sábado, 27 de julho de 2013


JOÃO E MARIA DE HUMPERDINCK
(Hansel und Gretel, sobre texto de Adelheid Humperdinck Witte)
Versão poética de William Lagos, 23 JUN 13

JOÃO E MARIA I

Numa clareira no meio da floresta
vivia um fabricante de vassouras,
por nome Peter, em cabana miserável,
com seus dois filhos, duas crianças louras,
e sua esposa, que ao menos uma cesta
trançava a cada dia, com esforço,
todos passando privação insuportável...

Subia a mata pelos flancos da montanha
de Ilsenstein, mas lhes dava poucas frutas,
eram mais algarrobas e pinhões,
algumas bagas mais ou menos brutas,
para enganar-lhes a fome que se assanha.
Sofriam muito assim as criancinhas,
quando não eram dessas frutas estações... 

João aprendera a fabricar vassouras
e Maria as roupas velhas costurava,
mas estômago vazio não há quem dome:
de seu trabalho o menino se queixava;
e a menina deixou linha e tesouras,
com suas vassouras foram dançar os dois,
sempre uma forma de esquecer a fome...

Porém no auge de seu divertimento,
abre-se a porta e a mãe lhes aparece,
furiosa por não vê-los trabalhar...
Ela vendera seus cestos, mas nem prece
nem discussão mudara o sentimento
do mordomo que cuidava da mansão:
só pagaria após o patrão voltar!...


JOÃO E MARIA II

Contudo, ao contemplar seu sofrimento,
tivera pena uma criada do castelo,
que às escondidas lhe deu jarro de leite.
Era pesado, mas o trouxe com desvelo,
a fim dar a seus filhos alimento,
mesmo cansada, sem tomar uma só gota,
queria guardar para os meninos tal deleite...

Porém ao ver as crianças a brincar,
Frau Gertrud, exausta do caminho,
começou a bater nos dois meninos,
que, ao defender-se de seu abespinho,
acabaram por fazê-la tropeçar:
a jarra tomba e o leite todo entorna!
Ficam os três em tristes desatinos...

Frau Gertrud só chorava sem parar
e as crianças aumentaram a choradeira:
“Ai, meu Deus!  O que nós vamos comer?”
Secou a mãe sua lágrima derradeira:
“Ao invés de beber, irei limpar!...
Esta vida de pobre, como é triste!...
Nada mais tenho para lhes oferecer...”

“Ainda bem que não quebrou o jarro,
pois o peguei emprestado na mansão...
Ainda é cedo.  Vão colher frutinhas...”
“Mas não é tempo... E já acabou o pinhão,”
disse Hansel.  “Choveu e virou barro...”
(Ele entre nós é conhecido por Joãozinho.)
“Vão assim mesmo!  E encham duas cestinhas!”

JOÃO E MARIA III

“Quando seu pai chegar, o que vou dizer?
Ele saiu para buscar macega,
vai voltar carregado feito mula!
Não há vassouras novas para entrega!
Vocês ficaram o dia inteiro sem comer!
Deixaram o chão todo grudento e sujo!
Saiam daqui!” – ela gritou, de raiva fula.

Saíram as crianças, assustadas,
Gretel pegou Joãozinho pela mão.
Seu nome quer dizer “Margaridinha”,
mas entre nós tem diversa tradução:
é “Mariazinha”, nas histórias relatadas
de João e Maria, como se acostumaram
contar os velhos para cada criancinha.

E lá se foram os dois, pela floresta,
cada um a sua cestinha balançando,
enquanto a mãe ia limpar o chão.
Cada restinho de leite foi secando,
para depois ir trançar mais uma cesta.
“Se ao menos Peter conseguisse algum dinheiro!”
Depois, exausta, foi deitar-se no enxergão...

Caindo a noite, uma outra voz se escuta,
cantando alegremente pela mata...
Chega Peter, um tantinho embriagado,
carregando duas cestas e uma grande lata,
feliz da vida, apesar de sua labuta...
É que vendeu suas vassouras e escovas!
Fez um bom rancho com o dinheiro assim granjeado!


JOÃO E MARIA IV

Foi acordar sua esposa com um beijo.
Ela se ergueu, em bocejos resmungando:
“Não tenho nada para o teu jantar!...
Mas o marido responde, gargalhando:
“Ô, mulher velha, acaba o cacarejo!
Olha o que trago nas cestas e na lata!
Boia de sobra para nos alimentar!...”

Gertrudes foi olhar os mantimentos;
com tanta coisa fica maravilhada.
“Toucinho, manteiga, salsichas e farinha!
Queijo e cebolas e café de cambulhada!
Quatorze ovos, arroz, feijão e condimentos!
Mais cinco quilos de pão a acompanhar!...”
E a lata!... Cheia está com bolachinhas!...

“E ainda trouxe schnapps na garrafa!
Não só vendi, me pagaram os atrasados!
Esta semana comeremos bem...!
Cadê os garotos?  Trouxe bolo pros safados!...”
Gertrudes cai em si, de pura estafa:
“Mandei colher morangos pelo bosque!
E até agora estão por lá,  meu bem!...”

Peter ficou completamente apavorado:
“Mas, mulher, pois ninguém te contou?
Uma bruxa mudou-se para cá!
Quase uma dúzia de crianças devorou!...”
Os dois, talvez, ela tenha já apanhado!
Anda logo, vai buscar a minha garrucha!
Vamos depressa procurá-los acolá!...”


JOÃO E MARIA V

Hansel e Gretel tinham tido sorte,
pois encontraram um renque de framboesa:
comeram a fartar, as cestinhas encheram:
“Mamãe fica contente, com certeza!
Vai nos perdoar por nosso mau esporte,
por termos todo o leite derramado!...
E alegres pela mata os dois correram...

Mas Mariazinha quis tecer ramos de flores:
colocou na cabeça uma coroa
e pôs um colar no pescoço de Joãozinho,
brincando juntos enquanto a luz se escoa...
E de repente a noite e seus pavores
caem na mata, sob a copa do arvoredo!
Nenhum dos dois já encontra seu caminho!...

Eles penetram num renque de salgueiros,
cujos ramos compridos e flutuantes
lhes causam muito medo e morno pranto;
os dois se encolhem, mais perdidos do que dantes!
Usam raízes como travesseiros
e então, de um tronco, sai o Homem do Sono!
Toca em suas testas, sussurrando um acalanto...

E assim ambos adormecem, abraçados,
as cestinhas no meio das raízes,
veem fogos-fátuos, depois veem pirilampos...
O Homem do Sono os protege nessas crises,
toca uma flauta e os anjos são chamados,
para impedir lhes sobrevenha qualquer mal...
Por sobre as árvores vêm, cruzando os campos...

JOÃO E MARIA VI

Quatorze anjos velam sobre eles:
dois à cabeça e dois junto a seus pés,
dois à esquerda e dois à sua direita,
dois os acordam para antigas fés,
dois os protegem, pairando acima deles,
dois os conduzem ao país dos sonhos,
para as crianças a terra mais perfeita...

E nela os dois caminham, de mãos dadas,
por entre nuvens de alegres borboletas,
a estrada a seus pés limpa e macia;
cantam os pássaros mil canções secretas,
criam as flores paragens perfumadas
e sob o brilho luminoso dos arcanjos
some-se a fome e o cansaço se esvaía...

Estão deitados sobre o musgo, na verdade,
e os anjos formam escudo impenetrável:
eles nem sentem qualquer frio, qualquer perigo,
o sorriso nos seus rostos é adorável,
nessa ilusão de total felicidade,
na Terra do Cuco das Nuvens, fantasia
que traz à alma e ao corpo doce abrigo...

E assim dormem, durante a noite inteira...
Seus pais, porém, vagam doidos pela mata,
uma lanterna nas mãos, em sobressalto,
sem que o cansaço a cada um abata,
nesse temor que a ausência mais ligeira
faz emergir no paterno coração,
a percorrer do chão cada ressalto...

JOÃO E MARIA VII

Amanhece...  E a gentil Fada do Orvalho
derrama pingos de geada nas suas testas.
As duas crianças acordam e percebem,
pelo canto dos pássaros em festas,
que só dormiram sob espesso galho,
sem o teto habitual de sua casinha:
gotas de orvalho nas mãos juntam e bebem.

Só então se lembram de que estão perdidos...
Durante a noite murcharam as framboesas,
mas há esperança nova no arrebol...
Começam a andar, em incertezas,
por arredores até então desconhecidos...
Nunca estiveram nessa parte da floresta,
mas é mais fácil marchar à luz do sol...

Quando as brumas se dissipam por completo,
à frente deles aparece uma casinha...
Por um momento, até pensam ser a sua,
mas a ilusão se esvoa, depressinha...
Bem diferente é dessa casa o teto,
marrom escuro, igual que chocolate...
Duas janelas de alcaçuz dão para a rua...

Paredes lisas, parecendo massapão,
massas folhadas, biscoitos incrustados,
a chaminé é toda feita de glacê...
O caminho é de pasteis bem encaixados,
De um lado se ergue um forno com fogão
e dele escapa um cheiro delicioso,
que sua gula desperta, ora se vê!...

JOÃO E MARIA VIII

Ao redor, há uma porção de bonequinhos,
todos feitos de merengue e massapão,
do seu tamanho, garotos e meninas,
os seus enfeites e até cada botão
são feitos de gemada e de docinhos
e os seus rostinhos desenhados em confeitos,
iguais que os bolos de confeitarias finas...

Eles pensam ainda estar sonhando;
bem devagar, vão tocando nas paredes,
mel e açúcar sai na ponta de seus dedos...
Em igual situação, também não cedes?
Logo pedaços os dois vão retirando,
cada um deles com melhor sabor...
Quais serão dessa casa os seus segredos?

Abre-se a porta e sai a feiticeira;
joga uma corda, buscando prender João;
porém ele se desvia, já assustado...
“A corda é açúcar-cândi”, diz-lhe então,
numa voz bem melíflua e chamadeira...
Mas quando os dois começam a fugir,
um mau encanto sobre eles é lançado...

A bruxa, assim, as crianças paralisa
e empurra os dois pela porta da cabana;
Enfia João dentro de uma gaiola
e põe Maria a varrer a sua choupana.
Depois os braços de João, gentil, alisa
e considera o menino bem magrinho,
com pouca carne para a sua esfola...


JOÃO E MARIA IX

Começa, então, a enchê-lo de comida,
para deixá-lo, bem depressa, mais gordinho...
Maria, contudo, lhe parece em bom estado,
faces rosadas, já está bem mais fofinha...
Então a leva para o forno, sem mais lida
e lhe dá ordens de trazer lenha para o fogo,
pois nem sequer quer trabalhar pesado!...

Enquanto espera que seu forno aqueça,
em que pretende jogar Maria inteira,
ela lhe ordena dar mais comida a João!...
Mas esquecera sua varinha a feiticeira
e aproveitando a agradável distração,
Maria quebra o encanto da gaiola,
assim dando liberdade a seu irmão!...


Ela sai, deixando João com a varinha...
Mas acha o fogo estar pronto a feiticeira!
Abre sua porta e diz à garotinha:
“Olhe de perto, se o calor dessa lareira
já está bom para se assar galinha...”
Porém Maria finge não saber,
enquanto João por detrás dela se avizinha...

E quando a bruxa chega junto à porta,
os dois juntos lhe dão forte empurrão!
Trancam a porta com a magia da varinha
e enquanto a velha suplica por perdão,
os dois se abraçam, pois nenhum se importa
com os gritos da feiticeira canibal
e em torno ao forno, fazem uma dancinha!...

JOÃO E MARIA  X

E de repente, ocorre uma explosão!
A bruxa morta se faz em mil pedaços,
some a choupana e surgem dez crianças
a sacudir merengue de seus braços:
eram os bonecos que pareciam massapão!
Pedem que nelas toquem com a varinha,
pois voltar para seus pais têm esperanças!...

Quando tocadas, recobram movimento
e se põem a dançar com os dois irmãos...
Pedem depois que as toquem novamente
e então somem, quais pequenos furacões.
Voltam às casas de seus pais nesse momento
e a varinha se quebra e torna em poeira,
mal não fará no futuro a qualquer gente!...

A explosão atrai a mãe e o pai,
que encontram sãos e salvos João e Maria!
E então se abraçam, no maior alívio...
Mas nas ruínas da choupana algo luzia
e a remexer nas cinzas o casal vai,
onde encontra um panelão cheio de ouro!
É o suficiente para anos de convívio!...

João e Maria retornam para o lar
e Peter monta uma fábrica de vassouras,
para aplicar melhor esse dinheiro.
João conheceu uma mulher de tranças louras
e Maria encontrou um garboso cavalheiro
e no devido tempo, vinda a idade,
foram os dois bem felizes se casar!...

EPÍLOGO

E quanto à bruxa?  Existe até quem diga
que um feiticeiro recolheu os seus pedaços
e como tanto doce ela fizera
até guardava dentro em si certa doçura...
O feiticeiro, com condão e grande figa
uma pasta preparou, deu uns amassos,
a mistura foi assando, igual que pão,
mel e hortelã na massa acrescentara,
cravo e canela e especiaria pura,
e para sua despensa a transportara,
virada em bolo de doce massapão!...



sábado, 20 de julho de 2013





A FADA DO RIO (02 jul 11)
(Conto popular eslavo, recontado por William Lagos.)

         Em tempos que já lá vão, erguia-se um moinho às margens do grande rio Dnieper, que até hoje atravessa a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Era atendido há muitas gerações pela mesma família, que assim gozava de uma relativa prosperidade.  Os camponeses traziam o trigo, a aveia, o centeio, a cevada, a espelta e outros cereais ao moinho em seus carroções e os moleiros os transformavam em farinha.  Em geral, os camponeses nada pagavam em dinheiro, porém uma percentagem do cereal ou da farinha pronta era separada pelo moleiro para seu uso pessoal ou para vender a clientes regulares.  O negócio convinha a todas as partes e o sistema ocasionou um surto de prosperidade por toda a Europa, a um ponto que os historiadores se referem a este período como “a revolução dos moinhos” ou mesmo “a primeira revolução industrial”, que permitiu um grande aumento à população europeia.   Tornou-se possível plantar vastas extensões de terras antes devolutas, produzindo alimento abundante para os humanos e seu gado.
            Na época em que se passa esta história, o moleiro chamava-se Vassily, mas era conhecido por todos por Vássia, que era o diminutivo de seu nome.  Vassily significa em português Basílio, portanto Vássia é o mesmo que “Basiliozinho”.  Ele herdara o moinho de seu pai, mas trocara por uma maior a roda acionada pelas águas do rio e adquirira um novo conjunto de mó, a pedra superior que gira, acionada pelo mecanismo do moinho movido a água sobre a pedra de baixo, chamada de arial.  Em outros lugares, o moinho era acionado pelo vento e, em tempos mais primitivos, bois ou escravos caminhavam sem cessar ao redor da mó e do arial, fazendo com que o trigo fosse sendo esmagado e transformado em farinha.  Quando Vássia instalou as novas pedras, teve a ideia de construir ao lado um salão menor, onde colocou as antigas para moer centeio, cevada ou outros cereais, reservando a nova instalação apenas para o trigo, que era muito mais volumoso.  Deste modo, não só duplicava a produção como não perdia tempo lavando as mós e as tulhas para não misturar a farinha de cereais diferentes.
            Vássia tinha uma filha, a quem chamou Rusalka, num desafio às superstições locais e contra as objeções do pope, o padre ortodoxo que chamou para batizá-la.  Acontece que os camponeses e marinheiros eslavos chamavam rusalka (ou rusalki, no plural) às ninfas do rio, que diziam puxar pessoas para dentro da água a fim de afogá-las.  Acontece que Vássia passara a vida toda à beira do Dnieper e nunca vira uma rusalka, nem conhecia ninguém que as tivesse visto pessoalmente.  Pessoas se afogavam no rio, era certo, mas os infelizes eram logo encontrados e não havia aparecido nenhum monstro ribeirinho para atraí-los até o fundo das águas.  Eram somente lendas de comadres ou de amas-de-leite para assustar as criancinhas e fazê-las dormir mais cedo ou criarem um medo bastante saudável da correnteza, nunca brincando no fundo nem andando por lá sozinhas.
            Além disso, existia também um festival de verão, chamado rousalka, no período em que as rosas estavam em plena floração, quando as meninas e moças solteiras dançavam horas a fio e, se alguém dizia alguma coisa e ele estava de bom humor, o moleiro explicava que o nome de sua filha se devia à dança.   Mesmo assim, achavam que ele estava mexendo com coisas que não devia.  A lenda era muito espalhada, da Rússia e Ucrânia até a Polônia e a Boêmia, como se chamava então a República Tcheca.  Era repetida também nos países bálticos e escandinavos e até mesmo na Alemanha e os mais velhos (os quais, diga-se de passagem, nunca haviam visto qualquer rusalka ou outra criatura sobrenatural) diziam que onde há fumaça, há fogo.
            Corria a lenda que as jovens que se jogavam no rio por terem brigado com o noivo ou o namorado se transformavam em rusalki.  Esse também era o destino de mulheres grávidas que se afogassem por um acidente qualquer e até mesmo de crianças mortas nas águas antes de serem batizadas, embora isso fosse muito mais raro.  Na maioria dos lugares, contavam que a rusalka perdia toda a cor e ficava muito branca, com longos cabelos platinados, embora em outros dissessem que eram louras ou tinham cabelos verdes.  Seus olhos também se transformavam, ficavam muito brancos e sem pupilas ou então eram iluminados por um brilho interior que parecia uma chama verde.   No extremo norte, na Carélia ou na Finlândia, diziam que ficavam cobertas de um pelo branco dos pés a cabeça, mas a história mais comum era a de que andavam nuas, recobertas por longos cabelos que lhes chegavam até os joelhos.
            O que as rusalki faziam também variava de acordo com o narrador.   Em alguns lugares, saíam para a terra somente no verão, durante a semana da rusalnaya, no princípio de junho e dançavam e cantavam pelos prados a noite inteira, fugindo quando alguém se aproximava.  As suas danças tinham até um nome especial, korowody, que era usado principalmente na Polônia, onde afirmavam que, no caso de alguém as avistar, que se afastasse rapidamente, porque a visão de sua nudez podia deixar as pessoas cegas.  Outros diziam que podiam sair das águas durante qualquer noite em que a superfície não estivesse congelada e então seduziam os rapazes para namorarem durante algumas horas ou as crianças para brincar com elas, mas fora isso, não faziam qualquer mal.  Elas costumavam assentar-se nas forquilhas de bétulas, abetos ou carvalhos, onde ficavam penteando os longos cabelos e cantando canções em louvor à Lua.
            Falavam em outras partes que as rusalki eram os espíritos de mulheres assassinadas nas proximidades do rio ou do lago e que vagueavam soluçando.  Não eram maldosas e descansavam quando sua morte fosse vingada de uma forma ou de outra.   Mas havia versões mais assustadoras.   Elas vinham à margem só para fazer o mal, seduziam os homens ou as crianças e os afogavam no rio, arrancavam os pescadores de seus barcos, puxavam para o fundo os nadadores e, quando o rio estava baixo, no final do verão, derrubavam as pessoas que atravessavam as águas a vau.  Nos raros lugares em que havia pontes, dizem que eram capazes de saltar do fundo e agarrar alguém que passasse depois de certa hora, carregando a pessoa consigo pela outra amurada.  Mas a maior parte das pessoas afirmavam que estas não eram as rusalki, mas as buditchkas, espíritos malignos e sem alma que odiavam os seres humanos. 
            Também se contava que não podiam ficar muito tempo na superfície, somente algumas horas, porque seus cabelos se ressecavam e isso lhes causava a morte, uma vez que faziam parte das águas do rio e deveriam estar sempre molhados.  Mas cada rusalka possuía um pente mágico, alguns de ouro, prata ou outro metal, outros de madrepérola, âmbar, ônix ou mesmo de esmeralda.  Enquanto tivessem o pente consigo, podiam pentear pelo menos uma parte dos cabelos e permanecer por mais tempo em terra.  Dizia-se ainda que, caso alguém encontrasse uma rusalka e conseguisse tirar-lhe o pente, ela não somente não lhe poderia fazer mal algum, como obedeceria a todas as suas ordens.  Pelo sim, pelo não, todos os anos, em junho ou julho, os aldeãos se reuniam e queimavam ou enterravam uma boneca representando uma rusalka, como precaução para que não os viessem perturbar nesse ano, costume que perdurou na Rússia até a década de 1930, até que fosse reprimido violentamente pelo governo, que via com muito maus olhos tudo quanto fosse catalogado como superstições. 
            Tudo isso Vássia escutara em sua infância e adolescência e até mesmo adulto, em reuniões de família no inverno, quando escurecia muito cedo e o moinho parava de funcionar ou nas tavernas e estalagens em que ia levar farinha e se demorava bebendo um copo ou dois ou fazendo uma refeição quente, nas ocasiões em que se achava muito longe de casa.  Mas sempre fizera troça dos contadores de histórias, que invariavelmente falavam ter conhecido alguém morto ou seduzido por uma rusalka ou alguém que conhecia alguém que o fora e assim por diante, mas que nunca as haviam encontrado pessoalmente. Um dia, por bravata, disse que sempre tivera vontade de ver uma dessas fadas ou bruxas do rio, não importa o que de fato fossem e que, caso nunca o conseguisse, iria chamar de Rusalka a primeira filha que tivesse, o que realmente fez.
              Três anos depois, sua esposa morreu após dar à luz outra menina.  Tanto falaram, que Vássia se ressabiou e a batizou com o simples nome de Ana.  Durante alguns anos contratou amas-de-leite e governantas para cuidar das meninas e fazer os serviços da casa, mas finalmente se decidiu a casar novamente com uma camponesa que morava a muitas verstas de distância (uma versta corresponde a 1,067km.).  Sua noiva se chamava Natasha, tinha olhos verdes e cabelos muito negros e lisos e era de uma beleza extraordinária.  Tomou-se de amores por Rusalka e Ana, a um ponto que ninguém jamais diria que era a madrasta, mas sim sua mãe verdadeira.   E também amava profundamente a seu Vassily, que procurava tratar sempre da melhor maneira possível, atendendo a suas menores vontades.
            Mas acontece que Natasha não era bem humana.   Três noites a cada mês, quando a Lua estava no apogeu, sua pele rosada se enchia de pelos negros, ela encolhia e criava uma cauda entre as pernas, fugindo para o mato.   Não era um lobisomem como se poderia supor, nem tampouco uma bruxa.  Natasha virava uma gata, com os mesmos olhos verdes e o pelo muito negro.  Como nunca confiara o suficiente em seu marido para lhe contar a respeito, combinara com ele desde o princípio que nesse período iria visitar sua mãe viúva, que morava sozinha.  Subia então em uma carroça e realmente se dirigia para a casa de sua mãe Nadezhda, por que esta também se transformava em gata, somente com o pelo branco e olhos muito azuis e as duas corriam juntas, subiam pelos telhados, ficavam cantando um dueto de miados para a Lua e saciavam a fome caçando coelhos e passarinhos.   Passado esse período, ela voltava calmamente para o moinho, como se nada houvesse transcorrido, cheia de amor pelo marido e pelas meninas, a quem tratava, se fosse possível, ainda melhor do que antes.
            Só numa coisa ela não atendia a Vássia.  Este queria ter um filho, para que o menino herdasse seu moinho quando ele morresse, como o herdara de seu pai e este de seu avô, por gerações sem conta.  Natasha nunca o contrariou, mas evitou sempre engravidar, porque sabia que só teria meninas e que estas seriam gatas como ela, durante aqueles três dias em cada mês e que seria muito difícil esconder a verdade de seu marido ou de suas enteadas.  Os anos foram passando e Vássia perdeu as esperanças, mas consolou-se no amor que tinha pelas filhas, que via crescer fortes, alegres e saudáveis.
            Porém uma noite, o destino interferiu.  Natasha e Nadezhda, as duas gatas, saíram a perseguir uma perdiz ao longo de muitas verstas e quando finalmente a caçaram e a comeram, tinham ficado ambas exaustas da corrida e perceberam que estavam nas vizinhanças do moinho.   É claro que, enquanto gatas, elas não pensavam como seres humanos e, com toda a naturalidade, subiram ao teto do moinho, onde ficaram a miar para a Lua, como sempre o faziam.  Mas desta vez acordaram Vássia e o moleiro, que precisava se levantar cedo, saiu para a rua com um facão na mão esquerda.  Ao ver que eram somente gatos, pegou uma pedra e a lançou com pontaria certeira, acertando em cheio a gata branca, que caiu do telhado.   Ao ver a mãe nessas condições, Natasha pulou em cima de Vássia, pretendendo defendê-la, mas o resultado foi que este lhe cortou a pata direita com um golpe do facão.      
            Natasha e Nadezhda, feridas e estropiadas, fugiram com a maior dificuldade, mas Vássia somente as perseguiu por algum tempo, lavou-se do sangue e foi dormir.  No outro dia de manhã, para seu horror, ao sair para o pátio, viu uma mão humana ensanguentada e caída no lajedo.  Reconhecendo uma das mãos da esposa, atirou-a dentro do fogão, em desespero, antes que as meninas a vissem.  Findo o prazo de costume, chegou Natasha, com uma bandagem avermelhada cobrindo um dos pulsos.  Ela ainda tentou explicar-se com ele, contou sobre sua maldição, disse que o amava muito, que não fazia nada de mal enquanto gata, mas de nada adiantou.  Movido pelo medo e pelo remorso, Vássia correu-a de casa.  As meninas choraram, mas não mudou de ideia.   Natasha, que o amava sinceramente, ficou tão desesperada que se lançou às águas do Dnieper, afundando instantaneamente.
            Quase de imediato, Natasha morreu de frio nas águas geladas, mal chegando a se afogar e seu coração ficou tão gelado quanto o rio.  Em vez de rusalka, tornou-se uma buditchka, um espírito da morte, dominando de imediato as ninfas do rio.  Mas quando o Rei do Rio, um gênio chamado Kulebowy, veio indagar que tipo de perturbação estava ocorrendo entre suas rusalki, ela prontamente se fez meiga, curvou-se perante ele e se demonstrou tão carinhosa que logo o seduziu.   Kulebowy não era um espírito nem bom, nem mau, era mais indiferente... mas quando se achava de mau humor, por ver gente demais nadando ou atravessando ou quando despejavam algum tipo de sujeira nas águas, ele se enfurecia e provocava tempestades ou aumentava as correntezas e redemoinhos, o que causava a morte dos que não se refugiavam bem depressa em uma das margens.  Natasha, que se tornara um espírito maligno, puxava os pescadores dos barcos, ia até as praias seduzir rapazes e crianças e chegava a se atirar contra as pontes para capturar os que estivessem atravessando por ela, porque seu coração estava cheio de mágoa e de ressentimento pelo seu amor traído.
            Vássia montou em seu cavalo e foi até a cabana em que morava a sogra, para lhe dar a triste notícia.  Mas a porta estava aberta e, quando entrou, Nadezhda estava fria e morta no chão, com uma feia ferida na testa.   Vássia sentiu um grande arrependimento, mas o mal estava feito: quem mandara as bruxas se intrometerem em sua vida?  Mesmo assim, mandou enterrar a sogra em uma cova dupla, com lugar também para Natasha, embora seu corpo nunca fosse achado.  Ele pediu ao sacerdote da aldeia que abençoasse o túmulo.  O pope, que era supersticioso, se recusou a princípio, mas foi facilmente convencido por um punhado de rublos.
Como o corpo não fosse encontrado, o sacerdote da aldeia, aconselhou a Vássia: “A tua esposa se afogou no Dnieper, porém seu corpo nunca foi encontrado, deve estar transformada em uma rusalka e talvez venha também buscar a tua filha... O melhor é te mudares para a aldeia.   Escolheste um feio nome para a menina e o Rei do Rio pode achar que ela lhe foi consagrada; ele tem fome de mais rusalki e pode ordenar que a venham capturar...”  Porém Vássia respondeu que era moleiro e tinha de trabalhar na beira do rio. Se fosse para a aldeia, teria de fazer um longo trajeto até o moinho e levantar ainda mais cedo que de costume...  E ajuntou, de brincadeira: se eu chegar no moinho noite fechada, será a mim que uma rusalka vai pegar...
            Contudo, recomendou severamente a Rusalka e a Ana que nunca se aproximassem do rio desacompanhadas.  Passou-se o tempo e Rusalka, então com uns quinze anos, achou que já era grande o bastante e foi ao rio sozinha lavar umas roupas.   Quase em seguida apareceu Natasha.  Rusalka assustou-se, mas Natasha sempre fora praticamente uma mãe para ela e a bruxa do rio lhe falou de forma tão delicada, que Rusalka perdeu o medo e quando deu de si, Natasha já a puxara pela mão, carregando-a para as profundezas, a fim de tornar-se mais uma rusalka, como seu nome já a havia predestinado... A princípio, estava confusa demais para perceber o que lhe ocorrera, mas quando o notou, começou a queixar-se amargamente.  Natasha, embora fosse agora uma buditchka, arrependeu-se do que fizera, porque a menina não tinha culpa da raiva com que seu pai a expulsara e somente a havia atraído para vingar-se dele.  Mas nada havia a fazer.  Procurou consolá-la, dizendo que uma rusalka vivia muito mais que uma jovem humana, quase eternamente, nunca adoecia e nem se feria.  Como prova, mostrou sua mão direita, que Kulebowy fizera crescer de novo.  Mas Rusalka não se conformava e passava dizendo que tinha saudade de seu pai.           
            Vássia tinha ficado desesperado com o acontecido e desta vez mudou-se prontamente para o povoado, arrendou o moinho, comprou terras e a melhor casa da aldeia e passou a viver da renda de suas propriedades.  Enquanto isso, Kulebowy se afeiçoara à pureza da menina e lhe explicava ser muito difícil a uma rusalka recobrar a forma humana. A única maneira era apaixonar-se por um homem da terra que retribuísse seu amor completamente, o que era muito raro, porque os homens são muito volúveis e vão atrás da primeira mulher que lhes sorri... Porém Rusalka não perdia aquele fio de esperança e, durante todas as noites em que o rio não estava congelado, tomava seu pente e subia à praia, empoleirando-se na forquilha de uma bétula, de um carvalho ou de um salgueiro e ali ficava horas a fio, penteando os cabelos e cantando em louvor à Lua.
            Um dia, o príncipe Levko, o kniazy, isto é, o senhor daquelas terras, ouviu falar na Corça Branca, que diziam ser uma princesa encantada, e decidiu caçá-la.  Muitas vezes perseguira os gamos e as corças, que serviam para a alimentação do castelo e que só podiam ser mortos pelos nobres.  Um dia, realmente divisou a Corça Branca, que fugiu velozmente.  Levko a perseguiu tão depressa que se afastou de seus acompanhantes, porque não queria perder-lhe o rastro.  Já era noite quando chegou à beira do Dnieper.
            A Corça Branca deparara com Rusalka e deu uma guinada, embrenhando-se no mato em uma direção bem diferente da que seguira até então.  Levko chegou até a bétula em que estava Rusalka, sua pele branca e nua resplendendo à luz do luar, seus longos cabelos de um louro platinado lhe descendo até os joelhos e seus olhos que brilhavam com um fogo verde e pensou que fosse a Corça Branca desencantada.  Sacou a espada, porque a lenda dizia que tinha de misturar o seu sangue com o sangue dela para completar o desencantamento.   Mas Rusalka achou muito belo aquele príncipe alto e louro e imediatamente se apaixonou.  O príncipe sentiu o amor que vinha dela e seus sentimentos imediatamente se excitaram.  Embainhou a espada e abriu-lhe os braços... Rusalka saltou da árvore, cheia de confiança.
            Ela admitiu que era encantada, mas sem mentir que fosse a Corça Branca.  O príncipe a beijou apaixonadamente e lhe pediu permissão para dar um talho em seu braço, a fim de misturarem seu sangue.  O sangue de Rusalka era agora verde, mas no escuro Levko não notaria a diferença e consentiu.  O príncipe cortou de leve os braços dos dois e encostou os talhos para misturar o sangue...  Rusalka viu-se tomada de um amor incontrolável e permaneceu nos braços de Levko até de madrugada.  Então, levantou-se e disse que estava na hora, que procuravam o príncipe por toda parte e que ele tinha de ir encontrar seus companheiros.  Levko disse que queria casar com ela e como não tinha um anel, tirou um leque de seu bornal e lho deu.   Rusalka ficou encantada e recomeçou a pentear seus cabelos ressequidos, dizendo que tinha primeiro de pedir permissão a seus pais, que tinham sido encantados como ela.  Mas marcou encontro com Levko no mesmo lugar e na noite seguinte.
            Assim que o príncipe montou em seu cavalo e partiu, Rusalka mergulhou no Dnieper e foi diretamente pedir a ajuda de seus pais adotivos.  Kulebowy disse ser uma péssima ideia, mas Rusalka insistiu e a própria Natasha, movida pelo remorso, instou com o seu rei. Kulebowy soltou então um longo suspiro e declarou: “Ainda acho ser uma péssima ideia, mas se queres tanto, vai procurar Yezibaba, a bruxa... Ela conhece todos os feitiços e ervas e sabe a cura de todas as maldições.  Só não te esqueças de que tudo tem seu preço, até mesmo os amores mais sinceros!...”
            Mas Rusalka não deu ouvidos ao rei e indagou do endereço da bruxa.   Foi até sua caverna submarina e Yezibaba se recusou a ajudá-la.   Mas novamente, Rusalka insistiu tanto que a feiticeira concordou.   Ela realmente sabia como retornar uma rusalka à forma humana, ainda mais uma que fora afogada à força.   Infelizmente, não podia castigar a Rainha do Rio e teria de fabricar uma poção, cujo resultado era muito mais arriscado.  Para começar, ela perderia a fala humana, embora não sua inteligência e isto dificultaria muito a sua vida entre a gente da terra...  Mas a parte pior era que o seu príncipe não poderia nunca esquecer-se dela, caso contrário, ambos morreriam e seriam condenados à eterna danação como criaturas do mal.
            Rusalka, na ingenuidade de seus quinze anos, achou que Levko jamais a trairia e tomou prontamente a poção.  Sentiu dores terríveis pelo corpo todo e, de repente, alguma coisa lhe subiu à boca e ela teve a impressão de que estava vomitando a própria garganta... Era a fala de Rusalka!  Yezibaba pegou o pequeno objeto vermelho e o guardou dentro de uma concha nacarada.  Assim que se recuperou, Rusalka percebeu que se afogava uma segunda vez e nadou depressa até a superfície, alcançando a margem com algumas braçadas.  Subiu à praia e viu que seus cabelos haviam encurtado e sua pele recuperara o tom rosado anterior... Mas estava nua!   Suas roupas haviam ficado na praia, no dia em que se afogara...
            Surgiu então Natasha das águas, com um séquito de rusalki e a vestiu ricamente, com um trajo de gala de seda e brocado verde, sandálias de madrepérola nos pés, uma tiara de ouro e um colar de âmbar no pescoço.   Depois lhe pediu o pente que ela sempre carregava e Rusalka o entregou.  Natasha lhe disse: "Se algum dia precisares retornar, o meu afeto poderás reconquistar, junto a este pente que em minha mão luziu." E mergulhou novamente no rio, seguida por suas donzelas.  Logo a seguir, chegou o príncipe e achou Rusalka ainda mais bela à luz do dia do que lhe parecera de noite.  Só estranhou que ela não falasse, mas quando indagou se tinha a permissão dos pais para se casar, ela concordou com a testa. 
            Levko a colocou na garupa de seu cavalo e a levou até o palácio.  No caminho, explicou-lhe que, embora achasse o nome “Rusalka” muito bonito, havia gente supersticiosa no palácio que poderia começar a falar em bruxaria... Então a chamaria de Liubliana, podia ser?   Novamente, Rusalka acenou com a cabeça, apertando o queixinho contra o ombro do príncipe.   A sua chegada causou furor no castelo, todos a acharam extremamente bela e o príncipe já contara na véspera haver desencantado a Corça Branca.  Só estranharam que ela não falasse, mas o príncipe disse que ela era muito tímida. 
            Assim que ficaram a sós, Rusalka viu uma folha de pergaminho e uma pena de ganso e começou a escrever o que lhe acontecera.  O príncipe entendeu e mandou chamar o sacerdote do castelo para abençoar os dois.  O pope leu o que ela escrevera e perguntou se era batizada.  Rusalka respondeu que o fora, antes de seu encantamento e o sacerdote decidiu que ficaria melhor aos olhos de todos se ele a batizasse na capela antes de celebrar o casamento... E assim transcorreu e Rusalka e o príncipe Levko não cabiam em si de felicidade!...
            Ora, aconteceu que o leque que Levko dera a Rusalka era presente de uma princesa que estava hospedada no castelo e que já se considerava noiva do príncipe.   A princesa conhecia artes mágicas e o seduzira, segundo pensava, completamente.  Mas o amor verdadeiro de Levko por Rusalka havia superado o encanto... Quando a princesa viu que os dois iriam realmente se casar, mordeu os lábios de raiva e de despeito, jurando que se vingaria daquela humilhação.  E rogou-lhes uma praga de esquecimento.  A maldição não fez efeito sobre Rusalka, mas quando o pope disse ao príncipe que podia beijar sua noiva, ele estremeceu, olhou para Rusalka e não a reconheceu.  Embora o sacerdote e as testemunhas tentassem dissuadi-lo, ele jurou que nunca vira aquela mulher antes e que estava apaixonado era por sua princesa, hospedada no castelo.  Rusalka saiu correndo da capela aos prantos, fugiu do castelo e foi de volta até o rio. 
            O casamento foi anulado, porque não fora consumado e o príncipe foi imediatamente apresentar-se à sua primeira noiva, que lhe indagou de saída onde estava o leque que lhe havia dado?  Levko não foi capaz de responder, porque nem sequer lembrava e a princesa lhe disse uma porção de palavras humilhantes, mandou transportar suas arcas e baús para a carruagem, partindo com suas servas e escolta, após soltar gargalhadas zombeteiras diante dos protestos de amor do príncipe.
            Naturalmente, o banquete foi cancelado, mesmo que não houvera tempo suficiente para preparar muita coisa... Levko foi deitar-se, humilhado pela princesa e sem fazer a menor ideia do que fizera.   Seu esquecimento votara sua alma à perdição eterna, mas ele nem sequer lembrava de Rusalka, embora sentisse uma vaga inquietação, como se, realmente, tivesse se esquecido de alguma coisa.  Na madrugada seguinte, levantou-se, depois de decidir que aquilo de que se havia esquecido era caçar a Corça Branca.  Deu ordens a seus estribeiros e heiduques e outra vez partiu em caçada.
            Entrementes, Yezibaba sentira um forte arrepio, tomara a concha nacarada e fora avisar Natasha e Kulebowy do que havia sucedido.  Os dois foram esperar Rusalka na margem e a tomaram em seus braços; ela voltou a ser uma rusalka e a respirar embaixo da água.  Yezibaba abriu a concha com um espinho e sua fala saiu nadando até entrar novamente em sua boca, enquanto Natasha lhe devolvia o pente mágico.  Mas Yezibaba lhe disse que a maldição se cumprira: ela não era mais uma rusalka, porém uma buditchka, um espírito do mal e tinha de afogar muitos rapazes e crianças.   Mas Rusalka protestou não se sentir assim, olhava seu coração e não encontrava nele maldade alguma.   Então, Yezibaba lhe falou que havia uma solução.  Entregou-lhe uma adaga e disse que ela deveria ir procurar o príncipe e matá-lo.  Ela voltaria a ser uma rusalka do bem, mas ele, que tanto mal lhe fizera, seria condenado.
Ora, Levko perseguira de novo a elusiva Corça Branca até o mesmo ponto do rio em que conhecera Rusalka.  Quando a viu, toda a sua memória retornou e ele quis beijá-la.  Mas este seria o beijo da morte... A boa Rusalka recusou-se a matá-lo e lançou a adaga nas águas do rio...  Mas foi inútil.  Um clarão deslumbrante os envolveu, Rusalka foi empurrada para dentro do rio e o príncipe caiu morto no mesmo lugar, tornando-se então em um espírito da floresta, sem alma e sem amor, sem pouso ou paradeiro, sempre vagueando para pagar a terrível falta que nem sabia ter cometido.   Rusalka encolheu-se em uma caverna, recusando-se a matar para continuar vivendo e foi definhando aos poucos.  O Rei do Rio balançou a cabeça, dizendo como eram fúteis os sacrifícios dos humanos, pois ninguém podia lutar contra os desígnios do destino...
***   ***   ***
            Levko perdera todo o acordo de si, caminhando noite e dia, sem parar, invisível para todos.   Seu corpo foi sepultado e um de seus primos tornou-se o kniazy, o príncipe daquele lugar.  Por muito tempo Levko perambulou pelos bosques, sem sentir fome nem frio, inverno e verão, sem precisar de dormir ou descansar.   Um dia, porém, ao atravessar uma senda, deparou com o cadáver de um homem, a garganta aberta e todo ensanguentado.  A terrível visão lhe trouxe de volta o entendimento.  O infeliz deveria ter sido vítima de ladrões ou salteadores...  E a memória começou a lhe voltar aos poucos.
            Naquela noite, Levko escutou um choro muito triste e não conseguiu localizar de onde vinha.  Mas já no dia seguinte, escutou uma conversa lamuriosa no caminho e projetou-se rapidamente até lá.  Sendo um espírito, podia facilmente sair de um lugar e aparecer em outro... E viu um homem um pouco assustado, conversando com um garotinho, que teria no máximo dois anos.  O menino repetia sem parar que queria ser batizado e o homem se desculpava, por não ser padre nem pope, nem monge nem abade.  Subitamente, o menino perdeu a paciência e se lançou à garganta do homem aterrado.
            Mais que depressa, Levko saltou sobre os dois e tanto fez que conseguiu desprender o menino da garganta do homem, que ficou ainda mais assustado, pois somente via o menino esperneando no ar, sem poder enxergar Levko.   Ergueu-se depressa e saiu correndo pela estrada a fora.   O menino desatou a chorar e Levko o encostou no ombro.  O menino disse que ele lhe havia negado o batismo!  “Como assim?” quis saber Levko.  “Eu sou um espírito da floresta, nem sequer tenho alma, como poderia te batizar?”   Mas o menino, entre prantos, explicou que precisava ser batizado e queria beber o sangue do viajante.  “Mas por quê?” indagou Levko, confuso.  “Porque ele já foi batizado e traz o batismo no sangue!... Eu beberei o batismo com o sangue dele!...  Agora me solta, vou ter de procurar um outro caminhante!...” E ao ver a direção que Levko tomava, começou a berrar: “Não me jogues no rio!  Perderei a minha última chance de salvação!...”
            Mas Levko não o soltou e transportou-se com ele até a margem do rio, onde invocou Rusalka várias vezes, até que ela apareceu.  Como também era um espírito, podia ver Levko perfeitamente, que conservava um aspecto igual ao que tivera em vida, apenas transparente e invisível para os olhos mortais.   Levko lhe explicou a situação e ela respondeu: “Esse que tens aí é um bebê rusalka.  Foi afogado antes do batismo e só descansará depois de receber o sacramento.”  “E o que posso fazer?” perguntou Levko.  “Terás de ir até uma igreja que tenha um campanário e tocar o sino sete vezes... Então, te tornarás visível e poderás pedir ao sacerdote que realize o batismo desse infeliz menino.”   Mas como a criança continuasse a chorar e a se debater, ela tomou uma decisão muito corajosa.  Retirou o pente que a protegia e a mantinha viva e o enfiou nos cabelos sujos da criança.  Imediatamente, ele se aquietou e Rusalka fez mil recomendações a Levko para que lhe trouxesse seu pente de volta o mais breve possível.
            Levko avistou ao longe um campanário e foi até a capela.  Tocou o sino sete vezes e o pope encarregado apareceu.  “O que você quer, fazendo todo esse estardalhaço a esta hora da noite?  “Eu vim trazer este menino para ser batizado.”  “O quê, a esta hora?” O pope examinou o rosto do menino e falou: “Ele não me parece doente.  Traga seu filho amanhã de manhã pelas dez horas.”   Mas Levko insistiu: “Ele não é meu filho, eu o encontrei abandonado na floresta e ele têm de ser batizado agora mesmo.”   O padre suspirou: “Está bem, já estou acordado mesmo... São dez kopieki...” Levko explicou que não tinha sequer uma dessas moedinhas de cobre, que dirá dez!...  O sacerdote o encarou e disse que não trabalhava de graça.  “Já que não tem dinheiro, então me dê esse pente!...”
            O espírito da floresta hesitou, porque prometera devolver o pente a Rusalka... Mas achou que o menino era mais importante e entregou o objeto ao padre, que o pôs no bolso da batina e levou os dois até o interior da capela, destampou a pia batismal e celebrou o sacramento, resmungando de má vontade.   Mas o sacramento é apenas um sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual, sagrado mesmo quando o sacerdote é indigno.  O rosto do menino se iluminou ao final da cerimônia e então se desprendeu dos braços de Levko, começando a flutuar.  Para assombro dos dois, subiu até o teto da capela, que atravessou, de certo a caminho do paraíso.  O padre ficou tão embasbacado, que nem protestou quando Levko pegou o pente de volta e quase morreu de susto quando este também desapareceu sem deixar qualquer sinal. 
            Levko transportou-se para a margem do Dnieper, onde Rusalka o aguardava ansiosa.  De certo modo, ela percebera estar correndo o risco de perder seu pente inestimável, o que significaria uma morte por desidratação.  Mas Levko entregou-lhe o pente, sem nada dizer, embora ambos, sendo espíritos, soubessem o que se passava na mente um do outro.  Antes que discutissem o que fariam daí para a frente, Yesibaba emergiu das águas, parecendo muito satisfeita e afirmando que o encanto da poção fora quebrado pela generosidade que ambos haviam demonstrado, Levko por se esforçar tanto pela criança abandonada e Rusalka por se arriscar a perder a vida ao ter-lhe emprestado seu pente mágico.
            Mas Rusalka sabia que não podia ser assim.   Nenhum deles era um ser maligno, mas os corpos de ambos se haviam perdido e só poderiam viver como espíritos, ainda que fossem espíritos do bem.  Então se dispor a fazer um último sacrifício.  “Não, Yezibaba, não pode ser assim.  Eu sou uma rusalka e fui assassinada, mas minha morte não poderá ser vingada, portanto, só poderei ser libertada quando chegar a data que o destino marcara para meu falecimento no dia em que eu nasci.   Mas Levko não.  Eu não o matei, apenas lhe dei o beijo da morte sem pretender fazê-lo, porque você mesma me induziu a erro, dando-me aquela adaga.   Eu não precisava dela para que ele morresse e se o matasse de propósito, aí sim, teria provado ser uma criatura do mal e me tornaria uma buditchka.  Além disso, quem cometeu a falta fui eu, ao beber aquela poção.   Levko é inocente, por mais volúvel que seja o seu coração... Você não me enganará de novo.  Dar-lhe-ei minha bênção inteira e ele ressuscitará.   Terá uma nova vida e poderá ser feliz, ainda que não seja mais um príncipe.   E sei muito bem que me esquecerá de novo.”
            Levko protestou que nunca mais a esqueceria e tentou beijá-la, mas Rusalka se desviou, lançando-se no rio.  Yezibaba olhou para o espírito do bosque e fez alguns sinais cabalísticos, resmungando palavras em uma língua desconhecida.   Então, tudo se apagou ao redor dele.
***   ***   ***
            Levko se acordou na margem, junto ao moinho do Dnieper e sabia ser o moleiro, embora apenas arrendasse o local e tivesse de pagar a maior parte do que ganhava ao proprietário.  De que fora um príncipe e que amara Rusalka se havia esquecido totalmente, conforme ela lhe dissera que iria acontecer.  Acontece que o proprietário do moinho era o mesmo Vássia, pai de Rusalka, mas a quem ele só se dirigia como Gospodin Vassily, ou seja, Sr. Basílio.   A combinação era que ele entregaria toda a farinha pertencente ao moinho para Vássia vender e receberia somente uma pequena percentagem em troca de seu trabalho. 
            Mas Levko, quando ia deixar a farinha no armazém de Vássia, que ficava ao lado de sua casa, encontrava-se com Ana, a irmã mais moça de Rusalka, e os dois se apaixonaram profundamente.  Ele foi pedir a mão de Ana a seu pai, que negou seu consentimento.  Com todo o dinheiro que ganhara da exploração de suas terras e com as vendas de suas lojas, tornara-se muito rico e fora escolhido como prefeito da aldeia.  Sua ambição era casar sua única filha sobrevivente com um nobre ou, pelo menos, alguém de igual fortuna.  Levko disse que era pobre, mas poderia trabalhar arduamente e juntar algum dinheiro.  Vássia riu-se dele: “Meu caro Levko, eu sei que você trabalha arduamente e o respeito por isso... Pensa que pode acontecer com você o mesmo que aconteceu comigo.  Mas você esquece que eu enriqueci trabalhando porque o moinho já era meu, enquanto você é apenas um arrendatário.”
            E quando Ana foi suplicar-lhe que revogasse sua decisão, ele foi peremptório: “De forma alguma quero que você chegue perto daquele rio!   E se eu consentisse em seu casamento, iria morar na casa do moinho, onde se criou!... Nem sequer pense em me falar de novo nesse assunto!”   E disse a Levko que fosse embora e não chegasse de novo perto de sua filha, caso contrário, romperia o arrendamento e ele ficaria sem casa e sem emprego.  Os dois se separaram muito tristes e Levko voltou para o moinho, caminhando lentamente pela estrada escura.  Era de noite, mas havia lua e ele conhecia bem o caminho.  Ao chegar perto do moinho, deitou-se na grama, para descansar e pensar.
            Quando se acordou, viu luzes no moinho!   Primeiro pensou que estava pegando fogo, depois viu que as luzes brilhavam pelas janelas da casa...  Pé ante pé, foi até a janela mais próxima e viu que a sala estava toda iluminada, com uma dúzia de mulheres lindas dançando, jogando e brincando em seu interior.   Então reparou em uma jovem triste, a mais bela de todas, realmente, que estava encostada na parede oposta, sem participar das brincadeiras e sentiu que uma pureza intensa se emanava dela.  Mas a mais velha das mulheres, de olhos verdes e cabelos negros  lisos, subitamente se transformou em um corvo e saiu a perseguir as outras, de brincadeira, entre gritinhos e risadas.  Mas Levko teve a sensação oposta de que aquela mulher estava cheia de maldade.  
            Subitamente, Levko percebeu que aquelas eram as rusalki do rio e que decerto estavam ali para lhe tirar a vida!...  Apesar do medo, controlou-se e começou a recuar bem devagar, para não ser visto.   Contudo, a jovem triste o enxergara e saiu disfarçadamente, vindo em sua direção.   Levko ia correr, mas ao ver o sorriso no rosto dela, sua memória voltou de repente.  Era Rusalka!   De que modo a esquecera?  Mas e agora se apaixonara por Ana!   O que poderia fazer?  Mas tomado pela intensidade de seu amor antigo, abraçou-a e tentou beijá-la.  Rusalka colocou-lhe as mãos no peito e o empurrou com delicadeza: “Não, meu querido, seu coração mudou; além disso, sei que minha irmã o ama e não irei magoá-la.
"Eu quero apenas a sua felicidade
e não me venha mais falar de amor.
Isso eu lhe peço como um último favor.
Seu coração é bem volúvel, na verdade...

Esta é a última vez que me verá,
porém de longe, eu sempre vigiarei
e fique certo de que o castigarei,
se minha Ana por você se magoará...

Só vim aqui para dar-lhe um pergaminho,
que de meu pai irá mudar o pensamento.
Ele então consentirá no casamento,
portanto, trate minha mana com carinho!"

            Rusalka então lhe pôs na mão uma carta lacrada e correu de novo para dentro do salão, soltando um assobio agudo.   No mesmo instante, as lamparinas se apagaram e houve absoluto silêncio.   Levko não viu ninguém sair e teve medo de entrar no escuro da noite.  Voltou ao ponto em que estivera antes, deitou-se e logo adormeceu.   Acordou-se com a luz da Lua a lhe bater nos olhos.   Ergueu-se lentamente, olhou a carta em sua mão, mas não sabia como fora parar ali.  Caminhou até o moinho, viu que estava tudo em ordem, passou pela porta interna e entrou na cabana.  Tudo estava exatamente como havia deixado, nenhum sinal de que houvera alguma festa durante a noite.  Colocou a carta sobre a mesa, distraidamente, tomou um banho e foi deitar-se.  O outro dia era domingo e não precisava trabalhar.
            Acordou-se já na metade da manhã, com o sol entrando pela janela.  Tinha uma vaga noção de um sonho muito estranho.   Ao sair para a cozinha, a fim de preparar um chá quente e cortar pão e queijo, deparou com uma carta escrita em pergaminho e claramente endereçada ao “Sr. Prefeito Vassily”.   Sem pensar duas vezes, vestiu-se, atrelou seu cavalo à carroça e foi até a aldeia.  Vássia estava acordado, mas o recebeu friamente.  Levko explicou simplesmente que lhe haviam dado aquela carta para lhe entregar.  O prefeito o encarou e abriu o lacre. Enquanto lia, seus olhos se arregalaram, sua boca se entreabriu e prendeu a respiração. Levko nunca soube o que estava escrito na missiva, mas agora Vássia o olhava com outros olhos...  Pigarreou, sacudiu a cabeça e disse: “Pois muito bem!  Consentirei no seu casamento com Ana, mas com uma condição:  Não vou permitir que Ana more no moinho, novamente!... Serás, portanto, o meu superintendente.  Já estou velho e tenho os negócios da aldeia para cuidar.  Ficarás com a responsabilidade de tudo e virás morar nesta casa, com tua esposa e comigo.  Ana de todos os meus bens é a herdeira: quando chegar minha hora derradeira, terás de tudo a posse permanente...”

            E foi assim.   Levko e Ana se casaram e viveram por muitos anos juntos, amando-se ternamente.  A velhice do velho Vássia foi consolada por seis netos lindos, robustos e saudáveis.  Negociante habilidoso, logo arrendou o moinho para outro encarregado, dentro das mesmas condições...  E se de alguma coisa Levko se recordava, nunca falou nem à esposa e nem ao sogro.   Mas certamente se esforçou ao máximo para tornar Ana feliz.  Porém Rusalka continuou em solidão, penteando seus longos  cabelos sobre um galho robusto de um velho carvalho, sem esquecer nunca de quem lhe partira o coração... 

Passados anos, quando chegou o tempo predestinado para a conclusão de sua vida natural, sem que uma única ruga se lhe mostrasse ao rosto e seus cabelos continuassem tão louros como antes, conforme seu costume de décadas, foi cantar uma canção à lua em uma bela noite de verão, calando-se subitamente ao ver um raio sólido de luar descer até a terra e pousar diretamente em frente dela.   E uma mulher de extrema beleza, pele, olhos e cabelos muito prateados, estendeu-lhe os braços e lhe falou: “Vem, Rusalka, eu sou a Lua e vim te buscar.  Irás viver comigo e te darei a bênção que um dia me pediste e que não te dei então, pois nem mesmo a Lua é capaz de garantir a felicidade de alguém, quando seu amor é impossível...”