quinta-feira, 28 de setembro de 2017






FANTASMAS DE SAL  (23 JAN 11)
Quindecaneto de William Lagos

(Anfitrite e Posêison, mosaico Syrtes, 315 dC)

FANTASMAS DE SAL I 

Como Anfitrite, ela surge desde as ondas,
toda desnuda.   Porém as águas sobem
e de um vestido azul toda a recobrem:
são as ostras o calçado de suas rondas.

O sal marinho se condensa em sua cabeça:
mais que coroa, lhe forma um capacete,
cachos prateados em que a luz se injete,
tal qual a espuma que ao mar nunca regressa.

Traz búzios nos seus pés, botas de luz
e a madrepérola se adensa nos seus braços.
Ela é a deusa do mar de antigos povos.

Perfeitas pernas de salsugem que reluz,
sem cauda de sereia, mas nos traços
trazendo a majestade em cantos novos...

FANTASMAS DE SAL II 

Não que seja realmente a deusa antiga
de quem disseram ter nascido em rubra espuma;
não é Afrodite, do amor a deusa suma,
mas hipocampo tem por seu auriga,

barbatana pontiaguda a sua quadriga;
do carro desce e galga cada ruma,
sem nas areias deixar marca nenhuma;
se amor não traz, veneração obriga.

As ondas verdes se condensam ao redor
e lhe ondulam sobre a pele, mansamente,
veio ordenar e nem busca seduzir;

monarca algum a afetará em seu ardor;
ela domina as dunas, simplesmente,
enquanto avança sem nem sequer sorrir.


FANTASMAS DE SAL III 

Encara o vento e aos poucos se transforma;
seu azul empalidece e faz-se sal,
seu rosto e braços tornados puro cal,
nessa visão que a mente inteira me transtorna

e na brisa se dissolve e perde a forma,
a voar nos ventos esse fantasma ideal,
mas recompõe-se nos fundos do quintal
e novamente de seu azul se adorna.

Ela me chama e cruza minha janela:
“Sou fantasma do sal que trago em mim.”
Lanço-me ao solo, sem nem saber que tinha

escorrido de mim mesmo para ela;
e então me ajoelho e permaneço assim,
em reverência total a tal rainha.

FANTASMAS DE SAL IV 

“Porque não foste a mim, eu venho a ti,”
ela me exproba, coluna de altivez.
“Foges ao berço que toda a vida fez;
Por isso deixo o mar e me acho aqui.”

“Porém, mãe, não é das águas que fugi,”
Protesto inerte, em total desfaçatez.
“Fujo é do Sol, que não me queime a tez,
que a luz de Febo sobre mim não me sorri.”

“Disso bem sei, eis a razão porque aqui estou;
poderia te ordenar, mas vou pedir;
quero que agora sejas meu aedo...”

“Senhora minha, pobre vate eu sou,
fraco o meu dom para outrem seduzir...”
eu balbucio, imerso no meu medo.

FANTASMAS DE SAL V

“Nada tens a temer,” – disse a deidade.
“Sei muito bem que não vales quanto Homero
nem como Hesíodo, mas neste mundo fero
tudo estudei e na maior dificuldade,

“pobre poeta, só achei disponibilidade
em tua alma de pureza e olhar sincero;
poucos recordam como a vida eu gero,
na maresia e nas brisas da saudade...”

“Outros melhores podem-te louvar,
augusta dama, a mãe de todo o sal!...
Quantos comentam a vastidão do mar,

“das tempestades o poderoso mal,
da fúria de Posêidon o ressoar,
das conchas feitas de coral e cal...”

FANTASMAS DE SAL VI

“Mas não me louvam, poeta, não escutas?
Vênus recordam, a que nasceu da espuma
do sangue da serpente e que assim ruma
diretamente dos corações às grutas...

“Também falam de Netuno nas suas lutas,
no canto das sereias, que se esfuma,
na branda brisa marinha que perfuma,
nessas marés que se alteiam em volutas...

“Mas não em mim!  Eu que circundo o mundo!
Eu sou Salácia!...  Sou a mãe de todo o sal,
Sem mim o mundo perderá todo o sabor;

“Domino desde a fonte ao mar profundo
e mesmo habito o chafariz pintado a cal,
a vida eu dou, que vale mais que o amor!...”

FANTASMAS DE SAL VII

“Não obstante, o teu Brasil me desconhece!
A quem ouves mencionar esta Anfitrite,
embora tantos se recordem de Afrodite
e hoje ainda exista quem lhe mande prece?

“Querem que a rede de malícia que ela tece
seja mudada em favor de quem a incite,
como se ordens a qualquer deusa se dite
que nela influência sua oração tivesse!

“Quero de ti que difundas o meu nome,
quero ser reconhecida e o quero já;
até em África me tornaram em orixá,

“a deusa branca que a Umbanda julgar dome,
porém me invocam tão só como Iemanjá:
sinto rancor e o despeito me consome!...

FANTASMAS DE SAL VIII 

“Por isso eu deixo a minha dourada biga,
meus hipocampos me aguardam, impacientes,
e subo à terra com meus pés frementes,
para mostrar que ainda do povo sou a auriga!

“Dos navegantes eu sou senhora antiga,
os marinheiros da Lusitânia meus tementes,
por bem saberem como eram impotentes
quando tormenta suas pobres naus persiga!

“Mas meu nome é Afrodite!  Até os Romanos,
que me chamavam pelo nome de Salácia,
entronizaram esse nome que os Helenos

“aprendido tinham de mim há tantos anos
e me lançavam grinaldas, louro e cássia,
dessas galeras propelidas por seus remos...

FANTASMAS DE SAL IX

“E não percebem as gentes de tua terra,
tantos milhões habitando à beira-mar,
que apenas eu sou senhora do evitar
a inundação, quando a tormenta berra!

“Quando Posêidon decide fazer guerra,
marés lançando em ríspido espumar,
cem trombas d’água rodopiando pelo ar,
por destruir quanto a vaidade encerra!

“Ou sobre as nuvens impele tempestades,
com suas copiosas chuvas insensatas,
para fazer deslizar montes e matas

“sobre suas casas e sobre suas cidades,
sou eu apenas que seu furor modero
e que me lembrem é o mínimo que espero!”

FANTASMAS DE SAL X

“Eis que Posêidon, meu esposo, enfurecido,
se encontra agora contra a humanidade,
que já não lhe reconhece a divindade
e até seu nome também seria esquecido

“se não fosse o tal planeta envaidecido,
que anéis ostenta desde a eternidade,
bailando sem parar sua fatuidade,
bola de gás por gravidade comprimido...

“E se isso não bastasse, a poluição
é lançada diariamente para as praias,
sem com a vida marinha se importarem,

“fazendo agora ainda mais profanação,
das plataformas continentais nas raias,
para mais fundo o mar contaminarem!

FANTASMAS DE SAL XI 

“E ao me encontrar, assim, desiludida
com esses nomes que o imaginar me dá,
Nossa Senhora, Maria ou Iemanjá,
já não me oponho à sua sanha enfurecida!

“porém, recentemente, tanta vida
eu vi desperdiçada, aqui e lá,
tanta miséria, tanta tristeza má,
que minha alma se mostrou compadecida.

“Tenho tua obra com atenção observado,
vejo os deuses meus irmãos que te inspiraram
e sei que podes atender a meu desejo.

“Assim serás o meu poeta amado
e essas tuas mãos que as areias mal tocaram
redigirão esse louvor que tanto almejo!...”

 FANTASMAS DE SAL XII

“Nada prometo, apenas te comando!
Mas se fores fiel, meu doce aedo,
verás que mais que vida te concedo
e a cornucópia da abundância terás quando

“cumprires fielmente este meu mando!”
E como recusar?  Perdido o medo,
meu coração aberto a seu segredo,
novos poemas comporei em sacro bando.

Resposta não esperou.  Só me sorriu,
suas feições de novo brancas como cal,
sua veste azul tão brilhante quanto o giz;

somente encheu-me com o sabor do sal,
desfez-se em flor de espuma e então sumiu
num redemoinho a cruzar meu chafariz!...

FANTASMAS DE SAL XIII

Tenho agora um compromisso com Anfitrite;
de amor não quer que fale, mas de vida,
que assim seu nome difunda e dê guarida
no coração de meu povo e então o agite...

Que a recordar-se dela eu os incite
nos momentos de lazer ou em longa lida,
como a deusa do mar outra vez tida,
que nela pensem, não apenas em Afrodite...

Mas eu bem sei como é difícil tal missão!
Anfitrite é deusa casta e bem vestida,
embora a mãe das sereias e tritões;

e dos banhistas essa vasta multidão
prefere a pele ver, bem mais despida
dessa Afrodite que domina os corações!

FANTASMAS DE SAL XIV

Mesmo assim, insistirei, longe das praias,
dessas desnudas vendo só fotografias,
verão as veste na imodéstia de seus dias,
talvez lembrando no futuro serem feias,

mostrando os méritos nas proporções mais gaias,
da orgulhosa nudez deusas esguias,
para atiçar em tantos homens fantasias,
mas nos desdéns, deusa Afrodite, não me enleias!

Pois não pretendo desprezar, tampouco
essa romana que nos promete o amor;
e se tornar-me o peito num deserto?

Mas a glória de Anfitrite, em canto rouco
proclamarei com todo o meu ardor,
que amor se afasta, mas a vida fica perto!

FANTASMAS DE SAL XV

Em consequência, darei um jeito de incluir
nesses poemas que sei ainda escreverei
o nome de Anfitrite e de seu rei,
para minha vida em plenitude assim fruir,

da cornucópia da abundância me nutrir
durante os anos que ainda gozarei;
se tiver vida, gotas de amor terei,
versos de amor nas margens a inserir

que me conduzam a abrir mil corações
de quem a vida tratou com amargura,
nas lágrimas de sal que o olhar emite;

e que aquelas que sofreram mil paixões
mas conservam, mesmo assim, toda a ternura,
restauradas possam ser por Anfitrite!...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
Recanto das Letras > Autores > William Lagos



quarta-feira, 27 de setembro de 2017






AQUARELAS NO VENTO E MAIS
18-27/JUL/2017
NOVAS SÉRIES DE WILLIAM LAGOS

SONETOS
AQUARELAS NO VENTO ... ... ... 18/7/17
A CARNE DO VENTO ... ... ... 19/7/17
O NOME DO VENTO ... ... ... 20/7/17
A COR DO VENTO ... ... ... 21/7/17
DOXOLOGIA ... ... ... 22/7/17
MARIPOSA VERMELHA ... ... ... 23/7/17
CRONOMANCIA ... ... ... 24/7/17
OTTAVA RIMA
TRÊS INSETOS ... ... ... 25 JUL 2017
TRÊS BEIJOS ... ... ... 26 JUL 2017
TRÊS CÂNTICOS ... ... ... 27 JUL 2017

AQUARELAS NO VENTO I – 18 JUL 2017

A VIDA É MEGA-SENA, EM QUE APOSTAMOS TODOS,
NADA MAIS DO QUE UM VOLANTE DE ESPERANÇA
NESSE FUTURO EM QUE SE CRÊ DESDE CRIANÇA,
PROSPERIDADE E AMOR SE AGUARDA EM RODOS.

NA MAIOR PARTE DAS VEZES, DE OUTROS MODOS
ESSES SORTEIOS QUE SE ESPERA, NÃO SE ALCANÇA,
MAS PARA ADIANTE O ALMEJAR SE AVANÇA,
TERRA SÓLIDA A SE BUSCAR ALÉM DOS LODOS...

SOMENTE UNS POUCOS DE NÓS SERÃO PREMIADOS,
BEM CAPRICHOSOS SERÃO SORTE E DESTINO;
MESMO SABENDO SER UM MAGRO DESATINO

OS MILHÕES QUE NÃO FOMOS CONTEMPLADOS
AINDA INSISTIMOS EM TAIS IMPOSTOS DISFARÇADOS,
EM GASTOS CERTOS CONTRA INCERTOS ALMEJADOS...

AQUARELAS NO VENTO II

MAS SEM DE FATO SE COMPRAR A LOTERIA,
SEMPRE DA VIDA ESPERAMOS BOA SURPRESA;
O ANO NOVO DE ENTUSIASMO A GENTE PREZA,
PROSPERIDADE A NOS TRAZER GARANTIRIA;

E TANTOS HÁ QUE EMPREENDEM ROMARIA
OU ACENDEM VELAS EM TROCA DE PROMESSA
OU COMPROMISSO COM ORIXÁ QUE NÃO SE ESQUEÇA
OU SUAS PRECES A APARECIDA ESCUTARIA!

CONTUDO É CERTO QUE APENAS O ESFORÇO
DESSES MILHÕES DE PENITENTES INCONTÁVEIS
LHES PODERIA GARANTIR UM RESULTADO,

MAS AO INVÉS DE CURVARMOS NOSSO DORSO,
TODOS REZAMOS POR TAIS IMPONDERÁVEIS,
PESADO O VOO DE UM ESCARAVELHO ALADO!...

AQUARELAS NO VENTO III

QUEM CERTA VEZ JÁ PINTOU COM AQUARELA
NELA NÃO ESPERA QUALQUER POTÊNCIA MÁGICA,
CAUSAR SE PODE A BORRAÇÃO MAIS TRÁGICA
NA BUSCA INÁBIL DE UMA PAISAGEM BELA;

NUNCA ESSA IMAGEM SURGE POR SI SÓ:
VEMOS NO MÁXIMO O RORSCHACH MAIS CASUAL, (*)
NESSE EQUILÍBRIO APENAS CONCEPTUAL,
CASO SE DOBRE O DESENHO SER TER DÓ!
(*) INSTRUMENTOS VISUAIS PARA TESTES DE PERSONALIDADE.

QUEM JÁ PINTOU COM AQUARELA SABE
QUE A COR NÃO VEM DA PONTA DO PINCEL;
HÁ UMA PALETA FEITA DE RODELAS;

MOLHAM-SE AS CERDAS E À UMIDADE CABE
DE UMA PASTILHA ROUBAR UM TOM DE GEL,
QUE GENTILMENTE SE ESPALHA NAS CARTELAS.

AQUARELAS NO VENTO IV

TODA AQUARELA REQUER ÁGUA E PIGMENTO
QUE SE PODE ESPALHAR SOBRE O PAPEL,
TALVEZ AO IMAGINAR DANDO QUARTEL
OU A UM SIMPLES CONTORNO DANDO ALENTO.

AO REQUADRO SE DÁ PREENCHIMENTO
COM DELICADA EMBRASURA DO PINCEL,
GOTA APÓS GOTA, EM TONS DE VINHO E MEL,
SEM PERMITIR DO CONTORNO O PASSAMENTO.

NÃO É, DE FATO, QUALQUER TÉCNICA DIFÍCIL,
REQUER PACIÊNCIA E MAIS CONCENTRAÇÃO,
SEM PRECISAR DE QUE UM SANTO GUIE A MÃO;

DAS PASTILHAS O PIGMENTO É FÍSSIL,
MAS SE AS CERDAS NÃO LAVARMOS COM CUIDADO
DE OUTRA NUANCE TUDO SERÁ CONTAMINADO...

AQUARELAS NO VENTO v

AGORA, PENSE: SE TER TÉCNICA É PRECISO
PARA INSERIR ESSAS FIGURAS NO CARTÃO
(ADOLF HITLER TINHA NISTO BOA MÃO,
MUITAS PAISAGENS PINTOU DE BELO AVISO). (*)

MAS O TRABALHO SÓ SE FAZ EM FUNDO LISO,
ALGO DE SÓLIDO A GARANTIR-LHE A CORREÇÃO;
QUE SE PINTA NO PAPEL, NÃO EM ÁGUA EM JORRO SÃO;
SE ALGUÉM TENTASSE, SÓ CAUSARIA TROÇA E RISO.

MAS E SE ALGUÉM INTENTAR PINTAR NO VENTO?
SERIA A TINTA ESPALHADA EM CEM BORRIFOS
OU SIMPLESMENTE PINGARIA PARA O CHÃO;

PINTAR NO AR SÓ NOS TRARIA UM CONTRATEMPO;
NISTO NÃO EXISTEM MAGIAS NEM FEITIÇOS,
PACIÊNCIA APENAS E MAIS CONCENTRAÇÃO.

AQUARELAS NO VENTO Vi

PORÉM É ISTO O QUE FAZ QUEM SE BASEIA
NAS PROMESSAS PEREGRINAS DA ESPERANÇA;
BORRAR A VIDA É SOMENTE O QUE SE ALCANÇA;
O VENTO ESGARÇA A MAIS FORMOSA TEIA.

NA REALIDADE, O DESTINO A GENTE TRANÇA;
SEM PRENDER FOGO, COISA ALGUMA SE INCENDEIA,
NADA RESULTA DE INVEJAR A VIDA ALHEIA:
PROMESSA É DÚVIDA EM IRREQUIETA DANÇA!

SÓ COM ESFORÇO É QUE PINTAS AQUARELAS
POR TEU TRABALHO E HABILIDADE DE CONTATOS,
CONTUDO O VENTO NADA PINTA NO TEU COLO,

NEM O ZODÍACO TE CONCEDE BOAS ESTRELAS;
(VOLANTES VOAM – SÃO PÁSSAROS INGRATOS,
MAS QUEM NÃO JOGA É DE TODOS O MAIS TOLO!)

(*) RESTAM CENTENAS DE AQUARELAS DE ADOLF HITLER, PINTADAS COM CUIDADOSO DETALHE DURANTE A DÉCADA DE VINTE E COMPRADAS POR ALGUNS SHILLINGS POR UM AMIGO JUDEU QUE AS REVENDIA COMO CARTÕES POSTAIS... HOJE SE VENDEM AO PREÇO MÉDIO DE 32.000 EUROS.  O EXEMPLO ACIMA, A ÓPERA DE VIENA,  FOI VENDIDO RECENTEMENTE EM UM LEILÃO REALIZADO EM SHROPSHIRE, INGLATERRA, POR CEM MIL EUROS...

A CARNE DO VENTO I – 19 JUL 2017

Qual de um nenê o sorriso sedutor,
teus olhos brilham quando me sorriem;
pupila e íris que contra mim se aliem,
formando um halo de hierático esplendor!

Dos lábios o Risório é um constritor
mas não explica porque bebês nos riem,
que a proteção a seu redor mais criem,
sua inermidade a conquistar o nosso amor.

E disto brotam os humanos sentimentos.
Caso as crianças já nascessem caminhando,
iguais a zebras, gazela ou cavalinhos,

a indiferença dominaria os julgamentos,
simples instintos tão somente dominando,
brutal o sexo, sem busca de carinhos!...

A CARNE DO VENTO II

Assim teus olhos de estranho reluzir
vêm alígeros sentimentos despertar
de uma afeição de teor mais singular:
de certo modo é a conquista do nutrir.

Instinto leva os pequerruchos a sorrir,
materno peito dando a vida em seu sugar;
essa afeição não produz o seu chorar,
mas todo o incômodo alcança redimir...

É uma armadilha de antanho, uma artimanha,
desenvolvida pelo multissecular
acerto e tentativa.  Igual hipótese se assanha

nos olhos da mulher que se deseja,
muito mais que para um simples copular,
qual artifício de uma aranha que nos beija!

A CARNE DO VENTO III

O bem-querer nos tolda o julgamento,
mas nada traz em si de malfazejo,
pois nada existe de material no beijo,
é apenas toque em alheio tegumento,

mas que desperta um singular alento,
corrente existencial para o desejo,
que mal se pode conservar após o ensejo,
num cantochão de comprometimento.

Fica na mente a visão de algum sorriso,
só na memória do beijo o paladar,
velho e intangível ciclone milenar,

um turbilhão no ar, sutil aviso,
que teu carinho é vento em seu soprar,
até o momento da chama se apagar.

A CARNE DO VENTO III

Pois um sorriso, afinal, esse arreganho,
nada mais é que um vento em carnação,
dessa boquinha rosa a expiração,
para a instintiva captação de um ganho.

Cada mulher possui no olhar um lanho
bem afiado até obter cooperação;
e esse brilho faz de nós cooptação
e nos envolve de lágrimas em banho.

E que é o olhar, senão carne de vento,
alguma coisa totalmente imaterial,
que a mente assalta em bote feminil

até que o olhar nos capture, desatento,
em nossa alma a esculpir, feito buril,
zéfiro esquivo do concreto espiritual.

O NOME DO VENTO I – 20 JUL 2017

Se algum dia ainda escrever outra canção,
terá de ser visível totalmente;
não grafarei qualquer balada indiferente,
mas ditirambo para olhar e coração.

Porque nunca é permanente esta noção,
que canção dura e acaba simplesmente,
o vento a perturbar em tom nascente,
para acalmar-se em jazigo de ocasião.

Cada som gera um círculo concêntrico,
algo intocável, não mais que vibração,
contra os tímpanos causando excitação,

mas sem deixar de si nada de excêntrico,
toda canção em cadência transitória,
só recordada no ventre da memória.

O NOME DO VENTO II

O vento insufla apenas por contraste
provocado pelo frio e por calor;
por violento que seja e zumbidor,
não capturas o vento que tocaste;

não existe uma armadilha que lhe baste;
pode fazer algo girar com seu vigor
e para trás te empurrar em igual fragor,
por vibrações a ti mesmo deslocaste;

que ruge o vento qual a duração da vida,
humano sopro que brota do pulmão,
mas quem consegue captar respiração?

Mesmo que seja num balão contida,
já se tornou calmaria em umidade,
não mais que vento como toda a humanidade.

O NOME DO VENTO III

Somente o vento em nós demonstra vida,
embora o efeito possa haver de um fole
quando se move um corpo e nos console
por breve instante uma ilusão querida.

É só energia em tal suflar contida:
calor agita as moléculas que bole,
mas não existe quem a vida enrole,
sua vibração ao cessar faz-se perdida.

Porque o nome do vento é Abstração,
forte e potente quando encontra obstrução,
mas diluído quando é livre o movimento

e o próprio vento que exalo é uma ilusão,
não mais do que o girar de um catavento
enquanto bolhas me percorrem o coração.

A COR DO VENTO I – 21 JUL 2017

Mesmo que nisto não creias, em teu coração estou
E por onde quer que vás, lá me acharei contigo.
De alegria a partilhar, compartilhando teu perigo,
Perdure o canto embora só até quando terminou.

Perdura o verso entanto até o ponto em que acabou
E vida só terá ao conservar-se em abrigo
No teu olhar até o sepulcro quente e antigo
Dentro da mente, se nela o verbo germinou.

Mas como o vento, um soneto é uma semente,
Composta apenas por intangível vibração,
Mas que radículas espalha no fragor do coração.

E no teu cérebro circunvolui e brota contente
Depois que um dia lhe emprestaste luz e cor,
Num inefável turbilhonar que é quase amor.

A COR DO VENTO II

Caso a algum destes meus versos deste vida,
Foi desse parto que umbilical ressuscitaste
E a redenção das letras mortas provocaste,
No vento inerme tua coloração contida.

Dizem que o vento é a soprar força incontida,
Mas é ar apenas sem consciência que agitaste,
É em teus ouvidos que a agitação vibraste:
Não é o vento que ali vibra, mas tua ermida,

Quando o acolheste, mesmo involuntariamente.
Não é o ar que zune, somente a tua audição,
Porque é em ti mesma que provocas vibração.

Se houver silêncio, ainda teu sangue vibra quente,
Um som que escutas como o troar de uma montanha
Nesses momentos em que tuas cocleias lanha!...

A COR DO VENTO III

Assim o vento encontra em ti coloração,
Em dependência de tua exclusiva reação;
Ouvidos podes cobrir mesmo com tua mão,
A cor do vento a branca rosa em brotação

Ou podes dar-lhe em tuas entranhas a vazão,
Na temerária maneira de visceral ação,
Um ciclone a te zumbir no coração,
Do sangue inteiro a roubar vermelhidão.

Também o verso é tão somente uma ilusão,
Simples cabide de cem letras de arcabouço,
Um rosa pálido se não o deixas penetrar;

Mas ao revesti-lo com tua púrpura emoção,
Vento de versos a rondar num calabouço,
Tuas mais secretas ilusões a despertar.

A COR DO VENTO IV

Mesmo que penses apagar essa memória,
Murmura ainda nos cilindros teus neurais,
Que esquecimentos nunca são totais,
Gravaste os versos de forma peremptória!

Mesmo o Alzheimer de abrasão inglória,
Faculdades a apagar intelectuais,
Afastado pode ser por eventuais
Estímulos elétricos e toda a história

Por algum tempo será viva e colorida,
Não mais um vento solitário e gris
E assim a estrofe que tua emoção intuiu

Bem lá no fundo da aquarela está inserida
E essas mensagens que redigir te quis
Serão revistas por quem já um dia as viu.

DOXOLOGIA I – 22 JUL 2017

Que ninguém seja tão doido como eu sou
é um sincero desejo que hoje expresso;
a minha doideira serviu-me de começo
e na vereda da poesia me empurrou...

Não creio ser preciso que aonde eu vou
também me sigas.  Nem tampouco peço
que deixes de expressar um real apreço
pela poesia quem igual não endoidou!

Porque caminhos há, bem diferentes
para alcançarem resultados semelhantes,
sem ser preciso dilacerar os próprios ventres;

Dionyso decerto a mim embriagou
e assim O louvo em ditirambos quentes
das circunvoluções que um dia dominou.

DOXOLOGIA II

Há quem escreva por qualquer ato de amor,
com mais frequência por se achar apaixonado;
só os corações têm nas frases aplicado,
oclusa a mente por emoção maior...

Há quem pretenda eclesiástico pendor,
hinos escreve para um santo amado,
em homilias para o povo congregado,
a mente e a alma envolvendo em tal teor.

Há quem componha um verso mais social,
ali afirmando mais que tudo a ideologia,
qualquer que seja a razão deste fanal

e há quem descreva a flor e a natureza,
louvando o sol, o monte e a pradaria,
na instigação de momentos de beleza.

DOXOLOGIA III

Mas eu não faço assim.  Não há motivo
para que escreva nesta vasta proporção,
qualquer coisa me impele à redação
e a mente inteira se expande nesse crivo.

É quando escrevo que mais me sinto vivo
que no conluio dos instantes de paixão,
que no pregão de doutrina ou religião
ou propaganda propalar de ideal altivo.

Isso que eu faço só de dentro brota
e quando não escrevo, me angustio;
a mente eu doo em vascas de agonia,

qual doação de sangue na igual rota,
num sonho esquivo que da mente envio,
quase a esgotar meus neurônios na poesia.

DOXOLOGIA IV

Que ninguém seja tão doído como eu:
que escrever possam apenas por vaidade,
sem desgastar-se por real necessidade,
que a dor não sintam que sempre me mordeu!

Mas como o sangue recupera quem o deu,
também a mente que o sacrifício invade
renova aos poucos sua mentalidade:
após o transe feroz que a acometeu!...

Não obstante, sangue doado com frequência,,
segundo ouvi dizer, forma a tendência
de renovar-se ainda mais do que devia;

e assim preciso doar versos novamente
e tais loucura e dor, tão simplesmente,
forçam estrofes a renovar dia após dia!

Mariposa Vermelha 1 – 23 jul 2017

Tua flor aberta para mim, divina
Mariposa vermelha em seu casulo,
Abrigo púbico em que a mente anulo,
Úmido berço da mais pura sina,

Que diariamente, em ânsia, me assassina,
Opérculo de mel, em que me adulo,
Armadilha de sangue a chamar pulo,
Rede encantada que me prende e ensina,

Camarote do navio que leva ao sonho,
Doce gota recoberta de alcatifa,
Templo vermelho da Afrodite antiga

E que me mantém vivo, quando ponho
A gota de mim mesmo, qual califa
Que as odaliscas no seu peito abriga!

Mariposa Vermelha 2

A sedução da encarnada mariposa,
Semioculta em seu musgo de negror,
É minha sentença de peculiar pendor,
Na tentação constante de minha esposa;

Por que perder-me empós alguma rosa,
Quando a possuo colorada de vigor,
Coberta púrpura de torno constritor,
Tempestuosa a floração de amor ditosa!

Se a mim aceita e desejar demonstra,
Nada mais posso demonstrar que gratidão:
Por que, afinal, se deixa assim regar?

Antes arisca e desterrada lontra,
Hoje acolhida no meu coração,
Qual uma flor de jardim crepuscular!

Mariposa Vermelha 3

Porém negou-se a tecer mais que um casulo,
Sem que a semente se pudesse enraizar;
Única vez deixou-se fecundar
O botão róseo em cujo ardor me anulo!

Para uma nova colheita sempre a adulo,
Mas sempre insiste em contemporizar:
“Ainda é cedo, vamos esperar:
O teu amor com meu amor emulo...”

“Mas outro filho teremos de educar,
Crianças custam bem mais do que fazê-las
E imprevidência em teu querer revelas.”

Só uma lagarta veio as folhas devorar
E a outra pupa que poderia ser brotada
Ficou apenas em seu ovário enclausurada.

CRONOMANCIA I – 24 JUL 2017

Meu sangue é forte e se renova fácil,
feita a sangria negra de meus cantos,
algures sendo azuis como meus prantos
nesse sangue que hemorrajo em verso grácil.

Nessa torrente de plaquetas rútil
seria preciso mesmo que outros tantos
leucócitos nadassem e rubros mantos
das hemácias a tingissem inconsútil.

O verso brota e se renova na medula
e assim se revigora o gastamento
e então constato ser bom que sangre mais

e a transfusão que destes versos pula
se expanda além para maior ressurgimento
de cada sonho em manancial de sais.

CRONOMANCIA II

Catulli Carmina escuto enquanto escrevo,
versos de antanho brunidos em latim,
de Carl Orff um legado para mim,
que em meus ouvidos e coração eu levo,

cujo ritmo estafante imitar devo;
Carmina Burana conhecem mais outros assim
e O Triunfo di Afrodite é meu festim:
poucos conhecem e nele então me cevo!

Ferve a música profana ao meu redor
e me invade qual se fora transfusão;
há dois mil anos ocorreu a hemorragia,

frascos de ouro preservando seu valor,
até o latim ser convertido em alemão,
tal que o Fausto medieval da fantasia...

CRONOMANCIA III

No tempo se acha a magia verdadeira:
as mãos podemos queimar nesse passado,
sem que o sangue seja nelas cozinhado
e desses mortos poetas sigo a esteira...

E agora é Wagner em sua Valquíria alvissareira,
de um outro antanho o nobre cunho reciclado;
trouxe Afrodite sangue em sêmen congelado:
do romantismo meu coração se abeira...

E enquanto a mim cronometrarem as plaquetas,
nessa diuturna e sutil renovação,
leucócitos e hemácias em orgia,

bebo no tempo instilações secretas
em minha medula a surgir revelação
do ardor do tempo feito em profecia!...

ottava rima
três insetos – 25 jul 17

pendor diverso persigo neste agora
qual libélula sobre lábios em botão
que apenas bebe a saliva e vai-se embora
gosto de sonho a fruir no coração
e sobre os lábios palpitando nessa hora
de sua presença tão só recordação,
gênio diáfano de espantos iridiado
ser de cerâmica em vidro quadrialado

talvez em estrofe limitar-me deveria
porém existe em mim essa impulsão
como díptero eu mais pontos percorria
em mim existe já continuação
e em diferentes bocas pousaria
mágoas trazendo de outro coração
que asas diáfanas possui também a mosca
e seu probóscide me suga e nalma enrosca

bem mais cruel seria um gafanhoto
devorando facilmente toda a flor
não lhe bastando da mandrágora o rebroto
lábios cortando qual um soldador
gotas de anil bebendo em perdigoto
saltando verde em sangue multicor
sem o vermelho poder matar-lhe a fome
nesse olhar gris que a própria morte dome

ottava rima
três beijos – 26 jul 17

beijo teus olhos em luz crepuscular
reluzindo nas mágoas de tua noite,
minha própria mágoa assim a fecundar
enquanto a ti persigo nesse afoite
teus olhos fecham e cortam meu sonhar
por que seus cílios têm tão forte açoite?
e contra o nada a dentadura estalo
tua luz mordendo em singular regalo

beijo teus lábios em busca do gargalo
que me conduza à prova do licor
em tua garganta sei haver badalo
que o sino tanja para um sonhador
mas a úvula não tange e então me calo
fica do beijo apenas o sabor
sem que me fira a música da aurora
e nem um dobre de finados nessa hora

emoldurando a ponta do nariz
como num quadro de princesa antiga
em suas narinas abeberar-me quis
que das aletas o perfume me persiga
também nelas se refletem os ardis
rósea esperança em tão mimosa liga
e me penduro sobre a boca aflita
no desvario que nalma me reflita

ottava rima
três cânticos – 27 jul 17

tal qual duas flores percebo os seios dela
botões de sonho sem abotoaduras
pequenas mortes para minha procela
em religioso agitar de investiduras
dois molhes firmes como os de donzela
contra mil vagas a agitar lonjuras
e minha testa deponho em seu regaço
qual infante em ânsia por abraço

e aos poucos desço até da vida a fonte
no meio de seu ventre encontro poço,
umbilical restauração, antiga ponte,
na água salobra o coração remoço,
buscando ainda as faldas de outro monte
de musgo e samambaias em que roço
os mil segredos do corpo da mulher
que só se adorna para mim quando o quiser

e beijo a rosa enfim no seu botão
que em gruta esconder-se tem ofício
nesse invólucro de tríplice emoção
que à vida humana traz bem e malefício
clitóris puro e fonte de paixão
quiçá de hermafrodita seu resquício
algo de Hermes com seus pés alados
dom de Afrodite na herma dos pecados

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
Recanto das Letras > Autores > William Lagos