quinta-feira, 27 de agosto de 2015


A GATA E O PAPAGAIO
(Crônica de Théophile Gauthier, que descreve a cena
como sendo verdadeira, adaptação e versificação de
William Lagos, 16 ago 2015).

A GATA E O PAPAGAIO I

Madame Teófilo era gata avermelhada,
de peito branco, olhos azuis, nariz rosado,
que vivia acompanhando o escritor,
que nessa época não havia se casado
e se portava como a esposa do senhor,
com toda a residência acostumada...

Como é costume dos gatos, adormecia
aos pés da cama, quando o dono permitia,
bem mais comum entre mulheres tal costume,
porém Gauthier com ela se aprazia
e certas vezes, até, sem azedume,
por baixo dos lençóis a recebia...

E como era solteiro, ele brincava
que a gata ruiva era, de fato, a sua esposa;
ela deitava nos braços da poltrona
quando ele qualquer história deliciosa
ia escrever, demonstrando ser a dona
e com frequência até sua pena afocinhava!...

Porém o poeta, mesmo assim, não se animava
a empurrá-la para um lado, divertido,
secando a mancha com seu mata-borrão!
(um objeto quase hoje esquecido,
mas de grande utilidade na ocasião,
quando só tinta líquida se empregava!)

A GATA E O PAPAGAIO II

Naturalmente, só se escrevia à mão,
pois não havia a datilografia
e muito menos o atual computador!
E se você desse atraso hoje sorria,
dentro de alguns anos, meu amor,
do atual computador outros rirão!

E tampouco existia essa ração
que hoje insistem prescrever veterinários:
cães e gatos partilhavam da comida
de seus donos, felizes usuários,
sem que doença os levasse de vencida,
longas suas vidas de grande agitação!

Madame Teófilo tinha a sua tigela,
na mesma mesa que o jovem escritor,
que comia em pratos, como é natural...
Mas não fazia bagunça na mesa, não, senhor!
Lambia a tigela, gentil esse animal,
pois cuidadosa a gata sempre se revela!

Mas às vezes, decerto por capricho,
demonstrava ter um certo atrevimento,
se lhe agradasse a comida do escritor
e roubava, até do garfo, num momento
algum pedaço do melhor sabor,
pois achava ser gente o lindo bicho!

A GATA E O PAPAGAIO III

Ao escritor acompanhava em toda a parte,
exceto quando ele saía para a rua,
mas passeava junto dele no quintal
e no jardim, pois raramente assim se amua,
olhando as aves acomodadas mal
em um pequeno galinheiro, num descarte.

O próprio Gauthier colhia os ovos,
mas quem as matava era sua cozinheira,
de quem sentia até ciúme essa gatinha;
porém roubava os pedaços, bem ligeira
e mastigava até mesmo uma patinha,
ainda mais quando os bichos eram novos!

E assim viviam muito bem os dois amigos.
Madame Teófilo tinha sua bandejinha,
sem que sujasse jamais da casa o chão
e algumas vezes, bancando a espertinha,
subia no vaso, na mais fiel imitação,
sem escorregar ou correr qualquer perigo!

Mas quando vinham visitas, se escondia,
especialmente as do sexo feminino,
ainda mais quando fossem demorar!...
Enfiava-se em algum canto pequenino,
sendo educada demais para miar,
porém muito certamente se ofendia!

A GATA E O PAPAGAIO IV

E só saía quando a casa estava vaga,
sempre depois de Gauthier muito a chamar:
hesitando, sem interesse, falsamente,
para depois, só aos poucos, se ir roçar
nos tornozelos do amigo, bem contente
quando a mão do escritor seu pelo afaga...

Mas certo dia, lhes surgiu um contratempo:
um dos amigos de Gauthier foi viajar
e lhe pediu que cuidasse o papagaio!...
“A gaiola e todo o alpiste vou-lhe dar,
será somente durante o mês de maio,
nem irá notar a passagem desse tempo!...”

Gauthier, a princípio, bastante relutou:
“Logo essa ave que trouxe do Brasil!...
Você não sabe que moro com uma gata?”
“Meu papagaio não é qualquer pássaro vil,
é acostumado a defender-se desde a mata,
de onça e carcaju já se escapou!...”

“Está bem, mas não serei o responsável,
caso a gata o atacar!...  Eu o avisei!...”
“Ora, nem se preocupe...” – disse o amigo,
“O meu louro, estando aqui, será o rei!
Sabe livrar-se de qualquer perigo!...
Se algo ocorrer, não o terei por imputável!...”

A GATA E O PAPAGAIO V

E assim chegou o papagaio louro,
que na verdade, era todo bem verdinho,
somente o bico luzindo de amarelo!...
Nunca entendi esse tal apelidinho,
seja embora, de fato, um bicho belo,
que todos julgam ser de bom agouro!...

Mas veio a ave protegida por gaiola,
mesmo assustada com o pouso estranho
e em seu poleiro se encarapitou,
a calcular o seu prejuízo e ganho
logo depois que a gata ele avistou,
girando os olhos redondos como bola...

Mas a surpresa maior foi a da gata...
Aquele bicho não parecia ser galinha!
Nem cachorro, nem pássaro ou mulher!...
Mas a proteção das grades ele tinha
e não temia um bote de qualquer
predador igual àqueles de sua mata!...

Porém a gata ficou imóvel, fascinada,
como um felino no Egito embalsamado,
a evocar toda a história natural
que recolhera no jardim e no cercado.
Lembrava a grade, é claro, um material
que dela protegia a galinhada!...

A GATA E O PAPAGAIO VI

Seus olhos, tão somente, se moviam,
como expressando claros pensamentos,
imersa a gata em tal perturbação:
Decididamente, não me falham julgamentos:
isso não é um pardalzinho, como são
esses que às vezes no jardim cantam e piam!

Bastante bons de comer bem que eles são,
mesmo que o “meu marido” desaprove,
mas já engoli canários e pardais:
seu sangue é quente e como se comprove,
como-lhes penas, o bico e até mais
devoraria, caso caíssem em minha mão!

Mas esse bicho que os pardais é bem maior;
pequeno e estreito demais para galinha...
Um galo verde eu tampouco jamais vi!...
Chegada à conclusão, essa gatinha
pulou da mesa ao topo, a olhar dali
esse “frango” que a encarava com terror!

Depois, igual ao que fazem as panteras,
seu ventre arrastando contra o chão,
as patas estendidas e a cabeça
inclinada para a frente, em contração,
sobre o canto da mesa, era uma peça
a apresentar-se qual verdadeira fera!

A GATA E O PAPAGAIO VII

O papagaio acompanhava o movimento
bastante inquieto, reconhecendo seu perigo:
a mesma tática para caçar uma gazela!...
Seu olhar esgazeando ao inimigo,
sem ter certeza se o protegia dela
de sua gaiola o gradil já ferrugento!...

Ele eriçou as penas, como um galo,
fez ressoar, apressurado, sua corrente,
as patas levantando e aguçando
o bico contra o comedouro, loucamente,
todo ele o tal confronto já esperando:
talvez a fera acabasse por matá-lo!...

Pois nos olhos da gata ele enxergava
certa linguagem que compreendia muito bem:
Acho que é um frango bom de se comer,
Embora seja verde a cor que tem!...
A decidir se teria jeito de o abater,
mesmo com o tal gradil que a atrapalhava!

Gauthier toda essa cena observava,
com bastante interesse e divertido,
pronto a intervir, chegado o seu momento;
mas antes que algo o tivesse prevenido,
Madame Teófilo, em fluido movimento,
Sobre a gaiola já se precipitava!...

A GATA E O PAPAGAIO VIII

Contudo, é claro que a grade resistiu!
No lado oposto, encolheu-se o papagaio
e ela tentou a volta dar, pensando:
Vou com cuidado, senão daqui eu caio!
E de fato, se acabou precipitando,
caindo em pé, como gata, já se viu!...

Gauthier a abraçou e a gata lhe pediu,
com uma série de miados lastimosos,
que o papagaio no almoço lhe servisse!...
Deu-lhe o poeta abraços carinhosos:
“Mas não é de se comer!” – ele lhe disse
e com amor para a gata então sorriu...

Foi depois à avezinha consolar,
que tremia, lá no alto do poleiro,
mesmo estando sua gaiola bem fechada.
Acusou-o a gatinha, bem ligeiro,
dessa traição com que fora desprezada
e então Gauthier lhe ofereceu outro manjar...

Porém a gata não havia desistido
e nessa tarde já continuou a rondar,
suas garras a fechar, depois a abrir,
os olhos lentamente a revirar,
seu pelo estremecendo sem sentir,
a calcular a refeição que havia perdido!

A GATA E O PAPAGAIO IX

Não obstante, sendo animal inteligente,
observou quando a água era trocada,
mais o alpiste e a folha de jornal
que pelo louro, em seu terror, fora sujada!
E percebeu, com sua esperteza natural,
que se abria a portinhola facilmente!...

Já no outro dia, ela deu um novo bote
e com os dentes, ergueu fácil o ferrinho
que a porta da gaiola destrancava!
Mas Gauthier foi se achegando, de mansinho,
ou o papagaio do amigo ela matava,
pois a cabeça ali enfiara até o congote!...

Mas antes que a pudesse retirar,
e papagaio exclamou, em alta voz:
“Não almoçaste ainda, Frederico?”
Sentiu a gata qual se animal feroz
a atacasse, mas sem sequer o bico
o seu focinho rosado pinicar!...

Pois foi tomada de um pavor irresistível,
tal se escutasse um toque de clarim
ou a banda marcial mais estridente
ou alguns tiros de arma de festim,
foguetes ou o som mais imponente
de um canhão, na descarga mais terrível!

A GATA E O PAPAGAIO X

Os seus conceitos sobre aves transtornados,
o seu focinho expressando claramente:
Mas isso não é ave, é meio gente!...
Gauthier nos braços acolheu-a, facilmente,
passando os dedos no seu pelo, como um pente,
seu coração em batimentos desvairados!...

E o papagaio, até então bem quieto,
pôs-se a palrar, com voz bem forte e rouca,
para Gauthier meio ensurdecedora,
já convencido de que este som treslouca
a gata – bela defesa protetora –
vencedor sobre o terrível desafeto!...

Madame Teófilo permaneceu no colo
durante, pelo menos, meia hora,
a olhar Gauthier acusadoramente;
então pulou ao assoalho e foi-se embora
para o jardim, em que ficou tranquilamente,
lambendo os pelos, quase em torcicolo!

No dia seguinte, recuperada a calma,
aproximou-se, devagar, dessa gaiola,
mas antes que tentasse outra tocaia
o grasnar do papagaio até a sua cola
agitou, como o vento agita a faia,
que aquela voz lhe perturbava a alma!

EPÍLOGO

Muito em breve, o amigo retornou
e encontrou o papagaio imperturbado.
Agradeceu e o levou logo consigo...
Percorreu a gata toda a casa com cuidado,
convenceu-se de que o terrível inimigo
tinha ido embora... e finalmente se acalmou!



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