segunda-feira, 24 de agosto de 2015





Galeão Espanhol, xilogravura de Christiaan Verbeeck, 1618.
O poema abaixo, escrito em alexandrinos, foi publicado na
Antologia Del’Secchi, Volume XXV, 2015.

TRAVESSIA

 A bordo vinham meus sonhos; antigamente
 Usavam uniformes, brava gente,
 A enfrentar garbosamente oceanos.
 Eram sonhos reais; na fugidia
 Luz da manhã o seu olhar luzia,
 Contemplado, a sorrir, por veteranos

 Que doutras tantas viagens navegavam
 E sabiam como os mares destratavam
 Os sonhos jovens nas ondas refulgentes:
 Que muito em breve, essas tranquilas ondas
 Seriam mais profundas do que as sondas
 E os sonhos não seriam suficientes.

 Não é que houvesse tantas tempestades:
 Foi mais a calmaria, as saciedades,
 A despertar em minhalma a sensação
 De que tudo era inútil desatino,
 Que a multidão dos sonhos de menino
 Não era mais que vaga exaltação.

 Seguiram no navio, trocando as velas,
 Aqueles pobres sonhos, já sequelas
 Do que antes tinham sido; inquietação
 Constante no intestino, enjoo manso,
 Sabendo que esforçar-se sem descanso
 Não impediria sua lenta humilhação.

 Foram sendo superados, um a um,
 Amorteceram; afogou-se algum,
 Porém a maioria adormeceu.
 Do olhar se foi a luz... Ficou desdita,
 A luta se manteve, nessa aflita
 Contemplação de um ser que não morreu,

 Mas não vive tampouco, nessa mágoa
 Inconsequente de trilhar a tábua
 Sempre oscilante do velho tombadilho:
 Percepção constante e visceral,
 Que não importa o ardor mais triunfal
 No oceano da vida: escuro e brilho

 Independem de nós, são aleatórios,
 Os ventos nos arrastam, peremptórios
 E o bem e o mal nos chegam sem esforço.
 Sobreviveram os sonhos, resistentes,
 Porém sabendo que muito mais potentes,
 São o acaso e a aleivosia, seu reforço.

 Assim os sonhos passaram a cumprir ordens
 Dos desgostos, das pragas, das desordens,
 Tornaram-se confiáveis e obedientes,
 Esperando, talvez, terminaria
 Em um porto essa viagem, dia a dia,
 Contrário o vento e de tufões frequentes.

 E a bordo vêm meus sonhos, no presente,
 Esfarrapados, magoados, no impotente
 Esforço de cumprir tanta rotina,
 Roídos de escorbuto, doídos, fracos,
 Escravos da esperança, pobres cacos,
 Com lustro ainda ao fundo da retina. 

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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