sábado, 30 de outubro de 2010

DELPHOS

DELPHOS I    (01 AGO 79)

ide dizer ao rei que os belos templos ruíram,
que apolo não tem teto, de louros a coroa
não mais é entretecida, o canto não ressoa,
castália já secou e os sons não mais se ouviram.(*)

do oráculo dos sonhos cessou a profecia,
que a pítia é muda e cega e todo o sacerdote
tornou-se em ortodoxo pope e o antigo dote
disperso em olivais, do vinho a melodia,

e o raio fulgurante de luz e nostalgia,
não brilham mais agora, na solidão velada
e a própria imagem fez-se em bloco de azinhavre.

conselho não murmura à multidão vazia,
buscando na paisagem outrora consagrada
a sombra de um cinzel que o coração lhes lavre.

(*) Castália era a fonte cuja água, abençoada por Apolo, inspirava os músicos e os poetas. 

DELPHOS II

agora revelei-me: possuo uma mensagem
que antes eu não tinha, uma visão selvagem
de murta e de azevinho, espelho de coragem,
que à própria exaltação da carne se avizinha.

agora preparei-me: já tenho coração
para nova investida, de tanta exultação,
para a batalha ganha, na mesma agitação
que as veias me decepa e a mente me espezinha.

que a dor não é cadinho: é mero desespero,
é não-conformidade à condição de humano,
que todos nós sentimos no partilhar de elêusis.(*) 

e neste revelar por que não mais espero,
já tudo é permitido e nada de profano
pode fazer o homem, que todos somos deuses.

(*) Elêusis era o santuário em que se celebravam os Mistérios de Apolo, às vezes visitado por outras divindades. 

DELPHOS III

entendam, não entendam, que me importa?
a linguagem é evidente e sem comporta,
o sentimento é novo e não suporta
ser comparado ao velho pensamento.

entendam, não entendam, tanto aporta,
que se critique a imagem que reporta,
que a gráfico transponha quem transporta,
em quentes letras frias meu momento.

entendam, não entendam, nestes versos
que novos querem ser, de tão antigos,
a mesma saga glauca dos perigos

que noutros sonhos houve, tão dispersos,
nos ossos mortos de imortais jazigos,
em carne de palavras reconversos.

DELPHOS IV

ide dizer ao rei que o dom da profecia
não é mais exercido em seu sacrário:
ruiu o templo, exposto está o santuário,
pela ausência do fiel que no deus cria.

hoje só passa a turista fugidia
de uma excursão que recolhe numerário
e leva os viajantes a seu vário
destino, sem de apolo a companhia...

ide dizer ao rei que o próprio olimpo
deixou de ser dos deuses a morada:
foram expulsos por novos sacerdotes,

que o sortilégio foi do monte limpo,
pelo exorcismo da religião ousada
que por círios pascais trocou os archotes.

DELPHOS V

ide dizer ao deus que em mim se manifeste,
que neste mundo incrédulo serei seu mensageiro,
que irei a sua poesia recuperar, certeiro,
na honra e na alegria que seu poder me investe.

ide dizer ao deus que inspiração me empreste
e de suas nove filhas serei o lisonjeiro (*)
amante e defensor, galante cavaleiro,
enquanto nos meus olhos fulgor ainda reste.

ide dizer ao deus que não posso restaurar
os templos derrocados por mácula do tempo,
diverso é o sacrifício que posso dedicar.

ide dizer ao deus do meu devotamento,
que os versos são fumaça em brando contratempo,
que em pira antiga eu lanço, igual que em novo altar.

(*) As nove musas eram filhas de Apolo. 

DELPHOS VI

ide dizer às musas que servo humilde sou,
fumaça de meus versos que pelo céu se evola,
em mil volutas cinza se esvai e desenrola,
mostrando a nove amantes o pago onde eu estou.

ide dizer às musas que o coração lhes dou,
que a pele de minhalma a emoção esfola,
que a mente lhes darei e sei aonde pô-la,
sincero em falsidade, por onde quer que vou.

ide dizer às musas que a voz deste poeta,
que tanto relutou e em si não acredita,
é pura adoração do mundo seu antigo

e que prefere as lendas à vida mais completa,
que em quimeras e sonhos encaminha sua dita
e que à orla de seus mantos irá buscar abrigo.

DELPHOS VII

ide dizer também ao meigo dionyso
que não se trata assim de abandonar sua crença:
é em sua embriaguez que a inspiração se adensa,
se vem do coração e brota em canto liso;

porém que a mente pode, também, quando é preciso,
prestar a apolo culto na atmosfera densa,
do santuário sombrio, dessa caverna infensa
à força da emoção na rocha que então piso.

dizei então ao deus que sou henoteísta
e posso erguer altares por todo o coração,
desde que os não profane com meu próprio desejo

e que, por mim, faculte a nova reconquista
das almas ou das mentes em plena brotação
das flores da poesia ao sopro de seu beijo.

DELPHOS VIII

dizei a dionyso que meu amor selvagem
se entrega diariamente à sua embriaguez,
se hoje sou poeta, foi ele quem me fez,
nos prados e campinas, da vinha sob a aragem.

santuários ele tem, beirando cada margem,
na orla das florestas, em danças de nudez,
em que retorço a alma, em toda a sua dobrez:
dionyso me escolheu, respeita minha coragem.

que à dança dionisíaca altares não se erguem:
a natureza inteira é nave e adoração;
enquanto o verde houver na folha da parreira,

o deus será louvado nas taças que soerguem,
em pura eucaristia e vera comunhão,
levada pelo vinho à saga derradeira.

DELPHOS IX

dizei ao deus brejeiro que apolo é quem precisa
que respeitosos lhe ergam os templos e os altares,
que criem melodias solenes em cantares,
que fechem as paredes ao marulhar da brisa.

que a inspiração de apolo é muito mais concisa,
contida, comedida, em versos regulares,
com precisão marcados, em ímpares e pares,
da clara rigidez que toda a ruga alisa.

porém a inspiração que dobra-me ao formato
somente é limitada ao que as palavras pedem:
se as comportas abrisse, o que então faria?

apolo disciplina, em austero patronato,
mas são de dionyso os jorros que concedem
a multidão de cantos que explode a cada dia.

DELPHOS X

no coração eu mantenho espaço de santuário
para as duas divindades, em templos triunfais,
há colunas e há teto apolíneo em torchais,
mas as veias do vento me assopram tom vário.

meu mundo se abre em louvor multifário:
misturam-se a sombra e os sóis imortais,
há prados e bosques além dos beirais
e as vinhas se enroscam ao redor do sacrário.

que apolo me fica no trono da mente,
porém dionyso, dançando, entra e sai:
não são dois rivais, mas um par sem defeito.

e as filhas de apolo, em fé diferente,
recolhem de mim esse ardor, que se esvai:
os dias me aquecem e, à noite, meu leito.

DELPHOS XI

ide contar ao rei do areópago vazio,
em que não há conversas, calados os filósofos:
por entre pó e escombro, passeiam antropólogos:
e bandos de turistas, em indiferente cio...

ide contar ao rei que a acrópole, em seu brio
é agora frequentada por viciados e sociólogos,
que sentam nos altares, sem cuidar, sacrílegos,
afugentando pallas dos pórticos que espio.

ide contar ao rei que estranhos dominaram,
há dois milênios já, os paços consagrados:
de roma e macedônia, em conversos corações,

mas que ingleses e turcos outra visão mostraram:
os mármores roubaram os lordes invejados
e o partenon tornou-se paiol de munições!...

DELPHOS XII

ide dizer ao deus que atenas não tem rei
e que a novel república tem sina malfadada:
depende das visitas de gente descuidada,
que helênica não é, provinda de outra grei.

ide dizer ao deus que existe nova lei,
num mundo material, apenas consagrado
ao gozo do lazer do bem-aquinhoado,
esse lazer que eu mesmo por certo nem terei.

ide dizer ao deus, que mesmo assim deserto,
um santuário possui dentro em meu coração
e como sacrifício, meu próprio sangue corre.

que abriga as nove musas... e dionyso, é certo;
de abraços com tiqueia, meu cérebro percorre, (*)
lançando a embriaguez da plena inspiração.

(*)  Tiqueia é a deusa grega da sorte, correspondente à Fortuna dos romanos. 


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