sábado, 29 de julho de 2017




A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE
(Folclore norte-americano, apud  Richard and Judy Dockrey Young, tradução e versão poética de William Lagos, 22 junho 2017)


(Noiva examinando seu Cofre de Esperança, óleo de Poul Friis Nybo, circa 1900).

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE I

A madeira do cedro é avermelhada
e, de fato, muito forte e resistente;
muito apreciada ela é por toda a gente,
que a utiliza para a mobília mais cuidada;

nos Estados Unidos, uma jovem desposada
costuma ganhar uma arca, em que é frequente
colocar o enxoval que se apresente
para o futuro de sua vida de casada.

Ora, entre eles o costume é bem comum
de referir-se como o “cofre de esperança”
a essa arca que contém seu enxoval,

na intenção de proteger a cada um
desses sonhos que sua memória alcança,
bênção futura para sua vida conjugal!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE II

Quando uma certa jovem se casou,
levou consigo um cofre de esperança
feito de cedro para a sua mudança
ao novo lar que o marido lhe mostrou.

O perfume do cedro, assim julgou,
afastaria as traças sem tardança,
pois até mesmo o mofo não alcança
desenvolver-se no enxoval que se guardou.

É bem provável que você tenha escutado
a expressão “estar enxovalhado”
para indicar um tecido malcheiroso,

após ter sido longo tempo conservado
em prateleira ou gaveta, assim tendo ficado
nele a lembrança de um tempo mais formoso.

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE III

Assim a noiva, de esperança cheia,
com o marido iniciou sua nova vida
e em breve tempo foi criança concebida,
já tricotando casaquinho e cada meia,

para a criança proteger em noite feia,
até tornar-se bem saudável e crescida.
Em seu devido tempo à luz trazida,
na alegria e na emoção que amor rodeia

nasceu um menino, batizado como Will,
do nome William um normal diminutivo,
sua pele sendo branca como o linho,

os seus olhos tão claros como o anil
e sua boca de um vermelho redivivo,
igual que o cedro guardado com carinho.

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE IV

Contudo, mau destino quis a sorte:
sua mãe nunca teve outra criança,
sua saúde oposta à sua esperança
e finalmente, foi levada pela morte...

Seu pai, contudo, era um granjeiro forte,
mas que cuidá-lo sozinho não alcança,
necessitando de certa ajuda mansa
que outra esposa em seu lar aporte...

E desta forma, casou-se novamente,
com uma viúva, que tinha a própria filha,
chamada Marjorie, então com sete anos; (*)
(*) Leia Márjori.

fizera nove Will, recentemente,
e como ocorre muitas vezes nessa trilha,
os dois se amaram, quais verdadeiros manos...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE V

Mas a madrasta jamais gostou dele,
em seu peito um malvado coração;
ante o marido, até fingia devoção,
mas em sua ausência, lhe esfolava a pele!

Por toda a granja às tarefas o compele,
sem lhe dar de descanso uma ocasião,
a recusar-lhe até a alimentação,
sempre que o pai o seu cavalo sele,

para qualquer viagem que empreendia,
quando negócios assim o exigiam,
tratando Will então igual que escravo!

Logo Marjorie seus maus-tratos percebia,
mas os caprichos da mãe não permitiam
que lhe desse sequer de mel um favo!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VI

Certo dia, as maçãs foram colhidas
e Will chegou, do trabalho bem cansado;
em cada galho ele sozinho havia trepado,
tirando as frutas das macieiras produzidas...

Mas as maçãs deveriam ser vendidas,
em breve o pai as levaria até o mercado,
um cesto ou dois em geleia transformado,
não o deixando sequer dar duas mordidas!...

Marjorie tinha ido para a escola
e a madrasta remoia a sua maldade:
“Podes pegar uma delas, bom menino,

“porém comê-las com casca é coisa tola,
de uma faquinha terás necessidade,
vai no cofre uma buscar de gume fino...”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VII

Will, sem nada desconfiar, obedeceu,
mas quando a tampa da arca levantou,
a madrasta, num repente, a abaixou
e a cabeça de Will se desprendeu!...

Alegremente, a madrasta a recolheu,
mas vendo o sangue que no cofre derramou,
de sua loucura num instante despertou:
logo o temor do castigo a surpreendeu!...

Para ocultar seu crime, o transportou
e o corpo ajeitou bem numa cadeira;
a cabeça ela atou com guardanapo!...

Numa das mãos, a faquinha colocou
e a maçã que provocara a sua doideira,
à sua frente colocou dentro de um prato!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE VIII

Dessa maneira, o menino parecia
estar a ponto de a fruta descascar!...
Quando Marjorie fosse da escola retornar,
o perfume das maçãs a tentaria!...

De fato, quando chegou, já lhe pedia:
“Mamãe, uma maçã pode me dar...?”
“Peça a Will depressa lhe cortar
dessa mesma maçã uma fatia!...”

Mas ao pedir um pedaço para o irmão,
parado ele ficou e nada respondeu.
“De olhos abertos seu irmão adormeceu!...”

“Dê-lhe um tapa, para chamar sua atenção!”
Marjorie deu-lhe um tapinha, com amor,
mas viu a cabeça se soltar, em vasto horror!

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE IX

Pobre Marjorie!  Ela pensou haver matado
esse menino a quem amava como irmão!...
Sua mãe olhou-a, a fingir consternação:
“Vou ajudá-la a esconder o seu pecado!...”

“O seu filho fugiu daqui, meu bem-amado,”
disse ao marido – “sem a menor razão,
morar com a tia me afirmou nessa ocasião,
sem lhe pedir permissão nem dar recado!...”

O pai ficou surpreso, pois de fato não queria,
acreditar na descrição de tal ensejo
irmã não tinha e nem a morta irmã possuía!

Mas a seguir, logo na cama adormecia,
a madrasta a distraí-lo com um beijo:
Quem sabe o filho sem demora voltaria...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE X

O pobre Will fora de fato cozinhado
e a madrasta o serviu, sem compaixão;
sem saber disso, o pai louvou a refeição,
ele e a madrasta tendo tudo saboreado!

Um tal jantar Marjorie havia recusado:
“Não tenho fome...” – e foi deitar-se então,
bem quietinha e sem mudar de posição,
até que os dois adormecidos ter notado!...

E assim que em segurança se julgou
reuniu os ossos do irmão e os transportou
do cedro grande nas raízes a enterrar...

Um forte vento começou logo a soprar
e a árvore inteira pólen rubro projetou,
tal qual estando aquele crime a lastimar!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XI

Foi envolvida em nuvem bem vermelha,
igual que estando por incêndio consumida,
a noite inteira nesse encarnado tida,
de cada ramo a projetar nova centelha!...

No amanhecer, quando a luz solar espelha,
sobre seu tronco se abriu uma ferida,
uma avezinha dessa fenda ali surgida,
de ouro e negro rajada igual que abelha!...

Mas após as suas asinha sacudir,
à luz do sol a deixou toda encarnada,
logo a seguir alçando um breve voo!...

Da acácia ao lado seu canto a desferir,
sua canção à voz humana assemelhada:
“É o meu canto de morte que hoje entoo!...”
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XII

Marjorie o canto escutou de sua janela
e ficou batendo palmas de alegria:
que era a alma do irmão ela sabia,
límpido o canto como luz de estrela!...

Já o coração da madrasta se congela:
essa avezinha de bom grado mataria!
Se não pudesse, então a espantaria:
que seu marido não ouvisse essa novela!

Assim tentou matá-la com a vassoura,
porém o pássaro agilmente revoou,
contra o azul do céu um rubro ponto

e o cedro inteiro sacudiu-se nessa hora,
seu pólen todo em sua cabeça derramou,
a madrasta quase cega no confronto!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIII

Já o passarinho voou sobre a floresta
e sobre os campos até chegar à aldeia;
numa oficina, muito negra e feia,
ele pousou, a cantar com ar de festa:
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O ferreiro apareceu, com a mão na testa:
o vermelho contra o negro se incendeia;
o seu semblante de um sorriso se permeia:
“Nunca ouvi música mais bela do que esta!”

“Cante de novo para a minha esposa
e que meus filhos o escutem novamente!”
“Mas o que eu ganho, se cantar de novo?”

“Uma corrente de prata, bem formosa!...”
E após o canto, disse o ferreiro, bem contente:
“Dou-lhe a corrente, como prova de que o louvo!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIV

Voou o pássaro, com a corrente no pescoço
e saiu a percorrer cada telhado,
a alegria a espalhar por todo lado,
até chegar ao sapateiro, em seu retoço...
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O sapateiro já deixara de ser moço
e um par de botas recém havia acabado;
com a canção se demonstrou muito encantado:
“Não quer cantar durante o meu almoço...?”

“Mas o que eu ganho, cantando novamente?”
“As lindas botas que acabo de fazer!...”
Chamou a mulher e os filhos para ouvir

e o passarinho pipilou alegremente
e no final, foi as botas receber,
que em suas patinhas deu um jeito de servir!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XV

Usando as botas e a corrente ainda voou,
cruzando o rio e chegando até o moinho,
cantando alegre por todo o seu caminho
e sobre as pás do moinho então pousou:
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

O moleiro com tais notas se encantou;
seu ariel recém trocara com carinho,
a velha pedra, que tinha um buraquinho
e sobre a qual a mó sempre girou...

“Cante de novo, meu belo passarinho,
Para que escutem meus dez empregados!”
“Mas o que eu ganho, se cantar mais uma vez?”

“A pedra velha, em que pode fazer ninho!
Muita farinha e pó de trigo ainda colados:
terá comida suficiente para um mês!...”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVI

O passarinho cantou de novo, então:
Bateram palmas o moleiro e os empregados
E com trabalho, os dez homens esforçados
A pedra alçaram, meio em troça na ocasião!...

E então notaram, com estupefação,
que seus cento e oitenta quilos bem pesados
pela avezinha foram fácil apanhados,
sem a menor dificuldade – e em confusão

viram sua cabeça penetrar no buraquinho,
a pedra encaixada por cima da corrente
e a seguir revoar bem facilmente!...

A ave mágica retomou o seu caminho
e sobre a granja em que vivera, bem contente,
recomeçou a cantar o seu versinho:
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVII

Sabia Marjorie que era o seu irmão
e correu a recebê-lo, alegremente;
do pescocinho tombou logo a corrente
e a pendurou sobre seu coração!...

Chegou o pai, em grande confusão:
cada patinha se sacudiu, rapidamente,
e o par de botas lhe serviu perfeitamente,
crescendo logo que caíram pelo chão!

Mas a madrasta chegou lá do celeiro,
para ver o que estava acontecendo:
viu o marido com suas botas novas,

o passarinho cantando, bem faceiro,
a correntinha em Marjorie já pendendo
e foi falando, sem se importar com as trovas:
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XVIII

“Mas o que está acontecendo por aqui?”
“O passarinho me deu esta corrente!”
“E as botas novas!” – disse, bem contente
o seu marido: “São as melhores que já vi!”

“Mas e que música é esta que eu ouvi?”
“É o passarinho, a gorjear alegremente!
Para cada um de nós trouxe um presente,
decerto algo também trouxe para ti!...”
        “Mamãe morreu e me deixou sozinho
e ontem minha madrasta me matou;
sem o saber, meu pai me devorou!...
Porém Marjorie, minha única irmãzinha,
meus ossos nas raízes enterrou
e retornei, igual que uma avezinha
para contar o que me aconteceu,
depois que o cedro inteiro me acolheu!”

E a madrasta, na maior desfaçatez,
ignorando as palavras que escutava,
indagou: “O que trouxeste para mim?”

E o passarinho da pedra se desfez,
que a madrasta, a seguir, logo aparava,
numa explosão de sangue carmesim!...

A ARCA DE CEDRO COR DE SANGUE XIX

E no momento em que a malvada pereceu,
o cedro inteiro novamente sacudiu,
seiva vermelha em jorro então caiu
e em manto rubro o passarinho se envolveu!

E pouco a pouco, sem demorar, cresceu;
perdeu as penas e seu bico sumiu,
até que um rosto de menino ali surgiu,
o próprio Will que de novo apareceu!...

Como antes, incólume e saudável,
sem qualquer marca a lhe manchar a pele,
os três reunidos num abraço formidável!...

Mais uma vez o granjeiro se casou,
em fim feliz, que a nossa história sele
e a outra madrasta em gentil mãe se revelou!

Esta história traz elementos reminiscentes de uma tragédia grega, em que os filhos, por vingança, são servidos como refeição ao pai e também de um conto do folclore português, recolhido no Nordeste do Brasil por Sylvio Romero, em que a menina é morta e enterrada, seus cabelos a crescer como capim.



segunda-feira, 17 de julho de 2017






A FLOR DA FLOR – 12-21 JUN 2017
Novas Séries de William Lagos

A FLOR DA FLOR I – 12 JUN 2017

Reclinada, a flor rosada a uma outra flor
contempla, talvez gérbera acarminada;
a flor contempla a flor que está deitada,
o olhar amarelo a flor espia com vigor.

Ou será com desconfiança? Haverá um relator
entre a flora florescente, quanticamente relatada
a função do mal-me-quer para tanta namorada...
Terá essa flor deitada um igual pendor?

Será que vai a cada pétala arrancar,
não mais do que em razão de seu capricho,
para saber se, de fato, alguém a quer?

Uma pétala após outra a retirar,
para lançá-las, descuidada, ao lixo,
em sua florida leviandade de mulher?

A FLOR DA FLOR II

A tenra boca de minha bem-amada
talvez pretenda a essa gérbera beijar;
desse capricho até queria partilhar,
mas é sua flor que seria assim beijada;

quem sabe a flor beija a flor por perfumada,
o doce pólen aspirando sem pensar;
quem sabe em seu pulmão o vá plantar
e de sua flor rebrotar carícia alada?

Se fosse minha essa flor idolatrada,
dela jamais iria as pétalas arrancar,
porém incólumes os seus estames  conservar

e o seu pistilo de textura delicada,
que não pretendo demolir o mal-me-quer,
porém intacta conservar a flor-mulher!...

A FLOR DA FLOR III

Toda mulher traz na carne sete flores,
tendo diversas as funções de seu pendor:
com duas flores ela contempla seu amor;
com a terceira prova e doa seus sabores;

de duas flores seus filhos são senhores,
fonte pura em seiva branca seu vigor;
em gula o amante as prova com calor,
zonas eróticas na promessa dos amores.

A sexta flor sempre o estigma materno,
esse umbílico que a liga à raça inteira,
que já a um poço de mel foi comparado;

mas sua sétima flor é o dote eterno,
quando se abre em festa hospitaleira,
na flor do cio de meu desejo consumado!...

FRATERNIDADE I - WM. LAGOS, 8 MAR 06

Nem sempre nesta vida tão egoísta
os outros nos exploram: ao contrário,
sempre é possível, no mundo multifário
achar quem nos ajude e até que insista

em nos fazer o bem, embora a lista
não seja grande: neste itinerário
que atravessamos, no viver diário,
é mais comum a busca da conquista.

Mas existem amigos tão sinceros,
tão dedicados, verdadeiros anjos,
mentores sérios e cheios de carinho,

que são mais do que amigos: são arcanjos,
a iluminar a senda; e assim espero
que me acompanhes sempre em meu caminho.

FRATERNIDADE II – 13 JUN 17

Minha esperança é que sejam meus sonetos
os mais sinceros dentre todos os amigos
e que ao enfrentar digitalmente mil perigos,
de ti demonstrem-se os amigos mais diletos!

Porque outros “amigos” há, não tão secretos:
essas contas que me aguardam nos abrigos
de minha caixa postal; são mais jazigos
de minha poupança, famintas como insetos...

Pensando bem, fiel amigo sou mais eu
dos que me buscam e me cumprimentam:
sempre com eles reparto algo que é meu;

e assim espero sem esperar – carinho teu,
quando meus versos sobre ti se assentam,
vaga a esperança, mas que nunca se perdeu...

FRATERNIDADE III

Fraternidade igual demonstro pelo gato
e pela cachorrinha Shih-Tzu;
esta não tem pelame cor de anu,
nem tem o Persa um pelo igual de fato...

Muito bonito, mas igualmente é muito chato,
dia e noite meus ouvidos pondo a nu;
provavelmente perturbaria também tu,
miando forte, sem mostrar-te o menor tato...

Já a cachorrinha tem bem pior costume,
vem nos tapetes do banheiro defecar,
decerto achando ser presente o “eu fecal”;

mas que possa me agradar nunca presume,
pois tais presentes nunca vem me apresentar
quando estou perto – sabe estar agindo mal!...

FRATERNIDADE IV

Mas não costumo de qualquer campanha
participar, para apoiar algum alheio
mérito, que as utilizam como um meio
de apregoar pelo mundo a própria manha!...

Mas quando um amigo vem e não se acanha
de me pedir, sem o menor receio,
de minhas posses lhe abrirei o veio:
sempre algo que era meu o amigo ganha!

Nisto não veem qualquer perplexidade;
de que nada necessito se acredita:
somente eu saberei o quanto dói,

quando de amor sentir necessidade,
sem que ninguém se aperceba desta dita
que tão frequente o coração me rói!...
 
SUSPEITAS I -- WM. LAGOS, 8 MAR 06

Se existe algo no mundo em que acredite
É na marcha dos homens: essa constante
Troca de gerações – morte incessante
Que à geração de outras nos incite.

E a cada nascimento, suspeito de um convite
Soando ao meu ouvido: um permanente
Aviso de que a morte bem perto está presente,
Que a juventude coma e que ao medo nos concite

A querer conservar assim sempre criança
Qualquer filha que tivermos: é apenas uma forma,
Afinal, de se fingir que a vida não se esvai,

Que o perpassar perpétuo dos anos não nos trai;
Sem nela perceber que a jovem em que se torna
Nos traz a mais perfeita e última esperança.

SUSPEITAS II – 14 JUN 17

Noto de fato boa razão para suspeita
vendo ao redor tanta substituição;
de minha infância já os rostos não estão
e os que sobraram mostram face contrafeita,

bem diversa daquela ainda sujeita
em minha memória.  Vejo tanta mutação
no ser humano, desde sua iniciação
à luz do mundo até a presente feita.

E quanta gente nos chega e reconhece
sem que a possamos nós reconhecer!
Passadas décadas, parecem mais seus pais...

Perplexidade ao coração me desce:
será que podem meu semblante perceber
ou veem rostos de sua infância em meus sinais?

SUSPEITAS III

A sutileza das mudanças diariamente
já nos afeta ao ver dos filhos o crescer,
sua face antiga aos poucos a esquecer,
substituída pela nova hoje presente;

se por acaso a sua visão de antigamente
nos retornasse em seu mais jovem parecer,
quais seus retratos em gavetas a manter,
qual dessas faces aceitaríamos, realmente?

Talvez nós mesmos em tais filhos a encontrar
características que divisamos nos avós,
hoje ossos descarnados, poeira e pós...

Quem sabe estejam em nós também a vislumbrar
restos de rostos perdidos para o antanho
permeio às rugas que acolhemos em rebanho...

SUSPEITAS IV

Porém suspeito que haja restos dentro dalma
das vidas de milhões de antepassados
e que os meus serão um dia transportados
por descendentes da carne e de minhalma.

Há quem afirme, com voz bastante calma
que nos seus filhos se achem resguardados,
imortalmente em suas vidas carregados
depois que o sêmen em óvulo se embalma.

Até que ponto conservam a memória
os mitocôndrios de antigas gerações,
nessa espiral de vastíssima genética?

E até que ponto se torna obrigatória
essa passagem para as novas ilusões
nos semblantes que perderam a velha estética?

TRAGICOMÉDIA I -- WM. LAGOS, 8 MAR 80

Foi um caso de amor desde o primeiro
Dia em que a viu: paixão inabalável,
Um desvelo tão grande e formidável,
Que enfim a conquistou, num derradeiro

Espasmo de alegria; porém ela
Jamais o amou de fato: era vaidosa,
Queria ser olhada, era orgulhosa
E o espelho lhe dizia que era bela. 

O amor de seu marido não bastava;
Teve mais de um amante, sempre ansiosa
De ver-se desejada, sem sentir igual desejo.

Um dia, ele a encontrou, voluptuosa,
Desnuda em outros braços; e, qual um beijo,
Aos dois matou, para provar que a amava... 

TRAGICOMÉDIA II – 15 junho 2017-07-16

Meu breve enredo de novela mexicana
conseguiu me despertar certo sorriso...
Mas a seguir, tornei-me já indeciso:
há realidade na farsa dessa chama?

Pois quanta gente, através da história humana,
já atravessou um momento assim preciso,
movida por ciúme, violento e sem aviso,
a realizar o que esse drama aqui proclama?

E quanta gente, em seu depoimento,
mulher ou homem, afirmou em seu registro,
sinceridade a demonstrar fisionomia,

“Não foi por ódio que matei nesse momento,
foi por amor (sentimento bem canhestro!)
provando assim o quanto ainda a queria!...”

TRAGICOMÉDIA III

Já não consta como crime o adultério,
nem homossexualismo e nem prostituição,
sempre mutável nossa civilização...
Será isto um benefício ou despautério?

Talvez mesmo o homicídio – e falo a sério –
venha a ser visto com menor perturbação...
Em guerra ou duelos teve justificação
e se praticam, em algum oculto eremitério,

lutas de sangue, igual que gladiadores.
E mesmo as falsas, em qualquer televisão,
do faroeste às atuais modalidades

de lutas mais ferozes veem seus subscritores.
Para que arenas?  Se os celulares já nos dão
perfeito acesso a quaisquer atrocidades!...

TRAGICOMÉDIA IV

Sem que se queira bancar o moralista,
os costumes se relaxam, um a um
e pouco a pouco não se julga mais nenhum,
mesmo que em fálico ou sádico consista.

E um crime passional, sem que se insista,
foi raramente condenado por algum,
que não foi vítima de tal crime comum
e nem se enquadre na linha feminista!...

Quando essa gente clamará “feminicídio”,
sem se importar com o amante assassinado...
Que seja a morte por adultério condenada

muito mais que a de um simples homicídio,
tal romantismo, por mais que equivocado,
alvo ferino dessa multidão alçada!...
 
INEPTNESS -- WM. LAGOS, MAR 8 '06

Saw you tonight but for a flitting,
Forlorn vision, just like a dream;
After so many days, it would seem
You lived no more than in the meeting

Of shadow and substance I often had
To you spoken about, but a moment
Endeavored by love and sentiment,
Dressed by hope and by delusion clad.

And then you just turned to the way
Your life you took toward an elsewhere
To which appears I shall never belong.

Instead of embracing you and hold you strong,
I wronged myself: why should I walk away
From where I knew my heart still were?

SALTEADORES I – 9 mar 06

enfim estes sonetos estão chegando perto,
tal qual uma presença em plena solidão
a bafejar-me a nuca, os meses que lá vão
voltando de assombrar-me, em sonho bem desperto...

os pensamentos todos de meu penar grafados
estão chegando perto e sinto inquietação,
tal homem que já fui, tal homem meu irmão,
viesse de mansinho dos anos já passados.

e entrasse na minha mente, querendo arrebatar-me,
matreiro e sem piedade, em ato de traição,
os dias em que espero feliz ser em segredo.

os velhos meus poemas eu sinto aproximar-me,
chegarem muito perto; e assim, eu tenho medo
de em versos mais recentes magoar meu coração!...

SALTEADORES II – 16 JUN 17

A antiga sorte escala-me a muralha,
transposto o fosso sem dificuldade,
dispensada a levadiça em realidade,
sobre os merlões longa corda já se espalha

e por entre as ameias já se entalha
a multidão que me provém da mocidade;
hoje eu teria a maior dificuldade
de escalar meu coração por essa calha!

Bem certamente, não poderia invadir,
fosse por versos ou por força muscular
o meu passado, com o máximo de afinco;

e nestes dias, somente posso perquirir
qual seu sentido e como completar
vozes de antanho em seu passar a limpo.

SALTEADORES III

Que ninguém julgue me faltar inspiração
por versos novos a redigir completamente;
foi um dever que me impus, intermitente,
quando pensei em apagar a redação

daquelas pastas de antiga produção,
entre os emails enleados, vagamente,
tantas estrofes de pungir impermanente,
que nem lembrava de sua digitação.

Mas quando quis tais textos apagar,
reconheci ter tais versos enviado,
por ânsia de conquista ou por vaidade,

antigos anos podendo neles revelar,
revolvidos das entranhas do passado,
talvez por bem, talvez por iniquidade!

SALTEADORES IV

Contudo é certo que senti, nessa ocasião,
que era minhalma a tomada nesse assalto,
que a fortaleza assolada em tal ressalto
era o escrínio de meu próprio coração!...

E se eu queria demonstrar a produção
de quando amor em mim cantava alto,
o resultado demonstrou-se bem mais falto:
granjear não consegui dali admiração.

Mas ao contrário, explodiu cerebração,
dando margem a irresistível turbilhão,
que foi transcrito na década seguinte;

houve de fato em mim penetração
e foi meu peito, por efeito desse acinte,
única vítima inerme da invasão!...

O Legado dos Fantasmas 1 – 17 jun 17

Haver subido nos ombros de gigantes
Já afirmaram artistas e cientistas
E assim é a vida: ao longo das conquistas
Os descendentes se tornam triunfantes.

Da Revolução Industrial sem os instantes
Não surgiriam das invenções as listas,
Não haveria do progresso as pistas:
Vapor apenas!  Resultados tão brilhantes!

Sem a invenção da imprensa, nossa cultura
Continuaria eternamente limitada:
Gutenberg e Mergenthaler, dois gigantes

Que nos trouxeram à moderna conjuntura,
Do mesmo modo que a chaleira levantada
Levou a Watt e às maquinárias incessantes!

O Legado dos Fantasmas 2

Tal como Stevenson revolucionou o transporte,
Leeuwenhoek transformou a biologia,
Enquanto a lupa para Hooke permitia
Que a célula descobrisse em seu aporte.

Mas sem as lentes de Galileu tal sorte
Ao bom botânico não se concederia,
Sem a invenção do óleo jamais haveria
Da Renascença a pintura em grande porte!

Sem a criação da escrita musical
Jamais Bach nos seria conhecido
E sem este a nossa música erudita.

Sem as vacinas de Jenner, afinal,
Pasteur jamais teria desenvolvido
A microbiologia – para nós hoje bendita!

O Legado dos Fantasmas 3

Mais ainda, sem o húngaro Semmelweiss,
Também Pasteur não criaria a assepsia;
Sem Einstein e Niels Bohr não haveria
Neste presente as conquistas espaciais.

E assim por diante.  Em todas as demais
Artes e ciências sempre se basearia
Cada conquista nos alicerces de outro dia,
Construídos por gigantes fantasmais...

Não obstante, percebe-se a tendência
De que todas as maiores invenções
Que as veredas desbravaram igualmente,

Mostraram em pontos variados sua potência,
Sem entre eles haver conexões...
O que provoca tais avanços, realmente?

O Legado dos Fantasmas 4

Para os que creem, é a mão de Deus na história,
Que o Santíssimo Espírito manifesta,
Mais do que a simples ação da humana gesta,
A agir sobre nós, preemptória!...

Ou o terreno se prepara para a glória ,
Erguido sobre os ombros, sobre a testa
Dos ancestrais, que no porvir se encesta,
Sobre os pósteros a afirmar-se, peremptória!...

Sempre existiram os homens de exceção,
Também mulheres, porem mais raramente,
Voltadas mais à gestação potente

De seus rebentos para a nova geração,
Enquanto o homem só vê a imortalidade
Nesses dotes que transmite à humanidade!

O Legado dos Fantasmas 5 

E o que seria das leis, em nossos dias,
Sem os alicerces lançados por romanos
Ou sem a jurisprudência que legamos
Nas novas línguas com que as manifestarias?

E de igual modo, quem abriu as nossas vias,
Em cada atual cidade dos humanos,
Ordenadas, na real, por soberanos,
Mas para os passos do povo serventias?

Talvez até anões fossem os antigos operários,
Mas do conjunto em configuração
Em gigantescas concentrações urbanas

E das antigas igrejas nos sacrários,
Nem de templários nem de maçons a ação
Mas dos milhões cuja memória nem reclamas!

O Legado dos Fantasmas 6 

Bem diziam os helenos, no passado,
Que foram cíclopes a erigir as suas muralhas!
A si mesmo atribuindo quaisquer falhas,
Esses gigantes em grupo concentrado,

Ao qual pertence cada qual antepassado,
Um por um a nos legar as suas migalhas,
Que por mais que as desprezes, não espalhas,
Foi muito sólido o que nos foi legado!

Em mim descubro a total contribuição
Sobre meus versos dos fantasmas ambulantes:
Na noosfera de Chardin moram gigantes,

Sem a mim mesmo conceder atribuição
De quanto flui por minhas mãos constantes:
Nada mais que o rebrotar de suas sementes!

EM LUZ ENLOUQUECIDA I – 18 JUN 17

Na verdade, a Catedral de Barcelona
É muito mais barroca que art-nouveau:
Não se indifere à obra de Galdó:
Ou se repugna ou de prazer nos toma.

Em meu caso, a admiração me doma,
Na infinitude de formatos que doou,
No imaginar irrefreado que voou
Sobre o fúlgido esplendor dessa redoma.

Está incompleta, como toda a catedral
Assim ficou por muitas gerações
Nos espantosos monumentos medievais.

Bem mais que um ponto de adoração real,
Sendo o usufruto de vastas multidões
Suas vidas curtas, mas suas obras imortais.

EM LUZ ENLOUQUECIDA II

Esses castelos e abadias erigidos
Não pertenciam senão a grão-senhores,
As prefeituras a prefeitos ditadores,
Cortado o orgulho de operários tão sofridos.

Já os salões pelas guildas construídos
Só pertenciam a artesãos e mercadores,
Estes apenas a gozar de seus pendores,
Do povo a massa tão só dos excluídos.

Só as catedrais a todos pertenciam,
Em missa e festas ali todos afluíam,
E mesmo havendo locais privilegiados,

Cada aprendiz e até mendigo penetrava
E seu orgulho em partilhar manifestava,
Pois mesmo em pé, ali se achavam abrigados!

EM LUZ ENLOUQUECIDA III

Assim se explicam edifícios tão imensos
Nessas minúsculas cidades medievais
E a luz enlouquecida dos vitrais
Cobrindo os rostos com arco-íris tão intensos!

Também os maias ergueram templos densos,
Essas pirâmides de degraus equatoriais,
Por entre as selvas esquecidas por demais,
Por séculos alijadas de outros censos.

O que encontramos da Babilônia antiga
Ou em Nínive ou nos páramos do Egito,
Ou em Zimbabwe, que foi de Opar a viga? (*)
(*) Inspirada a Burroughs, em seus livros de Tarzan.

Apenas templos e castelos, não as casas
Da pobre gente que os ergueu com tanto agito,
Para depois jazer em covas rasas!...

EM LUZ ENLOUQUECIDA IV

Hoje em dia, no aumento da descrença,
As catedrais não se enchem facilmente,
Melhores casas tem o povo no presente
E os edifícios, em sua ascensão imensa,

Escondem catedrais de forma tensa,
Novas funções assumindo em permanente
Visitação para turismo do descrente,
As excursões vêm ali marcar presença...

E mesmo o Vaticano é mais museu,
Acotovelam-se visitantes na Sistina,
Com banderilhas os guias as conduzem.

Dos Aubussons cada face o rosto meu
Acompanhava, um movimento que fascina
E enlouquecidas, mil comendas me reluzem!

FANTASMAS PERSEGUIDOS I – 19 JUN 2017

Memórias, às vezes, se trancam no passado,
do mesmo modo que o faz unha encravada;
sem passagem lateral ser escavada
já não se alcança conhecimento ali buscado.

Vi o recordar ser a um joguinho comparado
em que bolinha de metal é balançada
até enfiar-se em sua caçamba preparada,
só com paciência a se obter tal resultado!...

É que há outros orifícios ao redor
de igual tamanho a tal calibre seu
e muitas vezes penetra ali a bolinha...

E retirá-la dali é bem pior
que colocá-la no lugar que pertenceu,
gastando o tempo de verdadeira ladainha!...

FANTASMAS PERSEGUIDOS II

Assim ocorre com a lembrança errada:
bem se percebe não ser a que se quer,
pensa-se em “concha” sem lembrar “colher”
e fica assim a recordação travada!...

A cada vez que a memória é ativada
e já “na ponta da língua” se disser,
volta a palavra “concha”, em bel-prazer,
sem que a “colher” consiga ser lembrada!...

Bem mais difícil que uma palavra escusa,
que foi guardada durante muito tempo,
não havendo dela precisão de ser usada,

até que se abra a comporta de uma eclusa
e o termo surja sem mais contratempo,
qual de uma rede neural desativada!...

FANTASMAS PERSEGUIDOS III

Muito guardamos em tenebrosos escaninhos,
poeira cobrindo já teias de aranha,
fatos ou frases olvidados por patranha,
ao enveredarmos por novéis caminhos...

Sempre é mais fácil aos termos comezinhos
recordar, seja por bem ou artimanha,
se um artifício mnemônico se assanha,
talvez um código ou a ativar termos vizinhos.

E se aprendermos qualquer palavra nova,
antes que encontre o seu lugar de escol,
bom é com várias coisas associá-la...

Anastasia, por exemplo, se comprova,
essa “Descida ao Hades” qual farol,
se a “anestesia” soubermos compará-la!...

FANTASMAS PERSEGUIDOS IV

Mas as palavras esquecidas são fantasmas,
afogados em mil células vermelhas,
nas hemácias com que nutres e aparelhas
essa tua mente, quando não te pasmas...

Mais por efeito das plaquetas em esquemas,
recordação coagulada em mentes velhas,
depois que novas lembranças ali espelhas,
elas recobrem as feridas de outros temas...

Teus fantasmas do passado ali se ocultam,
até inusitada consulta persegui-los;
é de supor que ainda prefiram descansar!

Mas quando as insistências mais se avultam,
podes no fundo de suas tumbas atingi-los,
para a memória, finalmente, destrancar!...

Ao Som das Ocarinas 1 – 20 jun 2017-07-17

Nosso amor explodiu como tumores,
na mesma cor do vento que nos cerca,
no mesmo adubo que a carne nos esterca,
o sangue nosso que alimenta mil temores
o sol e a cor que a vida toda abarca,
óvulo e sêmen em miríades de amores,
desilusão e ideal iguais nos estertores,
o ferro em brasa que o destino marca!...

Doce amargura do ácido infortúnio,
o ressaibo do azul da inquietação,
como a pérola fragrante do degredo,
um sabor perfumado em plenilúnio,
revestindo de argentina imprecação
todas as penas cumpridas em segredo!

Ao Som das Ocarinas 2

Na sombra do silêncio, eu te suspiro
e a cada expiração, respiro um pouco
esse exalar de ti, em sonho rouco,
com que meu coração eu próprio firo;
e no silêncio da noite em que me viro
para teu lado e nutro o sonho louco
de te gritar “alarme!” ao ouvido mouco,
no incêndio desse amor que em torno giro.

Dormindo de meu lado, essa aliança
bem mais profunda que teu anel no dedo,
bem mais perpétua que do ventre o anel,
nesse descanso em sentinela de confiança,
enquanto ainda vigio, em meu segredo,
o agridoce sabor a recordar desse teu mel...

Ao Som das Ocarinas 3

Ao silvo do suspiro, eu te segredo
mil palavras  de amor, em vasto véu,
recoberto de mudez o inteiro céu
de meu palato, minha língua no degredo;
e no bafo de meus sonhos, eu te cedo
vapores de ilusão, soltos ao léu,
nessa esperança vã, quebrado arpéu
de tua própria ilusão em estranho credo

de que os fisgues no ar e os faças teus
e que seja a iridescência desses sonhos
um polo de atração para o teu beijo,
quando os ideais que professas forem meus
nesse abandono total dos mais medonhos
temores tolos interpostos ao desejo!...

NA ÁGUA DOS POSSÍVEIS I – 21 JUN 2017

Em sulco do topázio eu te atormento,
com tantos versos que jamais tu lês;
são os sulcos de meu ventre que não vês,
veredas verdes de meu sentimento,

sulcos gravados por meu ressentimento,
versos envio, porém sei que não crês
nessa sangria que se abre mês a mês,
são de minha vida o próprio filamento.

Tu nem me escutas, em meiga indiferença
e eu permaneço nesse amor que dói,
quando escorre cada verso e me corrói,

pela acidez progressiva da descrença
de que algum dia me renoves teu ardor,
na luz mortiça de um antigo amor.

NA ÁGUA DOS POSSÍVEIS II

O por-do-sol de hoje foi ao norte
e não ao leste, como sempre sói,
em tons de rosa um novo céu constrói,
vago presságio de uma estranha sorte.

Minha sina, ano após ano, a vida mói
e se acumulam, em inexorável porte
os meses no passado, duplo corte,
que o porvir desgasta quanto à vida rói.

Na incompreensão das nuvens desse Sol,
recamado de um laranja impressionista,
do norte ao longe até que atinge a vista,

enquanto para o leste, tão só um caracol
de tons ainda anilados persistia,
tal qual se a Terra enviesada giraria...

NA ÁGUA DOS POSSÍVEIS III

E sobre a amêndoa do beijo, ergo meu canto,
pistache em molhes, erguido à beira-mar,
flor de aveleira exposta ao mesmo esgar
que essa umidade que exsurge de meu pranto.

Amor é um tal delírio, em nada santo,
que cada alma almeja conquistar,
bem mais que imploro apenas o tomar
desse teu corpo em derradeiro encanto.

Esse amor vasto, pura prenda cristalina,
em que minha mente se perde e peregrina,
sobre a amêndoa redonda de tal beijo;

amor que tudo envolve, a lamparina
a que me lanço, queimando-me no ensejo
em que te entregues, por fim, ao meu desejo!


William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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