sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A M O R D E C Â M A R A

Ciclo de Sonetos alusivo a Compositores

William Lagos [2006]




AMOR DE CÂMARA I

Sou auditivo: a música me atrai
imensamente; e me prende a atenção,
a ponto tal, que mesmo na emoção
de um beijo de amor é o som que me distrai

E sigo a melodia em todos seus compassos,
a orquestração, figuras, a harmonia...
É meu primeiro amor...  A nostalgia
faz-me até esquecer de quem nos braços

eu tenha no momento.  E o sexo
é diluído no gozo da elegia,
torna-se palha arrastada pela melgar... (*)

É no silêncio que o amor encontra nexo...
Quem mais que tu assim me induziria a
fazer amor ao som de Lorde Elgar...?

                        (*) Melgar é um instrumento agrícola utilizado para arrastar palha.) 

AMOR DE CÂMARA II

Amor, eu te busquei intensamente.
Foste, acima de tudo, um dom presente,
em cada verso meu, em cada ponto
que breve conduziu-me ao desaponto.

Por nunca te possuir, embora a alma,
internamente, em tresloucada calma,
pusesse ardentemente a teu serviço:
meu peito renascido, a mente e o viço,.

totalmente inclinados para ti.
Mas foi obra de um dia, tão somente;
sorriste uma só vez, nesse inclemente

ardor, que não sentiste qual senti.
E agora te esqueci, por mais que chames...
Que estou fazendo amor ao som de Brahms.

AMOR DE CÂMARA III

Cantando te encontrei e fiz meus versos;
também fizeste os teus, inda que poucos.
Os meus foram suaves, foram roucos,
foram altivos, humildes, nos diversos

concatenares de amor inesperado;
paralelismos de amor subcutâneo;
transmigrações de ardor tão subitâneo,
quanto é funesto o amor avassalado.

E assim me vejo em música envolvido.
Quando te abraço é como uma canção,
que, em melodia estranha, poucos ouvem.

Meu corpo inteiro faz-se diluído...
E até parece que dissolve o coração
fazer amor ao som de Van Beethoven...

AMOR DE CÂMARA IV

A melodia foi meu amor primeiro.
Depois veio a poesia, de iludido.
Ou, realmente, meu coração ferido
poderia transportar-se, por inteiro,

ao propalar da arte requerido.
Mas encontrei teu abraço derradeiro,
fui teu escravo e a música, ligeiro,
abandonei, mas sempre condoído.

Que nesse orgasmo eu gero a mim de novo,
imerso assim nas garras da ilusão,
pois nesse amplexo, eu sinto-me infiel.

E é por isso que procuro, num renovo,
para não desfatiar meu coração,
fazer amor aos acordes de Ravel...

 AMOR DE CÂMARA V

O que eu desejo, aquilo que mais busco
é alguém que não somente me compreenda,
mas que caminhe pela mesma senda
e que meu braço ampare ao lusco-fusco.

Alguém que pense em mim com mais carinho
do que até hoje tive.   Amor estranho
que me faça sentir, como de antanho,
ser meu cajado e a luz no meu caminho...

Porque aquilo que busco, eu não perdi,
e até o que não buscava, consegui,
embora seja muito mais o quanto quero...

Não é um amor comum, que assim espero.
Anseio um grande ardor, que então me ensine
A amor fazer... ao som de Bononcini...

AMOR DE CÂMARA VI

Os homens se combatem, fazem guerras,
ao passo que as mulheres, por vaidade,
competem mutuamente, sem piedade,
umas e outros por épocas e terras...

Mas quando o homem combate com a mulher,
uma derrota ao outro; e o outro vence,
nessa junção dos corpos, que convence
ser das batalhas a que mais se quer...

Quando teu corpo noutro se emaranha:
uma vitória em que jamais se ganha,
uma derrota em que jamais se perde...

Que a adversária então nos acompanha,
no mesmo galardão que enfim se herde:
fazer amor com a música de Verdi.

AMOR DE CÂMARA VII

Bate forte essa música e entorpece
e durmo e só desperto ao dia seguinte.
Queria que meu sonho então se desse:
sensual o sono que o sonho teu me pinte.

Queria que Morfeu trouxesse, alado,
o sonho bom que tive: e foi contigo;
e que igual sonho tivesses tu comigo:
quisesses despertar e ver-me ao lado.

Que fosse tudo novo nesse sonho.
Que fosses meu ideal e eu fosse o teu,
por entre as ondas que no sonho espumam.

Que fosse um sonho límpido e risonho.
Que nos fundíssemos em cristais de breu,
para fazer amor ao som de Schumann...

AMOR DE CÂMARA VIII

Fecha a janela durante a tempestade,
palpitante dos dias que anjos voam,
falando mudos das noites que se escoam,
enquanto acorda, presa da saudade

de seu amor antigo e já afastado:
amor que foi de lâmia e feiticeira,
amor que foi de fada alvissareira,
amor de um coração semi-cerrado...

Mas para mim que abrir essa janela,
de par em par, sem hesitar, quisesse
e eu lhe entregasse o meu desejo atroz,

de que me pertencesse, toda ela,
e que inteira e pronta já estivesse
a amor fazer, ao som de Berlioz... 

AMOR DE CÂMARA IX

O vento sopra agudo e a voz do sino
se espalha, em tom plangente, na alvorada.
E eu mal dormi, não me conduz a nada
esse tinir dolente em meu destino...

O que eu escuto são apenas sons da noite:
um trem ao longe, um galo, uma zoada
de pássaros despertos...  A revoada
das luzes da cidade, em claro açoite...

Mas no instante em que tomo entre meus braços
um corpo cálido de mulher amada
e derramo meus olhos em seus traços,

tudo demuda em dulcíssima alvorada:
o vento canta e brando o sino tine,
fazendo amor aos acordes de Puccini.

AMOR DE CÂMARA X

Amor pequeno e raro, amor distante,
Amor de ária singela, orquestração
eventual de cavatina, sem brilhante,
a reluzir tão só no coração...

Amor de pobre, amor bem pequenino,
que apenas de relance satisfaz...
E após deixa um ressaibo, um travo fino,
dramático em sua dor, sem trazer paz...

Amor assim, baseado em melodia,
na pureza da voz, rouca elegia,
que o peito alegra, em tal desesperança...

Amor de longe, enfim, que mal se alcança,
Amor de carnaval, amor confete,
fazendo amor ao som de Donizetti...

AMOR DE CÂMARA XI 

Eu nem me esforço por teu amor concreto.
Abstrata, és mais real.   Posso forjar-te
segundo a síntese de meu ideal secreto.
Enquanto a substância, ao contemplar-te,

Se escapa a tal prazer sob as pupilas...
E, no entretanto, quando enfim te abraço
E nesse teu ardor, por mim cintilas,
Teu dom carnal preenche todo o espaço...

Como endorfinas então o meu marasmo!
Tal como a música, teu corpo me consola,
Durante os dias bons e os dias maus...

Pois me renovo em ti, em tal orgasmo:
Sempre é um antídoto, nesta vida tola,
Fazer amor com a música de Strauss...

AMOR DE CÂMARA XII [thanks, Nevin!...] (*)

Teus beijos, para mim, são como pérolas
ensandecidas no fado dos desejos...
São colares de preces, esse beijos,
intercalados de ausência, como férulas...

Que me azorragam e me deixam pálido,
inconsequente, embora em vezo permanente.
Teus beijos são sonidos, são fremente
cintilação de carne, nesse inválido

fulgor.  Que em tais momentos, feitos loucos,
todo o concreto se transmuta em ilusões,
por mais me agrade teus gemidos escutar...

Misturados aos meus.   Suspiros roucos,
que para mim ressoam quais canções,
fazendo amor com Schubert no ar...

(*)  Ethelbert Nevin utilizou a metáfora “horas de paixão são como pérolas” em The Rosary, portanto, dou o crédito aqui pela idéia desencadeante.)

AMOR DE CÂMARA XIII

Eu sinto a solidão como a palpável
parede de sorrisos de indulgência
com que encaro o mundo, essa paciência
de longanimidade imponderável.

E vejo o mundo assim, tal qual miragem
de demiurgo talvez...  Em que me insiro
como observador...  Em que me inspiro
ao descrever dos outros a passagem.

Nesse favor com que a mim mesmo acorro
e beijo a própria imagem, que me beija,
nos permanentes amores transitórios...

Que então me levam a buscar certo socorro
nos braços de quem sei que me deseja,
amor fazendo aos acordes de Praetorius...

AMOR DE CÂMARA XIV

Sempre que estou contigo, dentro em mim
ressoa o acorde de estranha melodia.
Por vezes, nem recorda uma harmonia...
Por vezes sei, quanto eu escuto assim...

É como se teu rosto, se teus olhos
criassem pentagramas em meu ser.
Ao te beijar, escuto a reviver
sabor de onda a esbater escolhos...

E retorno tal música a escutar

e nela encontro singular abrigo,
porque sinto de ti tremenda fome...

Ela me leva ao passado e a pensar
só no prazer de, quando estou contigo,
fazer amor ao som desse Albinoni...

AMOR DE CÂMARA XV

Já na minha idade, o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora.
Desejos permanecem, muito embora
a ânsia em consumá-los, seja aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto.
Quero algo mais suntuoso e assim discreto:
que seja humilde e vasto de orgulhoso...

Meu anseio transitório e duradouro...
Amor de barro envolto em fólio de ouro...
Fama obscura e estética assimétrica...

Austera e sibarítica, em serpentina ética...
Pois enquanto faço amor, meu coração se move,
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov...

AMOR DE CÂMARA XV  [2ª Versão]

Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso

este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,

austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.

AMOR DE CÂMARA XVI

O sangue de minhas veias negro deve
ter-se tornado, senão estes poemas
sairiam em vermelho e os dilemas
seriam como aqueles que se escreve

após rasgar as veias, pouco antes
que dessangrasse mente e coração,
que se esvaziasse o fígado; e o pulmão
já não mais se insuflasse, como dantes.

E, todavia, é meiga hemorragia,
que não se estanca em mim, nem coagula...
Embora os versos diluam a embolia,

são derramados para alheia gula...
E neles minha ternura se define,
fazendo amor aos acordes de Bellini.

AMOR DE CÂMARA XVII

A vida é assim: as coisas nos coriscam
inesperadamente e sem espera.
O destino é armadilha, feito fera,
de olhos ambarinos, que nos piscam,

por detrás da folhagem, uma esfera
a que somos atraídos, que confiscam
as nossas intenções e os planos riscam,
nessa emoção que um só sorriso gera...

E se esvai, num momento, todo o tédio,
na sedução carmesim do desatino,
sem perceber a que ponto nos apele...

E assim me sinto preso, sem remédio,
porque percebo, então, ser meu destino
fazer amor com as Sonatas de Corelli...

AMOR DE CÂMARA XVIII

Ela chegou, como quem nada queria:
foi-se insinuando no meu coração,
sem sequer me sugerir exaltação,
mas tão somente versos e poesia...

E eu! Que sempre escravo fui da melodia
e, em pentagramas, grafava uma ilusão,
medíocre, talvez, e sem paixão,
mas que agradar aos outros conseguia...

E assim causou-me total devastação,
tão poderoso esse olhar, que me reluz
e minhas pretensões fácil combate...

No mais estranho poder da sedução,
que dominou-me enfim... e me conduz
a amor fazer com sonatas de Scarlatti...

AMOR DE CÂMARA XIX

Há momentos de entrega absoluta,
em que se abre mão do ter e ser,
na estranha mescla de dor e de prazer,
que é a abdicação mais resoluta

do próprio ideal de si por quem se escuta
a murmurar, talvez sem perceber,
promessas que preferiria receber,
no archote e cálice que a paixão transmuta.

São nessas ocasiões, de som impenetrável,
que se percebe a outrem pertencer,
que nos governa totalmente fé e conduta...

São tais momentos, de ilusão inescrutável,
em que a emoção nos compele a assim fazer
amor...  enquanto Wagner se escuta...

AMOR DE CÂMARA XX

Ela girava e esbatia o sapateado,
nesse flamenco, em sabor de andaluzia,
estremecendo o tampo do tablado
e o eco das guitarras se envolvia...

Ele girava em volutas o capeado,
morto o touro em sangrenta aleivosia,
guampas e espada em combate simulado
que, finalmente, em sangue se escorria...

Num mar dolente de maromba e ventarolas,
que olés furiosos aos ares emancipam,
paixão feroz que assola e jamais falha...

Na dança o brilho de muitas castanholas,
nessa tourada em que chifres não destripam,
           fazendo amor com a música de Falla. 

AMOR DE CÂMARA XXI

Renova o mundo e sempre fica o mesmo:
as gerações se iludem, ao pensarem
poder costumes novos adotarem,
por mais que o façam aleatório e a esmo...

Pois tudo que hoje é feito, já se faz,
por séculos sem conta e nada novo
existe sob o sol... Todo renovo
imita apenas, em sua vez fugaz,

outro modelo oriundo do passado.
Trocam-se as roupas, é nova a orquestração,
mas se repetem as músicas e a paixão.

E é assim que nos deitamos, lado a lado,
em catadupas que crescem e se esvaem,
fazendo amor ao som de Bernstein...

AMOR DE CÂMARA XV  [2ª Versão]

Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita

espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso

este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,

austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.


Um comentário:

  1. Bom dia caro amigo Bill,
    você, incansávelmente, nos brindando com suas obras, para alegria de nossa alma.
    Grande abraço,
    J. Cesar.

    ResponderExcluir