quinta-feira, 25 de novembro de 2010

BOLHAS DE SABÃO


BOLHAS DE SABÃO I

Eu gostaria que meu coração,
na busca pelo arco-íris de beleza,
na conquista das nuvens, com certeza,
se transformasse em bolha de sabão,

soprada assim, pela respiração
de um hálito gentil, em sua pureza,
todo o ar contido, com delicadeza,     
seria doçura de infantil noção;

sobre as asas do vento voaria,
rutilante, fragrante, multicor,
tão leve quanto o vento em permanência,

até que, em breve, a bolha explodiria
o seu ar interior, num só fulgor,
a se fundir no céu, em vaga essência...

BOLHAS DE SABÃO II

Se for pensado bem, não é, afinal,
o que transcorre mesmo em nossas vidas?
alguém nos assoprou, nas incontidas
vagas do vento, em vôo matinal...

A Terra inteira, tigela do irreal,
as tempestades a soprar, contidas
num silvo poderoso, imensas lidas
em cada tromba d'água sideral!...

E quem nos diz, se ao topo dos ciclones,
não se formam outras bolhas de sabão?
Que na luz desse esfuziante turbilhão

novas estrelas, miríades de clones,
não se achem assim em criação,
tais como o brilho das lavas de um vulcão?

BOLHAS DE SABÃO III

A cada impulso o vento mais borbulha
e se transforma em vidas em botão:
são gotas brancas as bolhas de paixão,
como as sementes guardadas numa tulha;

bolhas de neve, que a emoção debulha:
em cada cerejeira há uma canção,
nessas pétalas que leva o turbilhão
e que os caminhos, num carpete, entulha;

somos todos assim, gotas de vento,
milhões de vidas brancas que se perdem,
apenas bolhas em estouro iridescente;

voamos em suave movimento,
até explodirem os sonhos que se herdem,
numa película de lúcida semente.

BOLHAS DE SABÃO IV

Pois toda vida humana é apenas bolha,
que, às vezes, só refulge num instante
e então se embota, pouco interessante,
para servir de luz que o sol escolha;

de outras vezes, enverdece feito folha,
reflete a flor e o fruto mais fragrante,
grande o bastante para ser mirante,
do vento e chuva que seu filtro molha;

mas todas têm destino semelhante:
as pequenas duram mais, sendo modestas,
que o fulgor das que expandem nessas festas,

levando-as a implodir, nesse extasiante
frescor de alma, que lhes revela a carga:
brilho fugaz, que num luzir se alarga!...

BOLHAS DE SABÃO V

A obra inteira humana é semelhante:
uma bolha que cresce, lentamente,
ou que se expande num fragor luzente,
até ocupar um trono triunfante.

Mas termina a expansão desse semblante
e igreja e império, arte ou meramente
uma explosão demográfica frequente
sempre reflui, passado o seu instante.

É apenas vaivém de outra maré:
a bolha cresce e encolhe qual luar;
a bolha aumenta e acaba num estouro;

a bolha se definha e perde a fé,
ou se reduz a umidade, em luz sem par,
gota implodida numa bolha de ouro.

BOLHAS DE SABÃO VI

Mesmo assim, eu queria ser a bolha
a iluminar os céus, breve fulgor,
pequena estrela, doce como o amor,
apenas a regar mais uma folha,

nesse livro da vida, sem que escolha,
por um momento, volume ou seu valor:
aumenta a íris a cada resplendor
e estanca a morte sem que a vida encolha;

nessa leve ablução, toda a energia,
aprimorada pela distropia,
se esparze como gotas de luar...

E assim eu quero ser: nessa harmonia,
por toda a atmosfera me espalhar
qual uma lágrima que brota em cada olhar...

BOLHAS DE SABÃO VII

Se eu me tornar em bolha de sabão,
que seja inteiramente o conteúdo
que, com fina película, eu escudo,
o resultado de tua expiração.

Eu flutuarei ao redor da inspiração
que me concede o bafo em que me iludo:
nada direi: serei arco-íris mudo,
de teu hálito somente a difração.

Parece pouco, sim, é quase nada,
mas prender em meu corpo o teu respiro,
por mais me trame um sonho passageiro,

é abstração da alma iluminada,
pois só ao redor de ti inteiro giro,
até o momento do instante derradeiro.

BOLHAS DE SABÃO VIII

Também a Terra é bolha de sabão,
assoprada por cachimbo de gigante:
o sopro dos vulcões é a delirante
massa gasosa de tal respiração.

Outros planetas, na mesma gestação,
foram soprados ao sabor do instante,
são bolhas de sabão, concomitante
o surgimento do esférico condão.

Uma bolha já estourou, além de Marte,
e antes de Júpiter, pequenos fragmentos,
nas gotas de asteróides numerosos;

também cometas surgiram desta arte,
gerados pelos céus, em mil portentos,
novéis arco-íris em nuance esplendorosos. 

BOLHAS DE SABÃO IX

De um só cadinho nasceu minha geração:
iridescentes gotas assopradas,
na atmosfera social amarfanhadas,
pelos caprichos da antiga promoção.

Houve bolhas ovais, bolhas quadradas,
todas brotando da mesma exalação,
gotas em cruz, em espingarda, em vão,
pelos ventos sociais reprojetadas.

Mas houve novas brisas de entremeio:
as pobres bolhas perderam direção,
atoleimadas como nuvens mortas...

Recalcitrantes bolhas em retortas,
cuja esperança mortalmente veio,
como bolhas de ar no coração...

BOLHAS DE SABÃO X

Bolhas de sangue brotando da paisagem
marcada outrora por purpurações
cardinalícias, impuras ilusões
dessas bolhas de linfa em pespontagem...

Bolhas de lava brilham dos vulcões,
determinadas desde a prima aragem
a demarcar, em cinza malandragem,
os óvulos perpétuos das canções...

São essas bolhas, suores feitos pedra,
brotando pelas goelas pubescentes
que um novo mundo alvitram de estridor,

basalto rubronegro, em que só medra
o cardo multicor de espinholentos
fetiches escarlates de esplendor.

BOLHAS DE SABÃO XI

Bolhas de suor brotando de meu rosto,
irradiadas pelos dedos do poente,
pequenos sóis tais gotas, no iminente
esgotar de minha mágoa e meu desgosto,

bolhas de cor e ardor, bolhas de mosto,
irisadas à luz do sol nascente,
bolhas benditas, bolhas de minha mente,
a pelejar na toada e sonho posto...

Essas luas que na testa se incendeiam,
mil estrelas de anil ao sol do sul,
mil outras almas a escorrer-se em rios,

que o corpo inteiro de bolhas me permeiam,
na igual levitação de um dia azul:
bolhas da morte em incontáveis fios...

BOLHAS DE SABÃO XII

A vida é essa menina caprichosa
que nos segura na ponta de um cordão:
preso no fio se encontra só um balão,
bolha de gás, flutuando, melindrosa,

Não nos convém seja a vida cor-de-rosa:
tal arbusto traz de espinhos profusão;
ao colher uma rosa, o coração
pode estourar, por ser bolha gasosa.

Muito melhor é o azul do firmamento --
ou ser galhos, folhas secas, mesmo pó,
que não nos possa conduzir a uma explosão;

Mas a vida, em seu volúvel sentimento,
nos abandona num instante só:
basta que abra os dedos de sua mão!...

BOLHAS DE SABÃO XIII

E quando a vida decide abrir a mão,
rompido o fio de prata, para aonde,
em que nuvem ou estrela é que se esconde,
inteiro ou rebentado, o meu balão?

Para onde irá, quiçá, a expiração,
qual será o firmamento que então sonde
o gás desta minha bolha, qual o aonde,
em que se perca tal perspiração?

Se rebentar a película, teu ar
se espalhará em chuva seminal
e eu ficarei pendurado e sem ter dono;

mas se esse gás na bolha conservar,
será um amor egoísta e sem final:
bolha e sabão no abraço do abandono...

BOLHAS DE SABÃO XIV

No baraço do fio desses balões,
no simples sopro do vapor carbônico,
as multicores bolhas do canônico,
gregoriano coral dos corações,

se retorcem nos céus, em multidões,
presas de leve, apenas, catatônico
o cordão tenso em salmodia harmônico,
harpas eólias no jogo das monsões;

rodopiam no céu, bolhas de seda,
no tegumento da maior finura,
plena a constância a seu total perjúrio;

no zarzuelar do vento, a bolha é leda,
cortinas de balões, na imensa altura,
enovelados em bolhas de murmúrio.

BOLHAS DE SABÃO XV

São estas bolhas de vidro e de passado,
bolhas de areia, bolhas de ampulheta,
bolhas do vinho mais puro na galheta,
bolhas de ossos em crânio transpassado,

são estas bolhas de carne, lado a lado,
explodindo no crescendo dessa meta,
no leite do sabão, estranha teta,
que cria bolhas num pilão rachado...

Minhas bolhas de sabão são mil quimeras:
sonhos inúteis reluzindo a esmo...
Não obstante, eu quero ser a bolha

que brotou de teus lábios, par de feras,
nessa tocaia que provoco eu mesmo,
bolha de âmbar na ponta de uma folha...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A M O R D E C Â M A R A

Ciclo de Sonetos alusivo a Compositores

William Lagos [2006]




AMOR DE CÂMARA I

Sou auditivo: a música me atrai
imensamente; e me prende a atenção,
a ponto tal, que mesmo na emoção
de um beijo de amor é o som que me distrai

E sigo a melodia em todos seus compassos,
a orquestração, figuras, a harmonia...
É meu primeiro amor...  A nostalgia
faz-me até esquecer de quem nos braços

eu tenha no momento.  E o sexo
é diluído no gozo da elegia,
torna-se palha arrastada pela melgar... (*)

É no silêncio que o amor encontra nexo...
Quem mais que tu assim me induziria a
fazer amor ao som de Lorde Elgar...?

                        (*) Melgar é um instrumento agrícola utilizado para arrastar palha.) 

AMOR DE CÂMARA II

Amor, eu te busquei intensamente.
Foste, acima de tudo, um dom presente,
em cada verso meu, em cada ponto
que breve conduziu-me ao desaponto.

Por nunca te possuir, embora a alma,
internamente, em tresloucada calma,
pusesse ardentemente a teu serviço:
meu peito renascido, a mente e o viço,.

totalmente inclinados para ti.
Mas foi obra de um dia, tão somente;
sorriste uma só vez, nesse inclemente

ardor, que não sentiste qual senti.
E agora te esqueci, por mais que chames...
Que estou fazendo amor ao som de Brahms.

AMOR DE CÂMARA III

Cantando te encontrei e fiz meus versos;
também fizeste os teus, inda que poucos.
Os meus foram suaves, foram roucos,
foram altivos, humildes, nos diversos

concatenares de amor inesperado;
paralelismos de amor subcutâneo;
transmigrações de ardor tão subitâneo,
quanto é funesto o amor avassalado.

E assim me vejo em música envolvido.
Quando te abraço é como uma canção,
que, em melodia estranha, poucos ouvem.

Meu corpo inteiro faz-se diluído...
E até parece que dissolve o coração
fazer amor ao som de Van Beethoven...

AMOR DE CÂMARA IV

A melodia foi meu amor primeiro.
Depois veio a poesia, de iludido.
Ou, realmente, meu coração ferido
poderia transportar-se, por inteiro,

ao propalar da arte requerido.
Mas encontrei teu abraço derradeiro,
fui teu escravo e a música, ligeiro,
abandonei, mas sempre condoído.

Que nesse orgasmo eu gero a mim de novo,
imerso assim nas garras da ilusão,
pois nesse amplexo, eu sinto-me infiel.

E é por isso que procuro, num renovo,
para não desfatiar meu coração,
fazer amor aos acordes de Ravel...

 AMOR DE CÂMARA V

O que eu desejo, aquilo que mais busco
é alguém que não somente me compreenda,
mas que caminhe pela mesma senda
e que meu braço ampare ao lusco-fusco.

Alguém que pense em mim com mais carinho
do que até hoje tive.   Amor estranho
que me faça sentir, como de antanho,
ser meu cajado e a luz no meu caminho...

Porque aquilo que busco, eu não perdi,
e até o que não buscava, consegui,
embora seja muito mais o quanto quero...

Não é um amor comum, que assim espero.
Anseio um grande ardor, que então me ensine
A amor fazer... ao som de Bononcini...

AMOR DE CÂMARA VI

Os homens se combatem, fazem guerras,
ao passo que as mulheres, por vaidade,
competem mutuamente, sem piedade,
umas e outros por épocas e terras...

Mas quando o homem combate com a mulher,
uma derrota ao outro; e o outro vence,
nessa junção dos corpos, que convence
ser das batalhas a que mais se quer...

Quando teu corpo noutro se emaranha:
uma vitória em que jamais se ganha,
uma derrota em que jamais se perde...

Que a adversária então nos acompanha,
no mesmo galardão que enfim se herde:
fazer amor com a música de Verdi.

AMOR DE CÂMARA VII

Bate forte essa música e entorpece
e durmo e só desperto ao dia seguinte.
Queria que meu sonho então se desse:
sensual o sono que o sonho teu me pinte.

Queria que Morfeu trouxesse, alado,
o sonho bom que tive: e foi contigo;
e que igual sonho tivesses tu comigo:
quisesses despertar e ver-me ao lado.

Que fosse tudo novo nesse sonho.
Que fosses meu ideal e eu fosse o teu,
por entre as ondas que no sonho espumam.

Que fosse um sonho límpido e risonho.
Que nos fundíssemos em cristais de breu,
para fazer amor ao som de Schumann...

AMOR DE CÂMARA VIII

Fecha a janela durante a tempestade,
palpitante dos dias que anjos voam,
falando mudos das noites que se escoam,
enquanto acorda, presa da saudade

de seu amor antigo e já afastado:
amor que foi de lâmia e feiticeira,
amor que foi de fada alvissareira,
amor de um coração semi-cerrado...

Mas para mim que abrir essa janela,
de par em par, sem hesitar, quisesse
e eu lhe entregasse o meu desejo atroz,

de que me pertencesse, toda ela,
e que inteira e pronta já estivesse
a amor fazer, ao som de Berlioz... 

AMOR DE CÂMARA IX

O vento sopra agudo e a voz do sino
se espalha, em tom plangente, na alvorada.
E eu mal dormi, não me conduz a nada
esse tinir dolente em meu destino...

O que eu escuto são apenas sons da noite:
um trem ao longe, um galo, uma zoada
de pássaros despertos...  A revoada
das luzes da cidade, em claro açoite...

Mas no instante em que tomo entre meus braços
um corpo cálido de mulher amada
e derramo meus olhos em seus traços,

tudo demuda em dulcíssima alvorada:
o vento canta e brando o sino tine,
fazendo amor aos acordes de Puccini.

AMOR DE CÂMARA X

Amor pequeno e raro, amor distante,
Amor de ária singela, orquestração
eventual de cavatina, sem brilhante,
a reluzir tão só no coração...

Amor de pobre, amor bem pequenino,
que apenas de relance satisfaz...
E após deixa um ressaibo, um travo fino,
dramático em sua dor, sem trazer paz...

Amor assim, baseado em melodia,
na pureza da voz, rouca elegia,
que o peito alegra, em tal desesperança...

Amor de longe, enfim, que mal se alcança,
Amor de carnaval, amor confete,
fazendo amor ao som de Donizetti...

AMOR DE CÂMARA XI 

Eu nem me esforço por teu amor concreto.
Abstrata, és mais real.   Posso forjar-te
segundo a síntese de meu ideal secreto.
Enquanto a substância, ao contemplar-te,

Se escapa a tal prazer sob as pupilas...
E, no entretanto, quando enfim te abraço
E nesse teu ardor, por mim cintilas,
Teu dom carnal preenche todo o espaço...

Como endorfinas então o meu marasmo!
Tal como a música, teu corpo me consola,
Durante os dias bons e os dias maus...

Pois me renovo em ti, em tal orgasmo:
Sempre é um antídoto, nesta vida tola,
Fazer amor com a música de Strauss...

AMOR DE CÂMARA XII [thanks, Nevin!...] (*)

Teus beijos, para mim, são como pérolas
ensandecidas no fado dos desejos...
São colares de preces, esse beijos,
intercalados de ausência, como férulas...

Que me azorragam e me deixam pálido,
inconsequente, embora em vezo permanente.
Teus beijos são sonidos, são fremente
cintilação de carne, nesse inválido

fulgor.  Que em tais momentos, feitos loucos,
todo o concreto se transmuta em ilusões,
por mais me agrade teus gemidos escutar...

Misturados aos meus.   Suspiros roucos,
que para mim ressoam quais canções,
fazendo amor com Schubert no ar...

(*)  Ethelbert Nevin utilizou a metáfora “horas de paixão são como pérolas” em The Rosary, portanto, dou o crédito aqui pela idéia desencadeante.)

AMOR DE CÂMARA XIII

Eu sinto a solidão como a palpável
parede de sorrisos de indulgência
com que encaro o mundo, essa paciência
de longanimidade imponderável.

E vejo o mundo assim, tal qual miragem
de demiurgo talvez...  Em que me insiro
como observador...  Em que me inspiro
ao descrever dos outros a passagem.

Nesse favor com que a mim mesmo acorro
e beijo a própria imagem, que me beija,
nos permanentes amores transitórios...

Que então me levam a buscar certo socorro
nos braços de quem sei que me deseja,
amor fazendo aos acordes de Praetorius...

AMOR DE CÂMARA XIV

Sempre que estou contigo, dentro em mim
ressoa o acorde de estranha melodia.
Por vezes, nem recorda uma harmonia...
Por vezes sei, quanto eu escuto assim...

É como se teu rosto, se teus olhos
criassem pentagramas em meu ser.
Ao te beijar, escuto a reviver
sabor de onda a esbater escolhos...

E retorno tal música a escutar

e nela encontro singular abrigo,
porque sinto de ti tremenda fome...

Ela me leva ao passado e a pensar
só no prazer de, quando estou contigo,
fazer amor ao som desse Albinoni...

AMOR DE CÂMARA XV

Já na minha idade, o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora.
Desejos permanecem, muito embora
a ânsia em consumá-los, seja aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto.
Quero algo mais suntuoso e assim discreto:
que seja humilde e vasto de orgulhoso...

Meu anseio transitório e duradouro...
Amor de barro envolto em fólio de ouro...
Fama obscura e estética assimétrica...

Austera e sibarítica, em serpentina ética...
Pois enquanto faço amor, meu coração se move,
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov...

AMOR DE CÂMARA XV  [2ª Versão]

Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso

este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,

austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.

AMOR DE CÂMARA XVI

O sangue de minhas veias negro deve
ter-se tornado, senão estes poemas
sairiam em vermelho e os dilemas
seriam como aqueles que se escreve

após rasgar as veias, pouco antes
que dessangrasse mente e coração,
que se esvaziasse o fígado; e o pulmão
já não mais se insuflasse, como dantes.

E, todavia, é meiga hemorragia,
que não se estanca em mim, nem coagula...
Embora os versos diluam a embolia,

são derramados para alheia gula...
E neles minha ternura se define,
fazendo amor aos acordes de Bellini.

AMOR DE CÂMARA XVII

A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,

por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...

E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...

E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...

AMOR DE CÂMARA XVIII

Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...

E eu! Que sempre escravo fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...

E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...

No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...

AMOR DE CÂMARA XIX

Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter e ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta

do próprio ideal de si por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.

São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...

São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor...  enquanto Wagner se escuta...

AMOR DE CÂMARA XX

Ela girava e esbatia o sapateado,
nesse flamenco, em sabor de andaluzia,
estremecendo o tampo do tablado
e o eco das guitarras se envolvia...

Ele girava em volutas o capeado,
morto o touro em sangrenta aleivosia,
guampas e espada em combate simulado
que, finalmente, em sangue se escorria...

Num mar dolente de maromba e ventarolas,
que olés furiosos aos ares emancipam,
paixão feroz que assola e jamais falha...

Na dança o brilho de muitas castanholas,
nessa tourada em que chifres não destripam,
           fazendo amor com a música de Falla. 

AMOR DE CÂMARA XXI

Renova o mundo e sempre fica o mesmo:
as gerações se iludem, ao pensarem
poder costumes novos adotarem,
por mais que o façam aleatório e a esmo...

Pois tudo que hoje é feito, já se faz,
por séculos sem conta e nada novo
existe sob o sol... Todo renovo
imita apenas, em sua vez fugaz,

outro modelo oriundo do passado.
Trocam-se as roupas, é nova a orquestração,
mas se repetem as músicas e a paixão.

E é assim que nos deitamos, lado a lado,
em catadupas que crescem e se esvaem,
fazendo amor ao som de Bernstein...

AMOR DE CÂMARA XV  [2ª Versão]

Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso

este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,

austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.