sábado, 30 de março de 2013




A MENINA QUE MATOU O PAPÃO

Um conto popular Chinês

Recontado por William Lagos, 2009



--- Capítulo Um ---

    Era uma vez uma menina chinesa chamada Meiling.    Sempre tinha sido muito obediente e respeitado os pais.  Mas quando fez quinze anos, não queria mais ajudar em casa, nem lavar, nem passar, nem limpar, nem cozinhar.  Naquele tempo na China as meninas não iam ao colégio e assim Meiling só queria ficar sem fazer nada, até que chegou a essa idade e não queria mais nem brincar, só passava deitada ou sentada no sol. 
    Os pais reclamavam dela e ameaçavam castigar, até que um dia Meiling ficou muito braba e resolveu fugir de casa.  Ela fez uma trouxa com as roupas dentro de um paninho azul, prendeu numa vara, colocou nas costas e, de noite, saiu de casa sem fazer barulho e foi para uma cidade que ficava perto.   Em seguida arranjou sete amigos, Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng e eles conseguiram uma casa para ela morar e iam visitar, cada um num dia da semana.
    Chang ia visitar nos domingos; Cheng, nas segundas; Ching, nas terças; Chong, nas quartas; Chung, nas quintas; Chiang, nas sextas-feiras; e Chieng, nos sábados. Meiling não queria trabalhar em casa dos pais, mas agora que estava sozinha, limpava a casa, lavava e passava a roupa e cozinhava.  Todos os dias ela cozinhava para um dos amigos e lavava e passava a roupa dele, além de cuidar dela mesma e começou a se arrepender de ter fugido de casa.  
    Mas em seguida, ela aprendeu a fazer bolo e doces muito bem e começou a vender para os vizinhos.  Logo conseguiu juntar um pouco de dinheiro e pensou: Eu estou aqui, longe de casa, com saudades do papai e da mamãe e estou trabalhando muito mais do que trabalhava em casa.  Meus amigos Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng me tratam muito bem e me ajudam, mas acho que em casa de meus pais eu estava melhor.            
    Desse modo, Meiling fez um delicioso bolo de amêndoas, colocou em uma caixa, enrolou no paninho azul e no outro dia de manhã fechou a casa e foi visitar os pais, para ver se fazia as pazes com eles. 



--- Capítulo Dois ---

    Meiling fechou a casa com todo o cuidado, para que não entrasse nenhum ladrão.  Também avisou Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng que ia passar uma semana com os pais.  Os amigos que visitavam Meiling um dia por semana cada um, Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng, todos prometeram vir dar uma olhada na casa para cuidar no dia em que costumavam fazer as visitas. 
    Meiling prendeu o pacote com o bolo na ponta de uma vara e seguiu caminhando pela estrada.  Mas a aldeia dos pais dela ficava muito longe e daí a três ou quatro horas, estava na metade do caminho e muito cansada.  
    Então, Meiling viu uma pedra grande na beira do caminho, arredondada em cima, mas parecia boa de sentar.   Ela colocou o pacote e a vara no chão e sentou-se na pedra.   Realmente, era confortável, até mesmo um pouco mais macia do que costumam ser as pedras.  Também estava quentinha, decerto com o calor do sol.        
    Meiling se espreguiçou, com vontade até de se deitar um pouco.  Mas se deitasse, não chegava à casa dos pais antes da noite e o bolo podia estragar.   Ela apalpou a pedra.   Engraçado, não se lembrava daquela pedra ali.  Já tinha passado por aquele lugar muitas vezes e não tinha visto. Também não tinha limo.  Não podia ter rolado, não havia nenhuma ladeira por perto, que dirá uma colina, era tudo plano. Decerto, alguém havia trazido e ia levar mais adiante depois, para alguma construção.  
    Meiling estava bem cansada e com sono, tinha passado a noite fazendo o bolo e se recostou de lado na pedra.   Estava começando a cochilar, quando ouviu uma voz rouca: 
     -- Eu quero essa comida!  
    Meiling se acordou num susto.   Olhou em volta, não havia ninguém. 
    -- Será que eu sonhei? 
    Mas a voz repetiu de novo:
    -- Eu quero essa comida e quero agora!  
    Meiling sentiu um movimento por baixo dela e se levantou de um pulo.  Uma fenda larga se abriu na pedra, cheia de dentes e com uma língua vermelha, depois se abriram dois olhos verdes e redondos. 
    -- Eu quero essa comida, já disse!  
   A pedra estava viva! Meiling era corajosa e de um pulo, pegou de volta a vara e o paninho azul com o bolo de amêndoas e deu três ou quatro passos para trás.   Será que a pedra também tinha braços e pernas?

--- Capítulo Três ---

    De fato, a pedra começou a se mover e dois braços se separaram dela, depois apareceram dois pés.   Meiling ia correr, mas logo percebeu que a pedra tinha dificuldade em se movimentar.  Mas ela falou de novo:
    -- Me dá logo essa comida, guria! 
    -- Não -- disse Meiling, muito assustada, mas corajosa.  -- Esse bolo eu fiz para os meus pais e levei a noite toda trabalhando nele.  Não vou dar para ninguém, muito menos para uma pedra falante!... 
    -- Você vai se arrepender!   Passe para cá essa comida agora mesmo!... 
    --Não vou dar coisa nenhuma! -- disse Meiling, agarrando firmemente o embrulho de pano azul.  -- São para meu papai e minha mamãe e não vou dar para ninguém!    
    -- Pois então, já que é assim, eu vou te comer também!...
    -- Primeiro, vai ter de me pegar! -- respondeu Meiling, dando meia dúzia de passos para trás, depois rindo, ao ver os esforços inúteis da pedra para se movimentar. -- Você nem consegue sair do lugar, sua pedra boba!...
    -- Eu não sou pedra, coisa nenhuma! Sou o grande papão Tereng Ganu, você não tem medo de mim? 
    -- E por que eu deveria ter medo de uma pedra que nem sai do lugar? 
    -- Porque eu só pareço pedra, mas sou de carne e osso.  Eu endureço na luz do sol, mas de noite, quando esfria, eu me movimento à vontade e sou até muito veloz.  Aí eu te pego, como o teu bolo, como a ti e ainda como teu pai e tua mãe, ouviste, guria desaforada?
    -- Meus pais moram longe daqui... -- disse Meiling, timidamente. 
--Claro que sim -- disse o monstro.  -- Moram na Aldeia do Poço Furado, a doze quilômetros daqui, eu sei exatamente onde é que fica... Hoje de noite eu vou até lá -- completou, com uma gargalhada malvada.   
Meiling imediatamente mudou de ideia e começou a correr de volta para casa. 
    -- Não adianta você fugir! -- gritou o papão Tereng Ganu por trás dela.   -- Eu também sei exatamente onde é que tu moras e hoje de noite vou até lá e vou te comer e depois chupar teus ossos um por um até tirar todo o tutano!  
    Meiling mal ouviu o final.  A essa altura, já estava correndo desesperada para casa, o pacote de pano azul com o bolo de amêndoas balançando na ponta da vara enquanto ela corria.


--- Capítulo Quatro ---

    Meiling correu pela estrada em carreira desabalada, com os gritos do papão ainda soando em seus ouvindo.  Finalmente, parou, o coração batendo sem parar, não sabia se era por medo ou por falta de fôlego.  Já não dava mais para ouvir os berros do monstro.  
    Começou a andar de novo, espiando com o canto dos olhos todas as pedras que encontrava no caminho...  E se fossem...? Mas eram apenas as pedras que existem em qualquer estrada.  
    Daí a pouco, ela avistou uma figura vindo pela estrada em sua direção.  De longe, não dava para ver quem era, mas à medida em que se aproximava, distinguiu um homem baixo e magro, todo vestido de azul, usando chinelos com sola de madeira e um chapéu redondo e pontudo na cabeça, feito de palha trançada.  
    O homem trazia uma vara atravessada nos ombros e, de cada ponta, pendia um cestinho.  As mãos e a cara eram de um amarelo escuro, quase marrom, o rosto era redondo, os olhos estreitos e puxados para os cantos, o nariz pequeno e chato, a boca fina e estreita, o queixo também pequeno e redondo.  Usava uma trança preta e comprida, amarrada com uma fita amarela. Assim que chegou mais perto, ela reconheceu a figura.  Era o seu amigo Chang.  Era correu em direção a ele. 
    -- Meiling! -- exclamou o chinês. -- O que está fazendo aqui?  Você não ia visitar os seus pais hoje? 
    -- Ai, Chang! -- disse Meiling -- me aconteceu uma coisa horrorosa!... Eu sentei em uma pedra para descansar e era o papão Tereng Ganu e ele queria o bolo que eu fiz para o papai e a mamãe e eu não quis dar e aí ele quis me comer e disse que de noite vai se levantar e vai até a minha casa e vai me matar e me comer!  Ai, Chang, por favor, por favor, posso passar a noite em tua casa?    
    Chang pareceu um pouco assustado, porque ele nunca tinha visto Tereng Ganu, mas não duvidava nem um pouquinho que existissem papões.   Ele falou:
    -- Pois é, Meiling, acontece que a minha casa é muito pequena, eu moro com a minha mulher e seis filhos, não tem lugar para mais ninguém... 
    -- Mas, Chang, o monstro disse que vai me comer!  
    -- Pois é, uma coisa muito triste...   Mas escute aqui, você sabe que eu trabalho com lascas de bambu.   Elas são bem afiadas, sabe... Eu vou lhe dar uma meia dúzia, você prende com cordão no portão de sua casa... Deixe o portão bem fechado.  Quando o monstro chegar e for abrir o portão, ele vai cortar os dedos bem fundo e, com a dor, ele vai embora e não vai lhe fazer nada...
    -- Você acha que vai dar certo? -- indagou Meiling, desconfiada.   
    -- Mas é claro que vai!... -- disse Chang.  -- Estas lascas de bambu cortam até o osso, eu vendo para fazerem gaiolas.  Os bichos e as aves não tentam mais fugir depois de se encostarem nelas pela primeira vez... Olhe, tome, tome!  Mas não vá se cortar, hein?  
    Chang enfiou a mão enrolada num pano em um dos cestos e tirou um pacotinho enrolado em palha de bambu e entregou a Meiling.  
    -- Boa sorte, hein?  Amanhã a gente se fala!... -- e saiu andando bem depressa pela estrada, deixando Meiling parada ali, louca de medo e sem saber o que fazer. 



--- Capítulo Cinco ---

    Depois de algum tempo, Meiling começou de novo a caminhar de volta para casa, pensando e tremendo de medo.  Tinha colocado o pacotinho com lascas afiadas de bambu junto com o bolo e a trouxa balançava devagar na ponta da vara, enquanto ela seguia lentamente para casa.  
    De repente, apontou outra figura na curva da estrada.   Era um homem todo vestido de azul, com um chapéu redondo de palha, tamancos e uma vara atravessada nos ombros, de que pendiam dois cestos.  Ele tinha a cara e as mãos amarelas, olhos estreitos e repuxados, nariz chato e uma boca pequena, de que saiam os dois dentes superiores do meio, os incisivos, no meio de um rosto que parecia mais uma lua cheia, da cor de queijo gordo.   A trança era preta e longa, amarrada com um pedaço de pano vermelho e balançava enquanto ele caminhava pela estrada.
    -- Cheng! -- gritou Meiling.  -- Que bom que te encontrei!... 
    -- Ora, Meiling, você não tinha ido à Aldeia do Poço Furado para visitar seus pais?... 
    -- Ai, Cheng, eu estava indo, mas sentei numa pedra e era o papão Tereng Ganu e ele disse que vem na minha casa hoje de noite me comer!... 
    -- Ora, ora, que coisa mais horrível!... -- disse Cheng, assustado.
-- Ele sabe onde eu moro, Cheng!  Ele queria o  bolo dos meus pais e eu não dei e agora ele vem me comer!... Eu contei para o Chang e ele me deu lascas afiadas de bambu para prender no portão, aí o papão corta os dedos e vai embora, mas eu acho que não vai adiantar!  Cheng, Cheng, por favor, posso dormir na tua casa esta noite?  
-- Ora, ora, bem que eu queria, mas a minha casa é muito pequena, moro com minha mãe, minha avó e meus cinco irmãos, não cabe mais ninguém...
-- Mas, Cheng, é só por uma noite!  Se ele não me achar em casa, acho que o monstro desiste!...  Por favor, me ajuda! 
    -- Ora, ora, é claro que eu vou ajudar, não sou teu amigo?  Olha, tu sabes que eu trabalho com material de costura e eu vou te dar um pacote de agulhas, bem pontudas.  Tu cravas as agulhas na terra, bem no caminho que vai para a porta de tua casa... O monstro é pesado e quando pisar, as agulhas vão entrar pelos pés dele a dentro!...  A dor vai ser tanta que ele vai embora aos prantos!...  Toma, toma...
    Ele colocou o pacotinho nas mãos de Meiling e saiu andando bem depressa pelo caminho, mais assustado ainda que Chang.  Todos tinham medo do papão Tereng Ganu.  
    Meiling ficou de novo parada ali, sem saber o que fazer, balançando a cabeça... lascas de bambu, agulhas... mas de que iam adiantar contra um monstro imenso e pavoroso como era o papão...?







--- Capítulo Seis ---

    Meiling ficou meio desapontada com a maneira como Chang e Cheng tinham agido com ela.   Sacudiu a cabeça, muito desconsolada e começou a caminhar de volta para sua casa, carregando as lascas e as agulhas dentro da trouxinha.  
    De repente, avistou outra figura humana caminhando numa nuvem de poeira.  Logo a seguir, reconheceu seu amigo Ching e correu em sua direção:
    -- Ching! Que bom que te encontrei!         
    Ching era baixo e gordo, mas tinha cara redonda e amarela como os outros, dentes incisivos superiores tapando o lábio inferior, olhos estreitos e puxados, um nariz pequeninho e bochechas rechonchudas.  Como os outros, usava uma camisa por fora das calças azuis, calçava tamancos e tinha um chapéu cônico de palha na cabeça.  Atravessada nos ombros, trazia uma vara, da qual pendiam dois cestos.  E ainda usava uma trança preta, amarrada com uma fitinha azul.
    -- Meiling, que bom te encontrar também! Pensei que tu estivesses na Aldeia do Poço Furado, em casa de teus pais... 
    -- Ching, aconteceu uma coisa horrível!  Eu sentei em uma pedra quente do sol e ela começou a falar e a se mexer e queria o meu bolo e eu não dei e ela disse que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que ia até minha casa hoje de noite me comer!...
    -- Meiling, que troço mais horrível!... E agora, como vai ser?... 
    -- Olha, o Chang me deu umas lascas afiadas para prender no portão da minha casa e fazer com que o papão corte os dedos e o Cheng me deu um pacote de agulhas para enfiar no caminho da minha porta para ele cravar nos pés e me disseram que ele ia gritar de dor e fugir, mas eu acho que não vai adiantar nada!
    -- Meiling, acho que não vai adiantar, não... -- disse Ching, sacudindo a cabeça.     
    -- Ching -- disse Meiling -- por favor, por favor, posso passar a noite na tua casa?  Só por esta noite, para o papão não me encontrar...
    -- Meiling, bem que eu gostaria, mas eu sou solteiro e durmo em um quartinho que fica em cima do galinheiro, o fedor é horrível e tu não ias gostar.   Eu vendo titica de galinha como adubo, tu sabes...
    -- Mas, Ching, o que é que eu vou fazer? O monstro vai me comer essa noite, ora, ele vai me comer, se vai!... 
    -- Ah, mas eu tenho a solução para o teu caso.  O papão tem o nariz muito sensível... Toma este pacotinho de cocô de galinha -- disse ele, estendendo um embrulho de folhas de bambu que tirou de um dos cestos. -- Esfrega bem na porta de entrada de tua casa... O papão vai ficar louco de dor com as mãos e os pés cortados e furados e vai se agarrar na porta; o fedor vai ser tão grande que ele não vai aguentar e vai embora, te juro que ele vai.  Às vezes, nem eu aguento o cheiro...  
    Com essas palavras, ele baixou a cabeça e seguiu troteando pela estrada.   Meiling ficou parada, segurando o embrulhinho, com lagrimas nos olhos.

--- Capítulo Sete ---

    Mais uma vez, Meiling ficou parada na estrada, olhando os três pacotinhos.  Este último, ela não se animou a colocar no mesmo paninho em que guardava o bolo.  Olhou em volta e viu uma planta com folhas bem grandes e enrolou bem o pacotinho com o cocô de galinha dentro, amarrou bem com um cipó e só depois colocou na trouxinha e começou a caminhar de volta para casa, bastante desconsolada. 
    Numa volta do caminho, deparou com um quarto homem, perfeitamente igual aos outros, túnica azul sobre calças azuis e tamancos de sola de madeira, um chapéu de palha em formato de cone na cabeça, uma vara atravessada nos ombros, de que balançavam duas cestinhas.  O homem tinha pele amarela, um topete e uma trança preta, olhos estreitos e puxados para cima nos cantos, um nariz achatado, boca fina, cara redonda e um queixo pequenininho.  Mesmo assim, ela o reconheceu imediatamente. 
     --Chong! Que bom te encontrar!... 
    -- Meiling! Menina bonita, você não ia passar a semana na aldeia do Poço Furado?  Como é que está aqui? 
    -- Chong, meu amor, aconteceu uma coisa horrorosa!  Eu ia levar um bolo que fiz para o papai e a mamãe e me sentei numa pedra quente do sol.   Aí a pedra começou a falar e eu dei um pulo.  Ela queria que eu desse o bolo, mas eu não dei e então a pedra disse que era o papão Tereng Ganu e que ia em minha casa hoje de noite me comer!...
   -- Menina linda, que coisa mais pavorosa!   Vou sentir muita falta de ti!...
    -- Mas Chong, eu falei para o Chang e ele me deu umas navalhas de bambu para cortar as mãos do monstro, o Cheng me deu umas agulhas para furar os pés dele, o Ching me deu titica de galinha para esfregar na porta e assustar o papão com o cheiro, mas acho que não vai adiantar!... Ele vai derrubar a porta com fedor e tudo e vai me pegar e me comer!... 
    -- Menina linda, pois eu acho que vai mesmo, que pena!... Até logo, hein?
-- Espera, Chong, deixa eu passar a noite na tua casa hoje, por favor, por favor, senão o monstro me pega e me come!         
Chong desviou a vista: 
    -- Olha, Meiling, menina linda, eu até que queria, mas eu não tenho casa, moro num barraco junto do tanque dos peixes, é muito apertadinho, não dá para duas pessoas... Sinto muito, viu? 
    -- Mas o que é que eu vou fazer?  Sou muito jovem, não quero morrer!... 
    Chong bateu a língua contra o céu da boca. 
    -- Olha, menina linda, acho que eu sei.  Você sabe que eu crio peixes.   No cesto da direita eu só tenho peixes mortos, mas no da esquerda eu tenho também uma lata com peixes vivos, que está muito calor e eu ia entregar na aldeia do Bode Fedorento, que fica ainda mais longe que a aldeia do Poço Furado...  Eu vou te dar a latinha, tá? Tu enches bem de água aquela panela grande que tu tens na tua casa, soltas os peixes lá dentro e deixas em cima do fogão, sem acender o fogo, é claro.  Eles são peixes comedores de carne.   Quando o papão sujar as mãos e derrubar a porta, ele vai direto ao panelão, enfiar as mãos para se lavar, aí os peixes mordem os dedos dele e a dor vai ser tão grande que ele vai embora... 
    -- Mas, Chong, você acha que vai adiantar? 
    -- Mas é claro, menina linda, vai adiantar, como não?  Toma, toma!... Adeus, agora, que eu estou com muita pressa, tenho de vender meu peixe... 
    Com essas palavras, Chong saiu bem depressa estrada fora e deixou Meiling com a latinha na mão, de boca aberta e olhos bem apertados para não chorar.

--- Capítulo Oito ---

    Pois a pobre da Meiling não sabia mais se ria ou se chorava, cada um dos amigos em que confiava se escapava com uma desculpa esfarrapada e um presentinho que não sabia se ia adiantar ou não.  E agora, os peixes vivos... Tinha de segurar com a outra mão.  Começou a andar de novo, até que viu mais um vulto andando pela estrada... 
    Era um quinto homem, vestido de azul como os outros, com um chapéu de palha em forma de cone, como os outros, usando tamancos, como os outros.   A pele era amarela, o cabelo preto e liso com uma trança comprida no meio das costas, os olhos bem estreitinhos e levantados nos cantos, a boca fina, nariz de bolinha, quase sem queixo e com uma cara redonda... Era Chung!  A esperança voltou.   Assim que o homem chegou perto, ela gritou: 
    -- Chung! Eu precisava mesmo te encontrar!... 
-- Ah, Meiling, que bom ver você... Mas não ia passar a semana fora? 
-- Pois é, eu ia visitar meus pais em Poço Furado, mas no caminho tive um encontro pavoroso...
-- Como assim? 
-- Eu sentei numa pedra e a pedra falou, abriu uma boca e estendeu uns braços.  Eu dei um pulo e a pedra me pediu o bolo que eu levava para meus pais.  Eu disse que não dava e a pedra falou que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que ia na minha casa hoje de noite me comer!...
    -- Mas que coisa mais horrível!   Uma garota como você!  Que desperdício vai ser... 
    -- Eu falei com o Chang e ele me deu umas lascas de bambu afiadas que nem navalha para colocar no portão e cortar os dedos do papão; falei com o Cheng e ele me deu agulhas para cravar no caminho e furar os pés do papão; falei com o Ching e ele me deu cocô de galinha para sujar a porta e fazer o papão ir embora com nojo; falei com o Chong e ele me deu uns peixes para botar no panelão em cima do fogão, aí quando o monstro for lavar as mãos, os peixes mordem ele e ele foge e vai embora... Mas Chung, eu acho que não vai adiantar nada disso, ele já arrombou a porta nessa altura e vai me comer igual!!!   Por favor, Chung, posso passar a noite em tua casa?    
    O chinês pensou um momento e disse: 
    -- Olha, por mim até que dava, mas acontece que eu estou de viagem também, só volto daqui a cinco dias...  Mas escuta, eu vou te dar meia dúzia de ovos... Tu costumas colocar a cinza do fogão embaixo dele, não é?  Pois o monstro vai ficar com raiva pelas mordidas dos peixes e com os dedos sangrando, aí vai querer secar o sangue com cinza...  Ele vai tirar os dedos da panela e enviar no borralho embaixo do fogão... quando ele enfiar os dedos mordidos na cinza, vai quebrar os ovos e as cascas vão entrar por baixo das unhas dele... vai ser uma dor tão horrível que nem Tereng Ganu resiste!... Ele vai fugir correndo, dando berros de dor!... 
    E Chung entregou o pacotinho de ovos para Meiling, deu-lhe dois beijos na bochecha e um na testa e falou:
    -- Olha, boa sorte, querida, eu tenho de ir andando, vou até a aldeia do Porco Manco e fica muito longe daqui, tenho de chegar hoje, senão os ovos estragam... Boa sorte, hein?  Tenho certeza de que você vai se dar bem...  
    E saiu em disparada pela estrada, que nem os outros quatro.  Meiling ficou de boca aberta, com o balde em uma das mãos e segurando o pacotinho dos ovos, sem saber se colocava ou não dentro da trouxa, estava com medo que quebrassem...  Aí começou a sentir um cheiro ruim, diferente do cocô de galinha... Chung tinha dado para ela um pacote de ovos podres!...
    Mas o que ela ia fazer?  Tudo aquilo não ia adiantar nada, ia? 

--- Capítulo Nove ---

    Meiling começou a caminhar de novo para casa, não adiantava tentar se esconder.  Pensou em seguir um atalho para a Aldeia do Poço Furado, evitando a estrada, mas achou que podia por em risco a vida de seus pais.   De repente, além de uma pontezinha, apareceu uma sexta figura, desta vez um homem alto e magro, todo vestido de azul, com um chapéu cônico de palha de arroz na cabeça, tamancos e uma vara atravessada nos ombros, com duas cestinhas penduradas.  Ele tinha pele amarela, cara chata e redonda, nariz pontudo, orelhas de abano e os olhos tão puxados e apertados que pareciam dois risquinhos feitos a caneta.  O cabelo era bem preto e preso numa trança que lhe chegava abaixo da cintura.  Era Chiang!  A esperança surgiu de novo no coração da pobre Meiling.  Saiu correndo em direção a ele e falou: 
    -- Chiang!  Que bom te encontrar!... 
    -- Ora, ora, Meiling!...  Mas tu não estavas viajando? 
    -- Ai, Chiang, eu estava, eu fiz um bolo para levar a meus pais na Aldeia do Poço Furado... 
    -- Ora, ora, e o que aconteceu?  O bolo abatumou? 
    -- Não, não foi!  Eu sentei numa pedra e era o Papão Tereng Ganu e ele disse que vai na minha casa hoje de noite e vai me comer!... 
    -- Ora, ora, isso não vai ser nada bom pra ti.  E o que é que tu vais fazer? Vais deixar ele te comer?
    -- Ah, não, eu não quero!  O Chang me deu umas lascas de madeira afiadas para prender no portão da minha casinha, o bicho corta os dedos e foge, foi o que ele me disse.  O Cheng me deu agulhas para enfiar no caminho, o bicho crava na patas e foge, foi o que ele me disse.  O Ching me deu cocô de galinha para esfregar na porta, para o monstro fugir com o fedor... O Chong me deu peixes vivos, olha aqui!...
    -- Ora, ora, estão vivos mesmo...  Mas tu achas que o papão vai ficar satisfeito só de comer esses peixinhos? 
    -- É claro que não! Mas o Chung me deu uns ovos para enfiar na cinza, embaixo do tanque.  Os peixes mordem os dedos do papão e ele enfia na cinza para estancar o sangue e as cascas quebram e entram embaixo das unhas dele e a dor vai ser tão grande que ele vai embora... pelo menos, foi o que o Chung me disse.  Você acha que vai adiantar?...
    -- Ora, ora, eu acho que o papão não vai fugir só por isso não... Que pena, Meiling, gostei muito de te conhecer... Olha, o melhor é deixar a porta aberta, assim ele não quebra tudo dentro da casa, tem umas coisas minhas lá dentro que eu te dei e vou pegar de volta depois que ele te devorar...
    -- Não, Chiang, não faz isso comigo! Deixa eu passar a noite na tua casa!...
    -- Ora, ora, de que jeito, menina?  Tu sabes que eu tenho um ferro-velho e moro embaixo de umas latas no meio do lixo, é um lugar muito ruim e apertadinho...
    -- Ai, Chiang, por favor, eu não quero ser comida pelo papão!...
    -- Ora, ora, vamos ver o que eu tenho aqui -- disse Chiang, remexendo nos cestinhos.  -- Ah, sim!  Ora, ora, você pega este pedaço de ferro e esta corda e pendura do teto, logo depois da porta do quarto... Tu te escondes atrás da cama, viu? E ficas agarrando a corda...  Assim que o papão entrar, soltas a corda bem depressa, o ferro cai na cabeça dele e mata o monstro bem matado!...
    -- Ai, Chiang, será que vai dar certo? 
    -- Ora, ora, por que não havia de dar?  Muito melhor que lascas, agulhas, titica de galinha, peixinhos ou ovos podres... Toma, olha que é meio pesado...
    -- Obrigada, Chiang, mas eu não sei...
    -- Ora, ora, vai dar tudo certinho, vais ver!  Até logo, te cuida, hein? 
    E o sexto chinês saiu trotando pela estrada, enquanto Meiling fazia força para segurar o pedaço de ferro, que era pesado mesmo...  



--- Capítulo Dez ---

    Meiling ficou parada na estrada, olhando a poeira que era levantada pelo trote de Chiang.  O pedaço de ferro era muito pesado, mas lhe parecia mesmo o presente mais adequado para enfrentar o monstro.  Deu um jeito de segurar junto com todas as demais coisas que já levava e seguiu viagem para casa.  
    Daí a pouco, viu sair da sombra de um bosque que ladeava o caminho uma outra figura vestida de azul, salvo pelo chapéu de palha cônico e amarelo e pelos tamancos pretos.  Como os demais, tinha cara redonda, olhinhos estreitos e puxados, nariz de batatinha e um queixo quase inexistente, escondido na pele amarela, cabelos bem pretos e lisos, presos em uma trança que balançava abaixo da cintura.  Este também trazia uma vara de bambu atravessada nos ombros, com um cesto equilibrado em cada ponta.   Era Chieng!  Meiling correu em sua direção o mais depressa que pode: 
    -- Chieng!  Que bom te encontrar! 
    -- Mas quem é você? 
    -- Ora, Chieng, sou eu, Meiling...
    -- Ora, como eu sou distraído... Meiling, minha amiguinha, é claro... Mas você não tinha se mudado daqui?  
    -- Não, Chieng, eu só ia visitar meus pais... depois de uma semana, eu pretendia voltar... 
    -- Ah, é claro!   Como eu sou distraído... Seus pais, lá na Aldeia do Brejo Vazio, não é?  Claro que eu sabia... 
    -- Não, Chieng, eles moram na Aldeia do Poço Furado...  
    -- Ah, pois é!   Como eu sou distraído... Eu é que vou para Brejo Vazio caçar coelhos e raposas... Até logo, hein? 
    -- Não, Chieng, espere, eu preciso falar com você!   Os coelhos e raposas podem esperar... 
    -- Coelhos e raposas?  Mas do que é que você está falando?  
    -- Ora, Chieng, você não disse que ia caçar coelhos e raposas?  
    -- Ora, mas é claro, como eu sou distraído... Vou caçar mesmo, olhe a minha lança, meu arco, minhas flechas...
    -- Chieng, aconteceu uma coisa horrorosa comigo hoje!  
    -- Ah, foi? Comigo também, não conseguia encontrar a aljava com as minhas flechas, sou tão distraído... 
    -- Chieng, foi coisa muito pior.  Eu ia levar um bolo para meus pais e encontrei com o monstro Tereng Ganu e ele diz que vai na minha casa hoje de noite me comer!
    -- Ai, que horror, ainda bem que não é comigo... Eu achei as minhas flechas, olha só, estão todas aqui... 
   -- Chieng, eu falei com o Chang e ele me deu lascas de bambu para colocar no portão e cortar as mãos do papão; o Cheng me deu agulhas para eu enfiar na terra do caminho e furarem os pés do papão; o Ching me deu cocô de galinha para esfregar na porta da minha casinha; o Chong me deu uns peixes vivos para botar no panelão que eu sempre tenho cheio de água em cima do fogão; o Chung me deu ovos podres para colocar na cinza embaixo do tanque; e o Chiang me deu um pedaço de ferro para derrubar na cabeça do Tereng Ganu, mais uma corda para eu ficar agarrando o ferro por trás da minha cama, mas eu acho que não vai adiantar nada!... 
    -- O que é que não vai adiantar nada...?    
    -- Chieng, por favor!  Nada vai adiantar para espantar o monstro!... 
    -- Mas que monstro? 
    -- Chieng, o papão, o Tereng Ganu, que quer me comer hoje de noite!... 
    -- Ah, é mesmo!... Como eu sou distraído...
    -- Chieng, por favor, por favor, deixa eu dormir na tua casa esta noite!... 
    -- Chi, mas eu tenho um curtume em casa, para preparar as peles dos bichos que eu caço, fede que é um horror!... Mas se tu quiseres mesmo assim... 
    -- Quero, quero!   Me leva lá, não me importo com o fedor!... -- disse Meiling, aliviada. 
    -- Ah, mas não vai dar... Como eu sou distraído... Me esqueci que vou caçar e deixei a casa trancada... Não posso voltar lá para abrir...  
    -- Mas então me empresta a chave!...  
    -- A chave?  Que chave? 
    -- A chave da tua casa, Chieng!  Me empresta, por favor!
    Chieng soltou os cestos no chão e começou a remexer na roupa, depois nos cestos, sem achar nada.  Finalmente, falou:    
    -- Ai, Meiling!  Esqueci onde pus a chave!  Como eu sou distraído!...
    -- E agora? -- perguntou Meiling, novamente em desespero.  
    -- Agora não dá mais, né?  Mas eu sei o que vou fazer.   Vou te dar uma das minhas facas de esfolar coelhos, está bem afiada. Fica atrás da tua cama, com a corda numa das mãos e a faca na outra.  Quando o monstro chegar bem embaixo do pedaço de ferro, corta a corda com um talho só, o ferro cai na cabeça dele e o bicho morre, garantido!  Toma, toma!  Agora, eu tenho que ir, estou atrasado para a caçada... 
    E Chieng pegou os cestos e o bambu de volta e saiu trotando pela estrada, deixando Meiling sozinha mais uma vez.

--- Capítulo Onze ---

    Meiling esperou um pouco, parada na estrada, pensando, depois se agachou no chão, por causa do peso das últimas coisas que ganhara de seus sete amigos. 
    Olhou com todo o cuidado para ver se não havia alguma pedra por perto... E se fosse outro bicho?  Daí a pouco pegou de novo o ferro e a faca, mais as outras coisas que estavam na trouxa do paninho azul e caminhou devagar até chegar em casa. Colocou tudo em cima da mesa da cozinha e voltou devagar até o portão da frente.     
    Pegou as lascas de bambu e prendeu na tábua de cima do portão, com todo o cuidado para não se cortar também. 
    Pegou as agulhas e enfiou uma a uma pelo caminho que levava até a porta da frente. 
    Colocou os peixes vivos dentro do panelão, depois de encher bem e colocar em cima do fogão. 
    Colocou os ovos podres na cinza que ela juntava embaixo do fogão e que usava como adubo nos canteiros do jardim e da horta.  
    Aí foi até a porta, que tinha deixado para o fim, por causa da sujeira e esfregou bem o cocô de galinha, ficou um cheiro pavoroso!  
    Depois, trancou a porta por dentro, a essa altura já eram umas seis da tarde, o sol já estava baixando e o coraçãozinho dela começava a bater mais forte.  
    Foi até o quarto e prendeu o pedaço de ferro em uma viga do teto, passando uma corda por cima e levando a ponta até a cabeceira da cama, onde prendeu com um nó bem firme.
    Depois, soltou o nó e se agachou atrás da cama, segurando a corda na mão esquerda, com a faca na direita.  
    Ficou experimentando a altura em que devia ficar o ferro.   Muito baixo, o papão dava direto com ele na cabeça ou na cara e tirava para um lado.   Muito alto, era capaz de errar a cabeça dele.  
    No fim, quando se decidiu pela altura, já estava escuro.  Amarrou a corda de novo e ficou agachadinha atrás da cama, segurando a faca bem firme, esperando, esperando, esperando...




-- Capítulo Doze --

    O tempo foi passando e Meiling acabou dormindo agachada atrás da cama.  Acordou de repente com um som de passos fortes e lentos na estrada... Pum! Pum! Pum! Pum! Era o Papão!   Louca de medo, ela desamarrou a corda da cabeceira da cama e ficou segurando firme com a mão esquerda e pegou com a direita a faca que tinha escorregado para o chão.  Os passos foram chegando e pararam em frente de sua casinha.  Então ela escutou uma voz muito mais forte do que de manhã, mas era a voz do Papão, sem a menor dúvida.
    -- Cheguei, menina!  Abre a porta, senão eu vou derrubar!  Eu sei que você está aí e não adianta se esconder!  Venha cá para fora, que eu te como depressa e vai ser mais fácil para nós dois!... Senão... 
    Meiling não tugiu nem mugiu, o que quer dizer que ela não deu um pio, mas ficou mudinha e encolhida.  E o monstro:
    -- Você vai abrir ou não vai?  Pense nas outras pessoas, seus amigos Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng... Se eu quebrar a porta, eles vão ter de consertar, para que dar esse trabalho a seus amigos?   Vamos lá, saia de uma vez e acabamos logo com essa história... Não me faça perder tempo, eu vou te devorar de qualquer jeito...   
    O coração de Meiling  batia feito um tambor, mas ela mal suspirava.   Quem soltou um longo suspiro foi o monstro:
    -- Está bem, quer complicar as coisas, azar seu!  Eu sou o Grande Monstro Tereng Ganu e vou entrar de qualquer jeito!  
    Com essas palavras, o monstro pôs a mão no portão e na mesma hora deu um grito de dor:
-- Mas o que é isto?  Tu me cortaste a mão, desgraçada!   Tu colocaste lascas de bambu afiadas no portão para me cortar! Bandida!  Mas não vai te adiantar nada, ouviste?  Eu vou arrancar fora esse portão com lascas de bambu e tudo!  
Seguiu-se o barulho de alguma coisa se quebrando, entremeada por outros gritos de dor, porque o Papão se cortou várias outras vezes, mas finalmente Meiling ouviu o barulho do portão sendo jogado longe. 
-- Agora, sim! -- disse o monstro.  -- Eu vou quebrar a porcaria dessa porta e entrar, tu não tens como escapar, eu sei que não tem porta nos fundos e as janelas têm grades! 
Soaram de novo os passos pesados e lentos e, de repente, um berro ensurdecedor:
    -- Ai, mas o que é isso?  Assassina! Terrorista!  Tu puseste agulhas no caminho para cravar em meus pés!  Ai, ai, ai!... Quantas são?  
     Houve uma série de barulhos e Meiling entendeu que o Papão tinha perdido o equilíbrio e dera mais uns passos, cravando mais agulhas na planta dos pés.  Aí, ele parou e Meiling ouviu o ruído da respiração pesada do bicho...
    -- Sua miserável!  Sua bandida!   Ai, os pobrezinhos dos meus pés estão sangrando!... Nem sei quantas agulhas são!   Mas já sei!... Vou sentar na beira do caminho de entrada, para tirar as agulhas dos pés!...   
    Meiling ouviu um choque pesado quando Tereng Ganu se atirou no chão, na beira do caminho, esmagando as flores de um canteirinho de peônias e depois os resmungos e bufos enquanto ele arrancava as agulhas uma por uma.   Mas ele ia ter de caminhar de novo e se cravaria as outras!  Com a dor, ele tinha de ir embora!   Mas que nada!... 
    -- Ah, tu pensas que eu sou burro, não é?  Burra és tu, que só botaste agulhas no caminho, eu vou sair pelo lado e pisar direto no degrau de pedra em frente da tua porta!... Mas por que eu não pensei nisso antes?  Até que eu sou burro mesmo!... Em vez de me cortar todo arrancando o portão, devia era ter derrubado a cerca e passado pelo jardim, aí eu nem pisava na porcaria dessas agulhas, ia direto ao degrau! 
    O coraçãozinho de Meiling quase parou, enquanto ela ouvia os passos do monstro se arrastando pelos canteiros e pousando pesadamente no degrau de entrada. 
    -- Pronto!  Cheguei!   Eu não disse?  Abre de uma vez, senão eu vou te judiar bastante antes de te comer, é tua última chance, guria sem respeito!...
    Mas Meiling não respondeu nada.  Seu coração parecia estar trancado na garganta e não conseguiria falar, nem  mesmo que quisesse!...

--- Capítulo Treze ---

    O papão se atirou contra a porta e começou a empurrar, mas seus dedos escorregaram e ele recuou, chegando a descer do caminho e pisotear em outra das agulhas que estavam enterradas; desequilibrou-se e caiu de costas, mas desta vez as agulhas se quebraram, que o couro do bicho era muito grosso...
    -- Ah, mas o que é que tu me aprontaste desta vez?  Que fedor é esse? Mas isso só pode ser... cocô de galinha!  Sujei as mãos e... ah, não!  Sujei o peito inteiro também! Tu vais me pagar!...
    O monstro se levantou com dificuldade, arrancou as agulhas do pé, subiu de volta no degrau e derrubou a porta. 
    -- Ah, sem-vergonha, cadela, pedaço de égua!... Tu vais me pagar por isso, vou te arrancar as pernas e os braços viva e comer na tua frente!  Ai, estou imundo!... Ainda bem que tem essa panela cheia de água em cima do fogão!... 
    O papão atravessou a porta, com um pouco de medo de caminhar, pensando que  Meiling podia ter prendido mais agulhas entre as tábuas do assoalho.  Depois que viu que não tinha perigo, foi até o fogão e começou a lavar as mãos com a água da panela, antes de lavar o peito. 
    -- Ai! Ui! Ai!  Mas o que é isto? São peixes!  Estão me mordendo os dedos, ai que dor!... Bandida! Sonsa! Salafrária! Tu botaste os peixes aí para me morderem, não é?  Bobalhona, pensa que eu vou embora por causa disso?  Que nada! Eu vou é te judiar bastante, antes de te matar! Ai, como estou sangrando!  Ah, sim, tem cinza embaixo do fogão!  Vou enfiar os dedos para estancar o sangue!... 
    Meiling escutou o barulho, enquanto Tereng Ganu se ajoelhava e logo depois, mais gritos: 
    -- Ai, minhas unhas!  Mas o que é isso?  Essa sorrateira enfiou ovos no meio das cinzas! E podres, ainda por cima!  Ai, as cascas entraram por baixo de minhas unhas, que dor, que dor!   Isso não vai ficar assim!...
    Ele arrancou as cascas uma por uma e andou até a porta do quarto, mais furioso do que nunca. 
    -- Agora tu vais ver, sua malvada! 
    E entrou, pisando duro, rachando as tábuas do assoalho. 
    -- Onde é que você está?  Não adianta se esconder, cretina!... Ah, só pode estar no quarto e atrás da cama!... Que guria mais estúpida, eu jogo a cama para um lado e pego ela!...
    Mas estava escuro e o monstro parou alguns segundos para acostumar os olhos com o negrume, bem embaixo de onde estava pendurado o pedaço de ferro de Chiang... Meiling respirou fundo e cortou a corda.  O peso do ferro puxou a corda para baixo e o ferro caiu bem no meio da cabeça do monstro e se cravou bem fundo. Tereng Ganu, que já havia gritado tanto, caiu sem dar um ai.  





--- Capítulo Quatorze ---

    Meiling não perdeu tempo: pulou em cima dele e lhe cortou a garganta com a faca,
de orelha a orelha.   Esguichou um sangue verde por todo o quarto, mas Meiling nem se importou: tinha conseguido matar o Papão!   Sentou no chão e ficou chorando de alívio, quietinha, quietinha.     
    Daí a pouco, se levantou, passou por cima do monstro e foi até o panelão, tirou os peixes para fora e se lavou bem.  Depois se enrolou num pano velho e esfolou o monstro, depois cortou a carne em pedaços e depois separou os ossos.  A essa altura, já era de manhã. Colocou tudo em um carrinho de mão e foi até a feira da aldeia.  Vendeu a carne barato, os ossos por um preço melhor, diziam que osso de papão curava reumatismo e ferida braba...
Mas o que rendeu mesmo foi a pele grossa do papão, que tinha saído inteirinha e vários queriam comprar. Diziam que dava muita sorte ter um tapete de pele de papão.  Meiling vendeu para o mandarim da província pelo melhor preço que lhe ofereceram, cinquenta taéis de prata, a moeda que usavam aquele tempo na China e ficou rica!    
    Comprou roupas novas, uma charrete com dois cavalos, uma porção de presentes e ainda ficou com 45 taéis, o que era uma fortuna naquela região.  Subiu na boléia da charrete e foi dirigindo os cavalos até a Aldeia do Poço Furado, onde ficava a casa de seus pais.   Todos ficaram muito contentes com a volta dela, fizeram uma festa e ela resolveu não voltar mais para a casa em que tinha morado.  Também, estava com a porta rebentada, o portão arrancado, as tábuas do assoalho afundadas e ainda toda suja e nojenta de cocô de galinha e do sangue verde do monstro!...
    Começou a aparecer uma porção de pretendentes, porque ela tinha aquele enorme dote, deu cinco taéis para os pais e os irmãos e ficou com quarenta.  Não sabia quem escolher, porque todos queriam era o dinheiro dela e não ela.  Nem queria mais saber dos amigos medrosos que tinham fugido em vez de ajudar.
Até que um dia apareceu o Chieng, que disse a ela que sem a faca que ele tinha lhe dado, ela não teria matado o papão e que era ele que lhe dera o melhor presente, ainda mais que era uma coisa que lhe tinha feito falta e não os presentes mambembes dos outros que só queriam se livrar dela.
    Chieng falou tanto e falou tão bem, que Meiling aceitou se casar com ele.  Tiveram muitos filhos e viveram juntos muitos anos. Entrou pela porta e saiu pela janela, quem quiser contar outra, que tire da costela. 

--- FIM ---


sábado, 16 de março de 2013



DUENDÁRIO & MAIS
WILLIAM LAGOS

DUENDÁRIO I  (18 FEV 13)

É crença antiga que, ao redor da gente,
existem seres só em parte materiais,
pequenos entes, talvez só elementais,
sejam fadas, gnomos ou quiçá luminescente

ilusão, que só se avista num repente,
pelo canto dos olhos, ou nesses especiais
momentos mais sensíveis que os demais:
criaturas boas ou más ou indiferentes...

Com frequência, Capetinhas são chamados,
os transparentes duendes brincalhões,
que se divertem, por pura travessura,

porém sem serem, de fato, endemoniados,
por malícia não possuir nos corações:
são mais crianças, com um laivo de doçura.


DUENDÁRIO II

Certamente que isto já te aconteceu:
de algo procurares várias horas
e, de repente, cansada já e a desoras,
vires diante de ti o que se perdeu...

Ou então, outro brinquedo sucedeu,
em tuas tarefas te levando a mil demoras,
tudo difícil, “tropicando nas esporas”,
que por tempo bem maior assim se deu.

Mas, de fato, nenhum deles te magoa
e caso sua presença reconheças,
até te ajudam ou suspendem os gracejos,

que os folgãozinhos são todos gente boa;
só te chamam a atenção, que não esqueças
e então te sopram os fantasmas de seus beijos...


DUENDÁRIO III

Nunca sentiste, num adejar bem leve,
um beijo na tua testa ou na tua face?
Sem que vento qualquer se divisasse,
nem um inseto de incômodo mais breve?

Essas leves comichões, que alguém se atreve
a interpretar qual se visita passe
ou que dinheiro em seguida se encontrasse,
pingo sem água ou floco sem ter neve...?

Melhor então que lhes dês a tua atenção,
porque podem se zangar, se ignorados
e então causarem dores, de repente,

um fincão no teu pé ou numa articulação
de qualquer dedo, porém sem machucados...
Quem nunca teve a sensação, seja descrente!

DUENDÁRIO IV

Outros existem com tenção bem diferente,
que podem ser por magia dominados,
se a carapuça ou um anel forem roubados,
quando encontrados mais distraidamente...

Entre nós o Saci é o mais potente,
por muita gente foram vistos e encontrados
esses negrinhos pernetas, malcriados:
sempre que podem, fazem mal à gente...

Mas quando a prenda se guarda com cuidado
eles se tornam excelentes ajudantes,
porque não são, bem de fato, materiais

e desse jeito, a seu modo endiabrado,
prestam serviços bastante interessantes,
sem que nos possam prejudicar jamais...

DUENDÁRIO V

Outros ainda são servos de uma terra
e ajudam as sementes a crescer,
os rebanhos também sabem entreter
a lã de ovelhas desenrolam quando emperra...

Aos invasores sabem fazer guerra:
levam buracos a seus pés aparecer,
embotam facas, toda mira a se perder
e ainda abrem minas nas lapas de uma serra...

Entre nós, o mais amado é o Negrinho
do Pastoreio, que por gente se desvela,
depois que alguém se dispõe a acender vela,

sempre montado no seu cavalinho,
nos traz de volta o desgarrado da tropilha
e não permite ao peão perder sua trilha...

DUENDÁRIO VI

Já existem outros de índole maleva,
como esse Boitatá, que trouxeram lá do norte,
para ao tropeiro afrontar com a pior sorte,
luz esverdeada e maligna na treva...

Ou a Salamanca do Jarau, que leva
muita gente a mau destino e até à morte,
que na fortuna abre, às vezes, fundo corte
e na carne do infeliz então se ceva...

Há muitos outros duendes por aí,
alguns angélicos, outros meio diabretes,
melhor é se cuidar, sem fazer pouco...

Que “não há bruxas, mas existem” por aqui:
com suas poções entopem gasganetes
e quem delas duvidar é um pobre louco!

VÍTIMAS COMPLACENTES I  (19 fev 13)

Eu andava por aí, perdido, à toa,
Inocente, sem destino ou ilusão,
Sinal da cruz marcando pela mão,
Porém descrente da luz que me perdoa.

Pois cada falta era leve, e assim, destoa
Dos mandamentos para que existe punição;
Se mal pequei, para que serve a paixão
De um Redentor que sobre as nuvens voa?

Então eu te encontrei; e a culpa amei,
Desordenado em arrebatamento,
Nesse amor atribulado e tão profundo

Que corpo e alma assim eu te entreguei,
Sem pensar em pecado ou impedimento,
Pois foi em ti que eu encontrei meu mundo!


VÍTIMAS COMPLACENTES II

Destarte, fui empós culpa maior,
Pelo pecado encontrando a redenção,
Elevando para ti meu coração,
No meu calvário, deliberado ardor!

Foi no teu ventre que encarnei a dor
Da alma errante que não tinha imputação.
Como chegar ao Paraíso, na inação?
Indiferentes pertencem ao Malfeitor...

Assim eu te busquei, exanguinei-me,
Crucificado nos teus braços e tuas pernas,
Nessa luz que só existe por contraste,

Com a escuridão robusta a examinar-me,
Que a salvação achada em ti me baste,
Consolação por quaisquer penas eternas!


VÍTIMAS COMPLACENTES III

Que seja a vida o dom do amor carnal,
Que manifeste vigor robusto em natureza;
Na fealdade se encontra mais beleza
Que em indiferença eivada de irreal;

Que na tua carne há salmo triunfal,
No qual eu me perdi, na minha vileza,
Para que houvesse da redenção certeza,
Nessa homilia de sedução total,

O tempo inteiro sendo vitimado,
Mas sabendo que jamais seria o cordeiro
Que granjearia para ti consolação,

Porém sendo inteiramente consolado,
Ao me perder em teu corpo por inteiro,
Na parusia da final revelação!...


VÍTIMAS COMPLACENTES IV

Ah, como eu há tantos por aí!...
Eu, pelo menos, sabia o que fazia
E o fazia na certeza que sentia
O quanto fora predestinado aqui.

E nessa corrupção que mais senti,
No meu buscar em ti da sintonia,
No fulgor negro que só em ti luzia,
A pena máxima a mim mesmo infligi.

Enquanto algures eu vejo descuidados
Fazendo o mesmo e sem saber que o fazem,
Contaminados na faísca da miragem,

Sem sequer se redimirem nos pecados,
Que tais ações também anjos perfazem,
Buscando abismos iluminar com sua coragem.


AYESHTENI I  (20 FEV 13)

Passei a noite procurando amoras
em árvores vazias e sem sentido.
Por todo o tempo que já hei vivido,
ainda busco os frutos dos outroras

que não coalesceram, rijas horas,
malbaratando, em ilusão perdido,
que guarda firmemente no esquecido
essa minha mente eivada de demoras.

Pois busco amoras em galhos caducados,
sem uma folha sequer.  Jabuticabas
seria mais fácil ou então cacau achar,

mas não existem cajueiros implantados
no meu pomar, que apenas menoscabas,
que me atrevi nas nuvens a plantar.

AYESHTENI II

Passei a noite a recolher os meus outroras,
frutos de antanho, que já achei meio bichados,
só por larvas em vida conservados,
mais do que os frescos, frutos das devoras;

meus passados recamados das desoras,
meus porvires nem ao menos trescalados,
meus presentes interiores tresloucados,
no equilíbrio sutil de vãs melhoras

com a pioras que dançam nas balanças,
sem garantias de coletar, sequer,
enquanto a noite ri e a lua alcança

com o sol a sua brevíssima aliança,
entrelaçado nestes meu mister,
nas mesmas flores que colhia Baudelaire!

AYESHTENI III

De onde o termo?  Talvez Renascimento;
Natasha Atlas a palavra difundiu,
mas para mim nunca de fato a definiu
e permaneço escravo desse intento...

Passei a noite em busca do portento,
amoras mortas, amor que já sumiu,
outroras horas que o tempo já sentiu,
auroras sem amora ou sentimento.

Emboras vivas de uma noite morta,
em vão buscando qualquer significado
numa canção que jamais eu escutei,

de uma cantora que não me bate à porta,
auroras mortas sem haver pecado,
num por-do-sol de que não participei.

AYESHTENI IV

E tu, como passaste a noite morta?
Dormiste bem ou dormiste como eu?
Quem foi que nessa noite te acolheu
entre seus braços, toda líquida em retorta?

Sonhaste sonhos de alfanje que te corta
ou foi tua noite negra a do sandeu,
noite sem sonhos de quem em nada creu?
Ou te furtaste ao sonho em que cavorta,

da crua realidade, a solidão
que morde o calcanhar e dói na nuca?
Bem gostaria, talvez, que minhas canções

pudessem reviver-te, ao coração
as ilusões com que a gente nos educa,
nesse berço sutil das falsidões...

BORRASCA I  (21 FEV 13)

A tempestade movimenta os corações,
muito mais forte que no mundo externo:
é bem aqui que encontramos o inferno,
muito mais próximo que exteriores mutações.

Existem neles cem manadas, profusões
que se atropelam nesse palco interno,
bem mais constante o amargo do que o terno,
nesse atropelo de más recordações.

Os bons momentos que se busca recordar,
os bons instantes que se vem a vivenciar,
são esmagados pelo estouro da boiada;

e essas horas de maior humilhação
jorram à tona, em fiel recordação,
nossa alegria pulverizando em nada.

BORRASCA II

Claro que, no instante seguinte, reagimos,
sem nos deixar levar por depressão,
mas os demônios do imo coração
de novo erguem as cabeças, se dormimos;

lá estão eles, nos sonhos que nutrimos,
a transformar em pesadelo a exaltação;
brotam depressa, a cada hesitação,
depressa em depressão, se o permitirmos.

É tão estranho que as memórias excelentes,
os triunfos e os clangores de alegria
não reproduzam, contra a melancolia,

tropilha igual de procissões ingentes,
como se o mal vicejasse em nosso peito,
multiplicando cada chispa do despeito...

BORRASCA III

Como é difícil dominar as propensões
para a mágoa, a angústia e a impotência,
tal qual se a alma apreciasse essa tendência,
para autoflagelar-se, em vagalhões...

Pois tempestades exteriores e vulcões
são temporários, em sua prepotência;
os terremotos, a rasgar em decadência,
nas permanecem no correr das gerações.

Claro que existem outras condições,
como o gelo ou o calor das estações,
que seus ritmos possuem circanuais;

e que há desertos de banquisas ou areais,
em que as tribulações duram demais,
mas só afligem as locais populações.

BORRASCA IV

Contudo, no que tange à espécie humana,
é bem mais fácil enfrentar a adversidade
do que lembrá-la, com maior intensidade,
multiplicada em negror de fria chama.

E é nisso que a alma nos estagna,
com seus gêiseres de feroz voracidade,
das más lembranças, em pugnacidade,
que gélidas esguicham como magma. 

Então é hora de caçar, uma por uma,
cada lembrança de nossas horas tristes
e mantê-las bem seguras e enjauladas.

Caleidoscópicos tornados, negra espuma,
lá do fundo do abismo, a que resistes
com mil cristais de flamas iridiadas.


VOLGA I (22 FEV 13)

Antigamente, quando em busca da jusante,
em certos rios de mais forte correnteza
os remos não bastavam, com certeza,
para os navios subirem, a seu talante.

Bem ao contrário que descer rumo à vazante,
quando ao curso favorecia a natureza,
a gravidade sempre tende a mais baixeza,
que toda água para o mar tende constante.

Chama-se “sirga” às cordas e correias,
nesse sistema que aos barcos vai puxando,
em direção às nascentes, no esforçar

de pobres homens, a estourar suas veias,
e assim à sirga se vai a vida levando,
sem ter desejo de se descer ao mar.

VOLGA II

É do Volga esse exemplo mais comum:
ouve-se “Ei Ukhnia” e se pensa nos barqueiros,
com remos e pontões de marinheiros,
sem excessivo esforço de nenhum...

Porém de fato, puxava, cada um,
com correias na testa, os companheiros
que no barco continuavam mais fagueiros,
um tal esforço sempre matando algum.

Logo na Rússia, que só aboliu a escravatura
dos próprios russos, após a Revolução
dos Socialistas, que ocorreu antes de Outubro.

Trinta milhões a sofrer fome e tortura,
obedecendo a seu dono e patrão,
até verterem todo o sangue rubro.

VOLGA III

Como os rios se que vão perder no Oceano,
a nossa vida corre sempre para a morte,
embora o nosso esforço a dura sorte
de tal destino contrarie, ano após ano.

Em sua luta pela vida, cada humano
se alimenta a buscar tornar-se forte,
combatendo a entropia, com seu corte,
a distropia puxa à sirga o desengano…

E ao invés de nos deixarmos transportar,
segundo a lei da própria gravidade,
insistimos na busca da jusante,

embora bem saibamos, nesse adiar,
que é impossível recobrar a mocidade,
que a correnteza nos impele na vazante.

VOLGA IV

Sempre é possível em qualquer porto ancorar
e a vida ali manter por alguns anos;
há ocasiões em que até se enfunam panos
na direção contrária ao deslizar...

Mas quando a carga já se está a acumular,
não há mais sirga para quaisquer humanos,
contra a força do rio ou contra os danos
de uma estadia demorada em tal lugar.

Ficam os homens da sirga a contemplar,
enquanto o barco desce, lentamente,
e cedo ou tarde, chega até a foz,

para no mar, enfim, se desmanchar,
empós os ossos que já deixou outra gente
e na frente dos que vêm atrás de nós...

CADEIAS I (23 FEV 13)

És meu destino e te entreguei minha vida,
embora, às vezes, ao cabresto me revolte;
não que de fato, alguma vez, me solte,
mas simplesmente porque a rédea me invalida

e preferisse, quando em vez, uma corrida,
sem esse freio de permanente escolte;
mas sempre torno, na espera que me volte
o mesmo amor que então me leva de vencida.

Porque, de fato, tu controlas meu destino
e cedo ou tarde, me curvo a teu desejo,
sem recompensa e sem te pedir nada,

a contentar-me com teu carinho fino,
pois me controlas ao chicote de teu beijo,
movendo os dedos num toque de alvorada!

CADEIAS II

Fico às vezes dando voltas ao potreiro,
nesses momentos livres dos arreios,
maquinando, talvez, achar os meios
de pular essas cercas, parelheiro...

Mas olho esses moirões, junto ao terreiro
e não consigo pular, em meus receios;
mesmo na ânsia por alheios seios,
não sei o que me aguarda em lar esteiro.

Preciso mesmo é de rédeas e de esporas,
na execução de meu adestramento:
só sob a sela atrevo-me a saltar;

e em liberdade, apenas troto longas horas,
sem decidir qual o melhor momento
para essa cerca transparente arrebentar.

CADEIAS III

Se encetasse boa corrida, conseguia,
mas o que encontro fora de minha baia?
Um outro amor na mulher de verde saia
Que a liberdade tão somente acenaria...?

Toda mulher uma outra espora afligiria:
só me acharia correndo em nova raia;
outra arapuca pressinto, em que não caia,
não é mais doce o capim que comeria...

Cá no meu brete, já sei qual a magia
que me controla de guasca o coração
e me conserta a bombacha e o tirador...

Por que correr empós alheia bruxaria,
que só me irá domar a sofreguidão,
provavelmente sem me dar igual amor?

FACETAS CINCO – A ZUMBI  I  (12 JUL 2006)

Cruel qual mulher morta que pensa inda estar viva
e vive no passado... e macula o seu presente
com desgostos de outrora, punindo tanta gente
pelo que outros fizeram, mantendo rediviva

a mágoa dos amores desfeitos, a impaciente
espera sem futuro, a vastidão lasciva
do amor insatisfeito, a gestação esquiva,
o aborto, a prevenção, a cópula infrequente...

Pobre mulher que sofre, até por opção,
que feliz não quer ser, que até sofrer deseja
e quer tornar os outros a seu redor, também,

criaturas sofridas; e quando a chance vem
de finalmente achar o novo amor que enseja,
prefere a angústia antiga à nova exultação!...

A ZUMBI II  (24 fev 13)

Conheço dessas tantas, andando por aí:
pela mágoa permanente têm amor,
pela desdita demonstram mais calor,
não querem ver ninguém feliz aqui...

Que namoravam a tristeza, percebi,
na merencória paixão de seu palor,
nesse cultivo da ausência de vigor,
mas sem querer, afinal, partir daqui...

São faladeiras e cultivam o pessimismo,
só vendo em qualquer outra o lado mau,
a desejar com insistência o seu fracasso...

Ou, ao contrário, se entregam ao mutismo,
a um novo bem jamais transpondo o vau,
na falsidade rígida do abraço...

A ZUMBI III

Pois o que amam é mesmo se queixar:
que desaponto quando não têm motivo!
Então cultivam desaponto redivivo,
qual um bebê natimorto a acalentar...

Se têm marido, só o sabem atormentar,
de suas mil queixas a passá-lo pelo crivo,
a lastimar-se pelo fato de estar vivo
e mesmo ansiando pelo seu enviuvar.

Que muitas vezes, chegam a apressar,
azucrinando o infeliz até a morte,
ou de outro modo lhe apressando o passamento,

na infelicidade podendo triunfar,
para poder queixar-se da má sorte,
em sua ternura pelo envenenamento!...

A ZUMBI IV

São essas tais que massacram os maridos,
sem jamais refrear língua ferina,
mesmo buscando despertar fúria assassina
nos companheiros assim desiludidos...

E quando enfrentam alguns mais atrevidos,
acabam apanhando, em justa sina,
mas esquecendo a sua malícia fina
para queixar-se dos maus tratos recebidos...

E vão felizes demandar a Delegacia
da Mulher, como hoje virou moda,
virando vítimas no sistema judiciário,

que não contempla a provocação que havia,
mas os maridos sempre culpa nessa roda,
com punições de vezo atrabiliário!...

A ZUMBI V

E se têm filhas, pobres criancinhas!
Sujeitas dia e noite à ladainha
das mil tristezas que o passado lhes continha,
até criá-las como novas zumbizinhas...

Prostitutas a tornar-se ou drogadinhas,
descrentes desde a infância, nessa linha
da maldade, que a elas sempre se avizinha,
não dos estranhos, porém de suas mãezinhas!

Ou então se transformam em carolas,
fazendo diariamente confissões,
sem mencionar seus pecados verdadeiros,

e o pobre padre nem sequer sabe onde pô-las,
quais penitências lhes dar nas ocasiões
em que se queixam dos pecados de terceiros!

A ZUMBI  VI

Sem dúvida, as encontraste tu também;
em ti buscaram despertar a simpatia,
deixando esteira de total melancolia,
em seu esforço de apagar o alheio bem.

São as damas queixosas que se veem,
tristeza a derramar em quem as via,
de fato espargem sobre ti antipatia,
abelhas mortas em eterno vaivém!...

Sempre inventando um novo sofrimento,
que, sem dúvida, lhes acaba por surgir,
mesmo sem ter qualquer causa inicial,

porém conseguem te emprenhar o pensamento,
missionárias sua angústia a distribuir,
almas penadas em que a dor é um bem carnal.

COR DO MAR I (25 FEV 13) 

O mar mui raramente é verde-mar;
muita vez é azul ou acinzentado
ou simplesmente de um pálido dourado,
não mais que um refletor da luz solar.

Por tal reflexo faz-se, às vezes, encarnado
ou se reveste de um claro alaranjar;
chamam de negro seu azul a aprofundar
ou de vermelho qualquer tom mais arroxeado.

Fica aos poucos pela areia acastanhado
ou esbranquiçado pela espuma que flutua,
verde-rosado ao esfumar do entardecer;

dizem ser verde o mar pouco povoado
e azul o mar em que ampla vida estua,
ou violeta a refletir meu padecer...


COR DO MAR II

Na verdade, toda água é incolor,
insípida e inodora em descrição;
tem certa cor na palma de tua mão,
em palma alheia uma diversa cor.

Cada nuance exprime um coração,
em cada tom traz a vida em seu vigor,
vermelha a forte expressão de seu calor
pelos estuários que em cada corpo estão.

Sob o sol pleno, se faz azul-berilo,
lápis-lazúli, cobalto ou turmalina,
ao sol poente, em ouro se desdobra,

de noite, traz a prata do sigilo,
em suavidade sutil de naftalina
e até marfim que em pórfiro sossobra.


COR DO MAR III

Mar de mármore, com laivos de amianto,
o mar purpúreo que descreve Homero,
o mar de cálcio de um destino fero,
o mar cremoso de um perpétuo pranto.

A Terra sua em eternal descanto,
sob a chuva especular que tanto espero;
a própria urina que em meu corpo gero
no mar encontra seu refúgio santo.

Mar escarlate das aves de rapina,
o mar de estanho do gelado pago,
o mar de anis desse licor sem fim,

mar carmesim da maresia fina,
mar ambarino do derradeiro afago
do azul-turquesa que trago dentro em mim.

OLHOS DE ABISMO I (26 FEV 13)

Na chama transparente da paixão
o meu próprio destino me consola;
a vida demonstrou-se má escola,
mas conservei amor no coração.

Em cada verso de mágoa em brotação,
minhalma gira e no ar se desenrola;
meu sonho canta no fumo que se evola,
sem nem sequer buscar satisfação.

Olhos de lume meu peito devoraram,
olhos de chispas em mácula insondável,
olhos de luto pela própria morte,

que não busquei, porém me contemplaram,
nessa ânsia em mastigar o inquebrantável,
a quebrantar cada limite de minha sorte.

OLHOS DE ABISMO II

São olhos que me mordem e me comem,
feitos de sombra, em límpida explosão,
olhos de brasa a roer-me o coração,
que me conquistam e, logo após, me somem.

Bem eu quisera que jamais me domem
esses olhos de argila em mutação,
olhos desfeitos em cúpida emoção,
olhos de grude que meu peito gomem.

Todos os olhos que existem são castanhos,
feitos de grânulos de pura melanina,
mas como o mar, são cheios de nuances,

dependentes da luz os seus rebanhos,
são quase negros quando o marrom anima,
tornam-se azuis se em viés a luz alcances.

OLHOS DE ABISMO III

São olhos verdes de castanho diluídos,
ou de pontos de ouro pintalgados,
ou em círculos concêntricos pintados
ou como gatos, em adagas contraídos.

Olhos de cinza em nuvens iludidos
ou violetas nos azuis mais concentrados;
azul-cobalto em raridez mostrados,
olhos de sonho, de arco-íris perseguidos.

Olhos luzentes, amarelos e fatais,
em redemoinho, sempre apaixonados,
em rodopio a me trazer adversidade,

porém todos são castanhos e abismais,
esses olhos de avelã ou vermelhados,
que me chamam para si, sem ter piedade,


ESTALEIRO I  (27 FEV 13)

Há solidão no barco em estaleiro,
quando ficou totalmente abandonado
e se perdeu do passo amarfanhado,
reduplicado por cada marinheiro.

Talvez coberto por vasto formigueiro
de alcatroadores  seu casco maltratado,
de calafates em seu porão afendilhado,
de lustradores da ferrugem por inteiro.

Até as cracas que nele se acumulam,
a redonda e amarujada companhia,
que quase sugam o aço de suas chapas,

são retiradas por operários que pululam
nessa reforma após longa travessia,
que então o pintam de tinta em novas capas.


ESTALEIRO II

Porém não são amigos permanentes
esses que chegam sob a luz dos holofotes,
parafusos removendo ou até lingotes,
a maresia a enxugar, indiferentes.

E embora os barcos deixem transparentes
para novas viagens, longos botes,
para enfrentar a borrasca novos dotes,
eles destroem as lembranças impotentes.

Que do navio a vida está no estrago:
cada ponto de ferrugem, velho dia,
toda salsugem medalha de uma glória;

perde-se mesmo dos fantasmas seu afago,
pois cada corpo que nele se perdia
deixara a alma na franja da memória.

ESTALEIRO III

Também assim é comigo no repouso:
durante o sono, fazem-me limpeza
e retiram cada teia de incerteza,
cada vestígio de esquecido gozo...

Quando me acordo, um novo dia esposo,
renovado nos  confins da natureza,
para enfrentar, em redobrada fortaleza,
as mil procelas ou então o mar formoso.

Mas ficaram para trás as fantasias,
as solitárias visões do devaneio,
até de minha tristeza empobreci;

e no vogar destas velhas travessias,
deixei  retalhos de mim, nesse permeio
e até dos sonhos que tivera me esqueci.