre nessas malhas:
é esperar que as mágoas e suas falhas
sejam retidas em grande quantidade.

Mesmo assim, com mais frequência espalhas
pelas beiras da peneira, na verdade,
o dom feliz que nela sobrenade,
arrastado pelas mais pequenas palhas.

Mas quem consegue, a peso de tristezas,
conservar para si um feliz véu,
descobrirá qual o peso que elas têm:

que essa tela romperão com suas vilezas
e ao invés de penetrares nesse céu,
acabarás por não ter nada também.

ALVARRAL III

Também a vida peneira as amizades,
se bem que ocorra de modo diferente:
as falsas vão-se e ficam, tão somente,
as revestidas de mais sinceridades;

porque é tão fácil se encontrar nas sociedades
todo tipo de povo, tanta gente
que só nos acompanha no presente,
enquanto a festa flui em suas vaidades;

mas na hora do teste ou na tristeza,
quando se mostra verdadeiro sentimento,
chegado o instante maior de precisão,

apenas poucos ficam, com certeza,
a grande parte é de egoísta julgamento,
os quais escorrem pelas malhas e se vão.

ALVARRAL IV 

Somente quem é sólido na vida
escapa firme do teste dessa malha:
mesmo quando a colher espreme e talha
permanecem grudados e a saída

nunca buscam, por pior que seja a lida,
porque se firmam na esperança falha,
sem escorrer como a água que se espalha:
ficam contigo até a despedida;

mas grande parte não passa de mingau
que desce lentamente, infame massa
a acumular-se na vasilha ou prato;

não te acompanha no momento mau,
por entre as malhas facilmente passa,
nesse abandono sem qualquer recato.

ALVARRAL V

Mas quando ficas rico ou tens sucesso,
são muito poucos os que passam pela tela:
eles se grudam, famintos, nessa bela
esperança de ganhar melhor acesso

à glória de teus bens... Eu não esqueço
que a amizade dessa gente é como vela,
derrete bem depressa e logo gela:
escolhe bem os teus amigos, eu te peço;

dá preferência àqueles que, contigo,
sabem chorar, sem falso desaponto
e que repartem contigo a água e o pão;

apenas nesses acharás final abrigo
quando ao triunfo vem o contraponto
e se afastam os demais, sem compaixão.

ALVARRAL VI

A compaixão, realmente, é fato estranho!
Não corresponde ao natural egoísmo,
já que o mundo é para nós solipsismo;
só o nosso eito merece o nosso amanho.

É compreensível que seu próprio ganho
cada um busque no seu narcisismo;
foi por isso que falhou o comunismo:
sonho vazio em seu ideal tacanho!...

Porque ter compaixão é a dor sentir
que não é nossa, mas no ar se evola
e a reforçá-la com a própria substância

dada a quem nos procurar para pedir
e não se refugiar na ideia tola
de recriar o mundo em nova instância...

ALVARRAL VII 

Vou peneirar as palavras com cuidado,
para reter apenas as mais belas;
palavras curtas como a luz de estrelas,
palavras longas como o meu pecado!

Por entre as malhas escorrem com agrado
essas palavras em que o amor congelas;
essas palavras que preferias tê-las
para escutar da voz do ser amado!

São retidas pelas malhas as compridas,
quantas expressam melhor o encantamento,
as que transformam em som cada emoção,

essas palavras que concretam vidas,
completando cada amor com seu cimento
e induzindo a própria lama à compaixão!

ALVARRAL VIII

Disse um filósofo que o melhor castigo (*)
seria dar ao povo exatamente
o que afirmam desejar frequentemente:
cada desejo novo e cada antigo!...
(*) Philipp Mainländer.

Aos mais compridos desejos dar abrigo,
roupas bonitas e a bebida ardcnte,
as boas comidas e o sexo frequente,
aparelhos e automóveis ter consigo,

que um dia descobrem serem tais vontades
bem o oposto do almejado dom de Midas:
o ouro virado em palha por Sadim!...

E só então perceberiam as ansiedades
reais, bem lá no fundo de suas vidas,
para ao presente dar mais valor assim!...

ALVARRAL IX

Hoje de novo, essa questão social
retoma nova voga, tal qual foi
nos tempos de Mainländer, como sói
estar em moda sempre esse fanal.

Que se demonstre compaixão é natural,
mas o moinho da vida o tempo rói
vem a velhice cedo ou tarde – e dói!
Não se pode querer ser sempre igual.

Assim sempre persistem as diferenças;
algum nasceu já no berço em deficiência,
outros dotados de todos os favores

e é inútil contrariar as velhas crenças:
sempre haverá alguém com impotência
e sempre alguém alcançará novos amores!

ALVARRAL X 

Onde quer que se implantou o comunismo,
logo a seguir, surgiu um alvarral:
foi peneirando assaz depressa o ideal
que permitira a imposição do populismo,

que uma rápida nobreza, em puro egoísmo,
se foi formando, em processo natural,
o povo a continuar no estado igual
ou pior mesmo, por mais paternalismo

que fosse oferecido pelo Estado,
que bem depressa se tornou em tirania
e suas benesses se foram corroendo,

nessa penúria (que foi o mingau passado),
cada vez menos riqueza do que havia...
E o desigual seguiu prevalecendo!...

ALVARRAL XI

Pois se metade recebe assim, de graça
aquilo que extraíram da metade,
será a tendência normal da humanidade
não querer mais trabalhar, só por pirraça!

Não que o elogio do atual mundo se faça:
toda riqueza acumulada, na verdade,
sempre foi recolhida, sem bondade,
pelo esforço de muitos em desgraça...

Sinceramente, em nossa sociedade,
bem pouco adianta ao pobre se esforçar,
se for honesto, o operário não é rico,

por mais que ele trabalhe à saciedade,
mas só quando consegue retirar
o alpiste alheio para o próprio bico!

ALVARRAL XII

E assim sempre será: essa peneira
irá durar enquanto o mundo é mundo;
quem alega professar ideal profundo
não passa de um hipócrita sem beira,

que almeja para si riqueza inteira,
empanturrar-se até ficar rotundo,
trazer a si todo o gozo rubicundo,
usando o povo somente como esteira!

Meu alvarral, assim, é carta aberta:
que a leia quem quiser; pouco me dá,
porque esse mundo não mudará em nada.

E só descrevo a minha carreira incerta.
E a ti ajudarei, irmão, enquanto há,
em minha peneira, uma esperança alada!


quinta-feira, 27 de agosto de 2015


A GATA E O PAPAGAIO
(Crônica de Théophile Gauthier, que descreve a cena
como sendo verdadeira, adaptação e versificação de
William Lagos, 16 ago 2015).

A GATA E O PAPAGAIO I

Madame Teófilo era gata avermelhada,
de peito branco, olhos azuis, nariz rosado,
que vivia acompanhando o escritor,
que nessa época não havia se casado
e se portava como a esposa do senhor,
com toda a residência acostumada...

Como é costume dos gatos, adormecia
aos pés da cama, quando o dono permitia,
bem mais comum entre mulheres tal costume,
porém Gauthier com ela se aprazia
e certas vezes, até, sem azedume,
por baixo dos lençóis a recebia...

E como era solteiro, ele brincava
que a gata ruiva era, de fato, a sua esposa;
ela deitava nos braços da poltrona
quando ele qualquer história deliciosa
ia escrever, demonstrando ser a dona
e com frequência até sua pena afocinhava!...

Porém o poeta, mesmo assim, não se animava
a empurrá-la para um lado, divertido,
secando a mancha com seu mata-borrão!
(um objeto quase hoje esquecido,
mas de grande utilidade na ocasião,
quando só tinta líquida se empregava!)

A GATA E O PAPAGAIO II

Naturalmente, só se escrevia à mão,
pois não havia a datilografia
e muito menos o atual computador!
E se você desse atraso hoje sorria,
dentro de alguns anos, meu amor,
do atual computador outros rirão!

E tampouco existia essa ração
que hoje insistem prescrever veterinários:
cães e gatos partilhavam da comida
de seus donos, felizes usuários,
sem que doença os levasse de vencida,
longas suas vidas de grande agitação!

Madame Teófilo tinha a sua tigela,
na mesma mesa que o jovem escritor,
que comia em pratos, como é natural...
Mas não fazia bagunça na mesa, não, senhor!
Lambia a tigela, gentil esse animal,
pois cuidadosa a gata sempre se revela!

Mas às vezes, decerto por capricho,
demonstrava ter um certo atrevimento,
se lhe agradasse a comida do escritor
e roubava, até do garfo, num momento
algum pedaço do melhor sabor,
pois achava ser gente o lindo bicho!

A GATA E O PAPAGAIO III

Ao escritor acompanhava em toda a parte,
exceto quando ele saía para a rua,
mas passeava junto dele no quintal
e no jardim, pois raramente assim se amua,
olhando as aves acomodadas mal
em um pequeno galinheiro, num descarte.

O próprio Gauthier colhia os ovos,
mas quem as matava era sua cozinheira,
de quem sentia até ciúme essa gatinha;
porém roubava os pedaços, bem ligeira
e mastigava até mesmo uma patinha,
ainda mais quando os bichos eram novos!

E assim viviam muito bem os dois amigos.
Madame Teófilo tinha sua bandejinha,
sem que sujasse jamais da casa o chão
e algumas vezes, bancando a espertinha,
subia no vaso, na mais fiel imitação,
sem escorregar ou correr qualquer perigo!

Mas quando vinham visitas, se escondia,
especialmente as do sexo feminino,
ainda mais quando fossem demorar!...
Enfiava-se em algum canto pequenino,
sendo educada demais para miar,
porém muito certamente se ofendia!

A GATA E O PAPAGAIO IV

E só saía quando a casa estava vaga,
sempre depois de Gauthier muito a chamar:
hesitando, sem interesse, falsamente,
para depois, só aos poucos, se ir roçar
nos tornozelos do amigo, bem contente
quando a mão do escritor seu pelo afaga...

Mas certo dia, lhes surgiu um contratempo:
um dos amigos de Gauthier foi viajar
e lhe pediu que cuidasse o papagaio!...
“A gaiola e todo o alpiste vou-lhe dar,
será somente durante o mês de maio,
nem irá notar a passagem desse tempo!...”

Gauthier, a princípio, bastante relutou:
“Logo essa ave que trouxe do Brasil!...
Você não sabe que moro com uma gata?”
“Meu papagaio não é qualquer pássaro vil,
é acostumado a defender-se desde a mata,
de onça e carcaju já se escapou!...”

“Está bem, mas não serei o responsável,
caso a gata o atacar!...  Eu o avisei!...”
“Ora, nem se preocupe...” – disse o amigo,
“O meu louro, estando aqui, será o rei!
Sabe livrar-se de qualquer perigo!...
Se algo ocorrer, não o terei por imputável!...”

A GATA E O PAPAGAIO V

E assim chegou o papagaio louro,
que na verdade, era todo bem verdinho,
somente o bico luzindo de amarelo!...
Nunca entendi esse tal apelidinho,
seja embora, de fato, um bicho belo,
que todos julgam ser de bom agouro!...

Mas veio a ave protegida por gaiola,
mesmo assustada com o pouso estranho
e em seu poleiro se encarapitou,
a calcular o seu prejuízo e ganho
logo depois que a gata ele avistou,
girando os olhos redondos como bola...

Mas a surpresa maior foi a da gata...
Aquele bicho não parecia ser galinha!
Nem cachorro, nem pássaro ou mulher!...
Mas a proteção das grades ele tinha
e não temia um bote de qualquer
predador igual àqueles de sua mata!...

Porém a gata ficou imóvel, fascinada,
como um felino no Egito embalsamado,
a evocar toda a história natural
que recolhera no jardim e no cercado.
Lembrava a grade, é claro, um material
que dela protegia a galinhada!...

A GATA E O PAPAGAIO VI

Seus olhos, tão somente, se moviam,
como expressando claros pensamentos,
imersa a gata em tal perturbação:
Decididamente, não me falham julgamentos:
isso não é um pardalzinho, como são
esses que às vezes no jardim cantam e piam!

Bastante bons de comer bem que eles são,
mesmo que o “meu marido” desaprove,
mas já engoli canários e pardais:
seu sangue é quente e como se comprove,
como-lhes penas, o bico e até mais
devoraria, caso caíssem em minha mão!

Mas esse bicho que os pardais é bem maior;
pequeno e estreito demais para galinha...
Um galo verde eu tampouco jamais vi!...
Chegada à conclusão, essa gatinha
pulou da mesa ao topo, a olhar dali
esse “frango” que a encarava com terror!

Depois, igual ao que fazem as panteras,
seu ventre arrastando contra o chão,
as patas estendidas e a cabeça
inclinada para a frente, em contração,
sobre o canto da mesa, era uma peça
a apresentar-se qual verdadeira fera!

A GATA E O PAPAGAIO VII

O papagaio acompanhava o movimento
bastante inquieto, reconhecendo seu perigo:
a mesma tática para caçar uma gazela!...
Seu olhar esgazeando ao inimigo,
sem ter certeza se o protegia dela
de sua gaiola o gradil já ferrugento!...

Ele eriçou as penas, como um galo,
fez ressoar, apressurado, sua corrente,
as patas levantando e aguçando
o bico contra o comedouro, loucamente,
todo ele o tal confronto já esperando:
talvez a fera acabasse por matá-lo!...

Pois nos olhos da gata ele enxergava
certa linguagem que compreendia muito bem:
Acho que é um frango bom de se comer,
Embora seja verde a cor que tem!...
A decidir se teria jeito de o abater,
mesmo com o tal gradil que a atrapalhava!

Gauthier toda essa cena observava,
com bastante interesse e divertido,
pronto a intervir, chegado o seu momento;
mas antes que algo o tivesse prevenido,
Madame Teófilo, em fluido movimento,
Sobre a gaiola já se precipitava!...

A GATA E O PAPAGAIO VIII

Contudo, é claro que a grade resistiu!
No lado oposto, encolheu-se o papagaio
e ela tentou a volta dar, pensando:
Vou com cuidado, senão daqui eu caio!
E de fato, se acabou precipitando,
caindo em pé, como gata, já se viu!...

Gauthier a abraçou e a gata lhe pediu,
com uma série de miados lastimosos,
que o papagaio no almoço lhe servisse!...
Deu-lhe o poeta abraços carinhosos:
“Mas não é de se comer!” – ele lhe disse
e com amor para a gata então sorriu...

Foi depois à avezinha consolar,
que tremia, lá no alto do poleiro,
mesmo estando sua gaiola bem fechada.
Acusou-o a gatinha, bem ligeiro,
dessa traição com que fora desprezada
e então Gauthier lhe ofereceu outro manjar...

Porém a gata não havia desistido
e nessa tarde já continuou a rondar,
suas garras a fechar, depois a abrir,
os olhos lentamente a revirar,
seu pelo estremecendo sem sentir,
a calcular a refeição que havia perdido!

A GATA E O PAPAGAIO IX

Não obstante, sendo animal inteligente,
observou quando a água era trocada,
mais o alpiste e a folha de jornal
que pelo louro, em seu terror, fora sujada!
E percebeu, com sua esperteza natural,
que se abria a portinhola facilmente!...

Já no outro dia, ela deu um novo bote
e com os dentes, ergueu fácil o ferrinho
que a porta da gaiola destrancava!
Mas Gauthier foi se achegando, de mansinho,
ou o papagaio do amigo ela matava,
pois a cabeça ali enfiara até o congote!...

Mas antes que a pudesse retirar,
e papagaio exclamou, em alta voz:
“Não almoçaste ainda, Frederico?”
Sentiu a gata qual se animal feroz
a atacasse, mas sem sequer o bico
o seu focinho rosado pinicar!...

Pois foi tomada de um pavor irresistível,
tal se escutasse um toque de clarim
ou a banda marcial mais estridente
ou alguns tiros de arma de festim,
foguetes ou o som mais imponente
de um canhão, na descarga mais terrível!

A GATA E O PAPAGAIO X

Os seus conceitos sobre aves transtornados,
o seu focinho expressando claramente:
Mas isso não é ave, é meio gente!...
Gauthier nos braços acolheu-a, facilmente,
passando os dedos no seu pelo, como um pente,
seu coração em batimentos desvairados!...

E o papagaio, até então bem quieto,
pôs-se a palrar, com voz bem forte e rouca,
para Gauthier meio ensurdecedora,
já convencido de que este som treslouca
a gata – bela defesa protetora –
vencedor sobre o terrível desafeto!...

Madame Teófilo permaneceu no colo
durante, pelo menos, meia hora,
a olhar Gauthier acusadoramente;
então pulou ao assoalho e foi-se embora
para o jardim, em que ficou tranquilamente,
lambendo os pelos, quase em torcicolo!

No dia seguinte, recuperada a calma,
aproximou-se, devagar, dessa gaiola,
mas antes que tentasse outra tocaia
o grasnar do papagaio até a sua cola
agitou, como o vento agita a faia,
que aquela voz lhe perturbava a alma!

EPÍLOGO

Muito em breve, o amigo retornou
e encontrou o papagaio imperturbado.
Agradeceu e o levou logo consigo...
Percorreu a gata toda a casa com cuidado,
convenceu-se de que o terrível inimigo
tinha ido embora... e finalmente se acalmou!