domingo, 23 de agosto de 2015





O MOINHO MÁGICO
(Folclore português, coletado de Histórias do Arco da Velha, de Viriato Padilha,
adaptação e versão poética de William Lagos, 5 ago 2015)

O MOINHO MÁGICO I

Quando Portugal era ainda um país novo,
viviam dois irmãos em uma aldeia,
Leôncio, o morgado, toda a herança a receber,
consoante era costume então no povo
e a Casimiro, o mais moço, uma chácara a caber,
com uma casinhola de parede e meia...

De sua horta e do pomar se alimentava,
mais a mulher e três filhos, com trabalho,
sem nunca uma poupança lhe sobrar;
porém, às vezes, a seca ali chegava
ou quando a neve ele via acumular
a cada inverno, todo o esforço lhe era falho.

E como nenhum dinheiro lhe sobrara,
pois, realmente, nada pudera vender,
era obrigado a pedir auxílio ao irmão,
o primogênito, que até riqueza acumulara;
este o ajudava, mas com dor no coração,
a lamentar tal pobre auxílio a conceder...

Chegada a véspera, então, de outro Natal,
que nessas terras ocorre pelo inverno,
a neve alta a horta havia abafado
e muito embora seja fértil Portugal,
todas as árvores se haviam desfolhado
e nada tinham para tal feriado eterno...

O MOINHO MÁGICO II

Casimiro evitava o mais possível
pedir auxílio ao irmão, pois bem sabia
que só era dado de muito má vontade;
mas comer neve é mesmo incompatível
e até sua lenha acabara, na verdade
e nem água aquecer se poderia!...

As árvores frutíferas se havia podado,
mas cada galho fora inteiro consumido
e o alimento em cinco bocas se consome...
Sem outra alternativa, envergonhado,
mas impelido pela família a passar fome,
foi Casimiro ao mau irmão fazer pedido...

“Mas outra vez?”  Disse Leôncio, em mau humor.
“Mas tu não paras de me pedir ajuda!
Com tua chácara te deverias contentar!...”
“Leôncio, caiu neve que é um pavor,
a meus filhos não tenho alimento mais a dar...
São seus sobrinhos, afinal, e a crise é aguda!...”

“Ora, sobrinhos!  Nunca ouviste esse ditado:
A quem Deus não dá filhos, o diabo dá sobrinhos?
Mas faremos o seguinte, já que chegou o Natal.
Eu te darei um presunto bem curado,
mas terás de me jurar, é natural,
cumprir uma tarefa, por difíceis os caminhos!”

O MOINHO MÁGICO III

“É uma tarefa só?” – Casimiro perguntou.
“Será uma só, mas bastante demorada...”
“Pois bem, eu juro,” – concordou o infeliz.
Leôncio em sua despensa penetrou
e voltou com um presunto: “Este é o melhor que fiz!
Vais me cumprir a promessa combinada?”

“Claro que sim, meu irmão, eu prometi!”
“Pois então, vai para o inferno, Casimiro!...”
Naquele tempo havia uma grota em Portugal
e para o inferno se ingressava por ali,
segundo diziam, mesmo sem ter feito mal,
mas um inocente só por lá daria um giro...

Então Casimiro deu adeus a seu irmão,
que boa viagem lhe desejou, às gargalhadas!
“Dei minha palavra, não fica o dito por não dito!”
murmurou Casimiro, tomado de emoção
e sopesando o presunto, com seu peito aflito,
tomou a estrada para as regiões mal afamadas...

Caminhou várias horas, até chegar a uma caverna
muito escura, sem luz, cheirando mal.
“Acho que é aqui...” pensou o pobre, com um suspiro.
Encontrou um velho, em tarefa quase eterna.
“É aqui o inferno?...” – falou, triste, Casimiro.
“Fica bem perto, para quem é de Portugal...”

O MOINHO MÁGICO IV

“Aqui é só uma estação do purgatório:
por dois mil anos terei de cortar lenha,
até que venha um arcanjo me buscar;
mas caso atenda a qualquer um peditório,
de minha pena alguns anos vão cortar.
Talvez você em meu auxílio venha...”

“Por que carrega esse presunto saboroso?”
“Ganhei de meu irmão, mas fiz promessa
de marchar até o inferno, em pagamento...”
“Seu rico irmão tem um caráter pavoroso,
mas empregue agora bem seu julgamento:
não prometeu ficar no inferno, não se esqueça!”

“É verdade!   Só prometi ir até lá!...”
disse o infeliz, um tantinho já aliviado.
“Pois bem, dou-lhe um conselho, meu amigo.
O inferno fica naquela rocha de acolá;
pode chegar-se sem sofrer qualquer perigo;
há uma fenda onde o penhasco foi cortado...”

“Consigo ler bastante bem seu coração:
É um bom trabalhador e algum pecado
que tenha cometido é só venial...
De qualquer modo, as almas em punição
deixaram os corpos por pecado capital:
você está vivo, não pode ser capturado...”

O MOINHO MÁGICO V

“Mas ocorre que a comida por lá é escassa,
porque as almas eles não podem devorar,
que não têm carne ou sangue e nem têm ossos;
e quando virem seu presunto, a feia raça
dos diabos ou condenados em destroços
farão tudo para poderem-no comprar!...”

“Mas não o venda por dinheiro algum,
nem por promessa de qualquer bem material,
nem recebendo a maior das ameaças;
diga aos diabos que o preço é apenas um:
o moinho antigo que afasta mais desgraças,
que está no inferno por um engano natural.”

“Satanás uma alma quis comprar,
mas no negócio acabou sendo enganado
e precisou se contentar com esse moinho,
que atrás da porta resolveu então deixar
pois não o pôde carregar para seu ninho,
pois foi por Deus, há séculos, abençoado!”

“De fato, dele até quer se desfazer,
porém não o pode lançar fora
pois conserva em si mesmo uma virtude:
só a um homem bom ele pode pertencer
e não se entrega a qualquer de alma rude;
vai pechinchar, mas não se engane agora!”

O MOINHO MÁGICO VI

“Se o seu presunto entregar por outro preço.
será sinal de que caiu em tentação
e então os diabos o poderão reter!...
Vá até lá e faça só o que lhe peço,
assim cem anos da minha pena vou abater,
pois meu conselho foi realmente boa ação!”

“E na volta, passe aqui com seu moinho,
que lhe ensinarei o melhor meio de o usar
e uma palavra para o fazer parar...
Vá, meu amigo, siga o seu caminho;
logo a entrada do inferno irá alcançar:
faça o sinal da cruz antes de entrar!...”

E lá seguiu Casimiro o seu caminho,
o cheiro de enxofre cada vez mais forte,
o ar pesado, igual que em tempestade,
chegando à fenda, bem devagarinho...
Fez o sinal da cruz, pouco à vontade,
recomendando a Deus toda a sua sorte!

Estava escuro, mas ao longe havia fogo,
com arrepios pôde escutar os ais
dos que sofriam pelos seus pecados...
Quase em seguida, já escutou um rogo:
“Cristão, dê-me o presunto!  Bons bocados
são raros por aqui!... Eu sinto fome por demais!”

O MOINHO MÁGICO VII

“Não posso dar.  Esse presunto é um presente
de meu irmão para a ceia de Natal
com meus três filhos e minha boa mulher...”
“Pois diga o preço!” – rugiu o diabo, imponente,
posso pagar qualquer coisa que quiser;
posso atender qualquer desejo material!...”

“Ora, não quero vender,” – falou logo Casimiro,
mas atrás da porta vocês guardam um moinho
que há muito tempo por Deus foi abençoado...”
“Não diga essa palavra!  Em nosso giro
esse nome jamais pode ser falado!...
Dou cem cruzados e um botijão de vinho!...”

Mas logo outros diabos ali apareceram,
mil ofertas fazendo-lhe, à porfia:
ouro e prata, fazendas, namorada
e de prendê-lo sempre ali o ameaçaram.
“Aqui estou vivo, não me podem fazer nada:
só um pecado mortal aqui me prenderia!”

“O meu presunto só darei pelo moinho!”
E os mil capetas a Satanás chamaram,
que com o negócio, finalmente, concordou.
Mas Casimiro primeiro deixou o ninho
e só lá fora o presunto ele trocou
pelo moinho que os diabos lhe alcançaram!

O MOINHO MÁGICO VIII

Olhou o artefato com um certo desaponto:
funcionava, mas estava enferrujado...
Troquei o presunto por esta traquitanda!...
Mas caminhou até chegar ao mesmo ponto
em que, empenhado em sua pena nefanda,
reencontrou-se com o velho condenado...

“Graças a Deus que você me obedeceu!”
“Mas de que serve este moinho, sem ter grão?”
“Amigo, ele dará qualquer coisa que pedir!”
E o condenado um comando então lhe deu
e Casimiro do moinho viu sair
uma salsicha e um pedaço de bom pão!

Logo a seguir, o pobre velho murmurou
e o moinho parou então de funcionar.
Ele comeu o pão com avidez...
“Percebe o bem que você hoje arranjou?
Ele dar-lhe-á cada coisa por sua vez,
ouro ou comida, roupa, o que mandar!...

“Mas agora, vou dizer ao seu ouvido,
porque os diabos não a podem escutar,
a palavra que interrompe o seu processo.”
E murmurou, consoante havia prometido.
“Não vá esquecer!  Uma coisa só lhe peço,
que a ninguém mais a venha revelar!...”

O MOINHO MÁGICO IX

Nesse momento, surgiu um clarão
e do céu um arcanjo apareceu:
“Fizeste bem, arrependido pecador,
trocaste a pena por esta boa ação!”
Pegou o velho e partiu num resplendor
e Casimiro ao bom Deus agradeceu.

Chegou em casa já era noite alta;
dormiam as crianças e a mulher
o repreendeu por tão grande demora;
“Fiquei sozinha e estou passando falta
e nem me trazes comida nesta hora!
Só um moinho, sem termos grão sequer!”

“Calma, mulher, este moinho é abençoado!
Dá-me tuas mãos para juntos orar...”
Com um suspiro as mãos magras lhe estendeu
e depois da oração ter terminado,
o moinho a Casimiro já atendeu,
uma ceia de Natal logo a entregar!...

Sua mulher ficou então maravilhada
pois os pratos não paravam de sair,
travessas e talheres e até vinho!...
Com a palavra oculta murmurada,
após soltar uma coroa de azevinho,
logo o moinho parou de produzir!...

O MOINHO MÁGICO X

Rapidamente, às crianças acordaram,
cheias de fome, mas ainda estremunhadas,
e se puseram todos a comer,
rendendo graças pelo bem que conquistaram;
satisfeitas, já tornaram a adormecer,
sem por momentos ficarem desconfiadas...

Os pais, contudo, continuaram a comer,
e então Candinha, a mulher, queria guardar
as sobras para ter no dia seguinte,
mas Casimiro lhe falou para esquecer,
que a bênção continuaria; e por acinte
foi brinquedos ao moinho encomendar!...

E logo apareceram um trenzinho,
uma boneca e depois, jogo de armar,
até que Casimiro a palavra sussurrou.
Mas Candinha, sem ter ânimo mesquinho,
curiosa lhe indagou: “Mas onde que encontrou
esse objeto de magia singular...?”

“Ora, ganhei de meu irmão um presunto
e a seguir eu o troquei pelo moinho...
Melhor negócio não se podia fazer!”
Mas a mulher insistiu no mesmo assunto:
“Quem da fortuna se disporia a desfazer?”
“Um lenhador, que encontrei no meu caminho...”

O MOINHO MÁGICO XI

“Estava velho e para o céu já de partida...”
“Mas onde estava essa grande maravilha?”
“Ora, mulher, ela estava atrás da porta!...
O que interessa é que demos boa acolhida,
Onde o encontrei, afinal, que nos importa?
Foi abençoado por Deus em antiga trilha!...”

No outro dia, foi pedir alguns cruzados
e logo tinha cem moedas de ouro!
Levando duas, Candinha foi à feira...
Todos ficaram muitíssimo espantados.
“Casimiro não me disse,” – respondeu, ligeira,
“em que lugar ele encontrou esse tesouro!”

Tudo estaria bem, se não quisesse
essa riqueza para outros ostentar,
mas insistiu para os amigos convidar!
Casimiro, mentalmente, fez sua prece
e concordou que oferecesse um bom jantar
e a seu irmão resolveu também chamar...

Depois da festa, Leôncio quis saber
em que lugar ele encontrara seu tesouro
e Casimiro confessou ser o moinho
e como o outro não cresse sem o ver,
várias coisas pediu, devagarinho,
dando a Leôncio um cálice de ouro...

O MOINHO MÁGICO XII

Mas seu irmão era mau e invejoso
e insistiu em ficar com o moinho:
“Afinal, eu lhe dei um bom presunto!”
Naturalmente, Casimiro foi teimoso,
mas no final, para pôr um fim no assunto,
Leôncio jurou que o denunciaria ao meirinho (*)
(*) Oficial de justiça, a maior autoridade da aldeia.

pela prática da mais nefanda bruxaria;
“Mas lhe darei mil libras esterlinas!...”
(A moeda que usavam na Inglaterra,
com os ingleses negociava o que queria,
pois com a França estavam sempre em guerra)
e finalmente Casimiro aceitou essas propinas...

Contudo ao irmão impôs uma condição:
“Farei o negócio só no tempo da colheita;
então podes vir buscar o meu moinho,
mas as mil libras me entregas de antemão,
porque sei que és sovina e bem mesquinho,
talvez não pagues quando chegar a feita.”

Candinha ficou muito surpreendida:
“Mas por que foste vender nosso moinho?”
“Olha, mulher, sei o que estou fazendo,
Leôncio estava com raiva já incontida:
não fosse eu com a venda aquiescendo,
de bruxaria me acusaria ao meirinho!...”

O MOINHO MÁGICO XIII

Quando com mil libras chegou o portador,
Candinha ficou um pouco consolada
e Casimiro sobre o prazo lhe explicou;
antes que viessem os dias de calor,
Casimiro muita coisa encomendou,
a sua choupana sendo aos poucos ampliada.

Enterraram no porão toda a riqueza
e findo o prazo veio Leôncio buscar,
tal qual fora combinado, o seu moinho.
Mas Casimiro se portou com esperteza
e Leôncio prosseguiu em seu caminho
sem saber a maneira de o parar!...

Cumpria assim as duas promessas feitas.
pois o moinho entregava, sem dizer
a palavra que ouvira o velho sussurrar:
para cobrar-se das ameaças e desfeitas
com que Leõncio fora tanto o humilhar:
guardou o segredo com o maior prazer!

Naquela tarde, Leôncio disse à sua mulher:
“Vai hoje ao campo vigiar os meus ceifeiros,
porque hoje vou preparar nosso jantar...”
E mesmo a duvidar de seu mister,
Matilda, a esposa, saiu então para cuidar
dos empregados o trabalho nos terreiros...

O MOINHO MÁGICO XIV

Não tendo filhos, ficou Leôncio sozinho,
mas era avarento e em vez de um bom jantar
pediu ao moinho só arenques e uma sopa,
enchendo os pratos, um a um, devagarinho,
mas o moinho já molhava o chão da copa,
sopa e arenques sem parar de vomitar!

E se alagaram a copa inteira e a cozinha,
Leôncio estava totalmente atarantado!...
Abriu a porta que dava para a sala,
porém o banho de sopa sempre vinha,
enchendo a casa e a seu redor, a vala,
o ambicioso já a ficar meio afogado!...

A essa altura, Matilda e os empregados,
vinham voltando de seu dia de trabalho:
Leôncio viram, molhado e a correr:
“Prouvera Deus que estejam esfomeados,
todo o alimento para comer a bom comer,
que já nem sei o que fazer com o rebotalho!”

Finalmente, ele foi pedir a Casimiro
que pegasse de volta o tal maldito
moinho, antes que toda a aldeia se inundasse!
“Por mais mil libras seu funcionar reviro!”
E Leôncio concordou, mas que parasse
com o mar de sopa que já o deixava aflito!

O MOINHO MÁGICO XV

Casimiro chegou pela colina
o mais perto que podia dessa casa
e a tal palavra, bem baixinho, murmurou:
de imediato a enxurrada afina
e logo a produção toda secou;
entrou na casa quando a lama ficou rasa.

Já aliviado, não queria mais pagar
seu mau irmão o preço prometido,
mas Casimiro lhe falou da bruxaria:
“Todos sabem que tesouro eu fui achar,
mas você, como o banho explicaria?
À acusação o meirinho dá acolhida...”

Assim Leôncio pagou, de má vontade,
e Casimiro foi morar em Santarém,
onde comprou belíssima mansão,
do moinho a servir-se sem maldade,
por vários anos, sem ter grande pretensão,
e seu segredo não contou para ninguém!

Quanto a Leôncio, teve a casa desmanchada
e perdeu o dinheiro que guardava,
doravante precisando trabalhar,
pois diziam que sua terra era assombrada:
ninguém emprego ali queria aceitar!
Jamais sua velha situação recuperava...

EPÍLOGO

Mas certas coisas não há meio de ocultar
e um dia apareceu um capitão
de Casimiro em sua bela moradia
e insistiu até o moinho comprar,
senão na corte do rei o denunciaria
e o confisco seria certo na ocasião!

Nessa época o sal vinha de minas
de sal-gema, muito caro, é natural,
que a galeria com frequência desabava
e os mineiros sofriam fatais sinas...
Dez mil cruzados o capitão pagava,
esperando ter um lucro triunfal!...

Assim Casimiro lhe vendeu o seu moinho
e o capitão o transportou para o navio,
onde mandou que produzisse sal...
Mas Casimiro conservou seu segredinho
até que o barco afundou nesse caudal
pois o sal ficou jorrando anos a fio!...

Belo castigo para o capitão malvado,
pois até hoje ainda jorra sem parar,
sem que exista qualquer meio de o estancar
e é por isso que o mar hoje é salgado!


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