sexta-feira, 30 de setembro de 2016



SHIRAZ  (3/11/2010)
Duodecaneto de William Lagos

                                 (TÚMULO DE SAADI, SHIRAZ)

SHIRAZ  I   

Com dedos de renovo, tocarei
de teus olhos nas duas comissuras...
Em tua retina só deixarei as puras
visões do bem que contigo viverei...

As sobrancelhas, de leve, seguirei
e todas as lembranças mais impuras,
toda a imundície, falsidão, agruras,
com dedos de renovo, apagarei.

Depois, eu tangerei as tuas pestanas:
de cada uma, tirarei uma tristeza,
para que aos poucos, sem notar, remoces...

Mas a saudade, em que de mim te irmanas,
eu deixarei, sem destoar de tua beleza,
para que as lágrimas só te escorram doces...

SHIRAZ II

Eu tocarei nas outras comissuras
que demarcam de teus lábios os dois cantos
e delas tirarei marcas de prantos,
as feições a tornar-te menos duras.

Alisarei algumas rugas mais escuras,
que se formaram quais dobras de mantos
das vestes empoeiradas desses santos
que vão buscar em súplicas por curas.

Farei com que se tornem mais suaves
essas marcas da feroz melancolia
com que o tempo sorrateiro te marcou

e tua boca será de vinho as caves,
a tua saliva saborosa da elegia
que em tantos beijos já me embriagou.

SHIRAZ III

De carícias coroarei os teus cabelos,
onde as raízes já se fizeram brancas,
ante a vaidade, com que só as muito francas
dentre as mulheres não demonstram zelos.

Pelo meu toque manso, em cem desvelos,
eu quebrarei do tempo as duras trancas
e a cor devolverei das velhas tranças,
antes que nelas repousassem gelos.

Percorrerei assim cada madeixa,
num gesto leve de pressão sutil,
o crânio massageando com carinho

e a melanina ali meus dedos deixa,
a aquarelar qualquer sinal senil,
enquanto os lábios sorvo de mansinho.

SHIRAZ  IV

Percorrerei tuas rugas bem de leve,
pés de galinha no canto de teus olhos,
sob as pálpebras a rede dos refolhos
em que a vida transmutar fácil se atreve.

E buscarei, com mais um toque breve,
patas de aranha, do nariz escolhos,
correndo para o queixo e santos óleos
ali ungirei, da forma que se deve

depor tiara na cabeça da rainha,
e as fendas encherei, uma por uma,
por um processo de que eu só tenho o segredo,

para a beleza antiga, que foi minha,
retornar a essa pele que perfuma,
com gentileza, a polpa de meus dedos.

SHIRAZ V

Indagarás, talvez, com que poder
de ti eu posso afastar senectude;
bem natural em ti essa atitude,
nessa descrença de todo o humano ser.

Afinal, vazias promessas combater
faz parte da experiência, sem virtude,
quando a memória a teu passado alude,
de tantas falsas a lembrança conceber.

Não obstante, minha promessa é verdadeira,
porque possuo, realmente, tal pendor,
que a muito poucos outros satisfaz;

é inegável que a promessa mais certeira
sempre foi feita no mais sincero amor,
porque, afinal, sou o Mago de Shiraz!...

SHIRAZ VI

Apenas julgas saber esse que sou,
a quem chamas desde sempre pelo nome;
porém minha vida no passado some,
apenas fingi nascer onde hoje estou.

O meu feitiço só aos poucos penetrou
nessa lembrança que o real carcome,
nesse mesmérico poder que assim te dome:
somente eu sei de onde venho e aonde vou.

Recorda apenas que só me conheceste
quando mostrava talvez quarenta anos,
com um passado mais ou menos trágico,

mas meu viver anterior nem percebeste,
envolto nos mil véus dos desenganos:
vim de Shiraz no meu tapete mágico...

SHIRAZ  VII   

E é desse modo que então conseguirei
apagar de tuas feições qualquer estrago;
que o tempo, por sua vez, também é mago,
quando aplica sobre ti maldosa lei.

Porém mago mais potente eu saberei
ser para ti com todo o meu afago;
os passos de tua vida não indago,
salvo no instante em que te vi e então te amei.

Doravante, ao te doar a juventude,
de ti não cobrarei o menor preço,
nem condição impor de grau fortuito;

amor poder comprar ninguém se ilude;
por tal esforço só anelo o teu apreço
e algum amor, se queres dar, seja gratuito...

SHIRAZ VIII

Assim permite que as dobras do pescoço
e aquelas que já espiam sob o queixo,
que com a língua, levemente, eu mexo,
possa apagar, ao me dares teu endosso

que te torne inteiramente o rosto moço,
se bem não penses que da face atual me queixo;
o rosto humano é o oposto a cada seixo:
eles se alisam enquanto o nosso fica grosso.

Mas com beijos a minha mística saliva
fará que a pele se vá aos poucos hidratando:
perde a aspereza a calçada em que se pisa

e assim o meu frescor tua carne ativa,
a pele elástica de novo se tornando,
pelo carinho que o amargor alisa!...

SHIRAZ IX

E a epiderme já marcada de teu colo,
no ardor do Sol e no peso de teus seios,
eu saberei reerguer, sem mais receios,
no movimento de cura com que a enrolo.

Meus punhos são esponjas e, sem dolo,
um linimento saberei passar nos veios,
tua carne lisa perlustrando nos permeios,
enquanto a polpa de meus dedos eu esfolo.

Mas te transmito minhas células perdidas
por estas mãos que murros nunca deram
as suas falanges evitando machucar

e destarte te darei as sobrevidas
conservadas nestes dedos, porque esperam,
desde outras vidas, tua carne acarinhar.

SHIRAZ  X   

Eu te busquei, sei que foste uma odalisca
em meu palácio secular de Baghdad;
amor maior do que esse meu não há,
capaz de transfixar a luz que pisca,

capaz de o tempo transpor numa só risca
da cor do arco-íris, que te encontrou já
na antiga vida em que te amei por lá
e que à vida atual chegar hoje se arrisca.

Só por anseio de ti, é bem verdade,
pois tal coisa não farei por ninguém mais,
a transmitir-te minha imortalidade,

na atual encarnação, que sem piedade,
já pretendeu te macular, como as demais,
na zombaria que intitulou Terceira Idade.

SHIRAZ XI

Descendo assim abaixo de teus seios
teu coração eu rejuvenescerei
e teus pulmões, sem esforço, saberei
limpar dessa fumaça e dos enleios

que aspiraste no engano dos anseios;
também teu fígado e teus rins eu poderei
tornar mais puros e assim renovarei
as tuas entranhas em todos seus permeios.

Dançarei em tuas artérias e abrirei
esses caminhos que o sangue percorria,
veia por veia te desentupirei

e os ligamentos das articulações
restaurarei em idêntica magia,
pernas e braços com todas suas flexões.

SHIRAZ XII

E finalmente, em teus órgãos sexuais
penetrarei nestes termos de minhalma,
as Trompas de Falópio, em fresca palma,
assoprarei com meu canto triunfal!...

Teu útero e os ovários virginais
eu tornarei de novo – assim embalma
a aplicação fantástica da calma,
no restauro das membranas naturais.

Total e inteira te embelezarei,
a mocidade completa a renovar,
assim causando inveja a teu espelho;

e em meu espanto, então perceberei,
que depois de tantas graças te dotar,
a mim mesmo desgastei e fiz-me velho!...

William Lagos – lhwltg@alternet.com.br
Tradutor e Poeta – wltradutorepoeta@gmail.com
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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quarta-feira, 28 de setembro de 2016


NOVAS HISTÓRIAS DE TERRIR
Sonetos de William Lagos – 4-8/set/2016
(Folclore norte-americano, recolhido por Richard e Judy Dockrey Young)

O Caixão Ambulante ... ... ... 04 set 16
O Coelhinho e a Cobra ... ... ... 05 set 16
O Túmulo da Bruxa ... ... ... 06 set 16
O Lobo Branco ... ... ... 07 set 16
Nenês Trocados (Changelings) ... 8 set 16

                                       (MAUSOLÉU DA FAMÍLIA CHASE, BARBADOS)

O CAIXÃO AMBULANTE I – 04 SET 2016

Há muito tempo um rapazinho fazendeiro
que muito ouvira falar sobre a cidade,
tomou a estrada, escapando sem maldade,
por pretendia retornar ligeiro!...

Logo chegou na cidade, bem faceiro,
olhando as lojas de grande variedade,
parques e igrejas de espiritualidade...
Chegada a noite, foi contar o seu dinheiro

e logo percebeu, bem claramente,
que não tinha para hotel o suficiente...
Tentou dormir no banco de uma praça,

mas chegou logo um guarda prepotente
que lhe ordenou levantar logo dali:
“A lei proíbe que se durma aqui!...”

Pensou então em dormir nalguma igreja,
mas disse o Padre ser a hora de fechar;
em algum jardim não poderia se enfiar:
latiam cachorros onde quer que os veja!

Já estava tarde e sua testa a geada beija
e viu que o guarda ainda o estava a observar,
assim fingiu para sua casa caminhar,
até que certa ideia se lhe enseja:

viu pela frente um muro bem comprido
e percebeu que era um cemitério;
como não era esse rapaz supersticioso,

logo o portão pular havia conseguido
e sem pensar que fosse um despautério,
entrou em jazigo, nem um pouco temeroso...

Era pequena capelinha o seu abrigo
e distraiu-se, os nomes lendo ali gravados,
porém seus pés continuaram estirados:
era pequeno demais o tal jazigo!...

Logo dormiu, sem temer qualquer perigo...
À meia-noite sentiu seus pés sendo tocados
e mesmo sendo, aos poucos, empurrados.
Onde é que estou?  Lembrar-me não consigo...

Então pensou que fosse algum cachorro
que se tivesse encostado nos seus pés,
mas percebeu dura demais a obstrução...

Sentou-se devagar, ajeitou o gorro,
da estreita porta ele espiou através...
Santo Deus!  Mas esse troço é um caixão?

O rapazinho levantou-se, bem depressa
e foi saltando por cima do ataúde!...
Que fosse uma ilusão já não se ilude:
tinha a tampa cor-de-rosa e bem espessa!

Ele dormira em cemitério, não se esqueça
e assim levou dos sustos o mais rude,
ao notar que essa distância nunca mude,
porque segui-lo o tal caixão não cessa!...

Começou a caminhar mais velozmente,
mas o ataúde ainda atrás sempre seguia!
Pôs-se a correr por entre as sepulturas,

sempre o caixão movendo-se igualmente,
uns cinco metros atrás sempre de onde ia:
macabras forças a movê-lo bem seguras!...

O CAIXÃO AMBULANTE II

Então saltou por cima do portão,
pelas grades se trancou o perseguidor...
Sentiu alívio, mas para seu horror,
pôs-se a flutuar portão acima o tal caixão!

Ai, meu Deus!  Tem de ser aparição
que está movendo essa coisa por rancor!
O ataúde ultrapassou, sem grande ardor,
o alto portão e o perseguiu em flutuação!

Louco de medo, correu pela calçada,
mas o ataúde continuava sempre atrás!
Correu aos pulos, mas o caixão, zás-trás!

Uma corrida ele iniciou, desenfreada,
pulou depressa pela cerca de um jardim,
mas atrás dele o caixão seguiu assim!...

O rapazinho invadiu um galinheiro,
galo e galinhas em tremendo cacarejo,
o caixão a segui-lo igual andejo;
atravessou o parque, bem ligeiro,

e o ataúde acompanhou-o, bem certeiro;
galgou a roda-gigante, em vasto adejo,
mas o caixão subiu atrás, sem pejo!
Trepou num muro, a espantar um gato arteiro!

Seguiu o caixão atrás dos seus miados...
Foi-se esconder em uma estrebaria,
relinchando os cavalos espantados!...

Para o telhado ele pulou de mercearia,
o caixão, oscilando, ainda o seguia!...
Quebrando telhas, saltou pelos telhados...

De lá pulou sobre macio monte de palha,
o caixão vogando atrás, sem se perder;
uma farmácia invadiu, sempre a correr,
o ataúde veio atrás, sem qualquer falha!

As prateleiras de remédios logo espalha
e o caixão outras mais foi remexer!
Pulou a janela dos fundos, sem gemer,
viu o ataúde no igual ponto que ele atalha!

Então lançou-se para nadar num lago:
flutuou a caixa maldita facilmente!
pegou a estrada, a lamentar seu dia aziago,

sempre o caixão, cinco metros mais atrás,
sem se atrasar, nem lhe chegar mais rente;
caso parasse, uma parada também faz!...

Ao se dar conta, já chegara à sua fazenda,
com o ataúde a prosseguir de cambulhada;
baixava a Lua, já era o fim da madrugada
e aquela coisa a continuar na mesma senda!

Pulou a cancela e foi correndo pela fenda
que de intervalo nas plantações fora deixada,
a coisa-ruim a avançar, desempenada,
tal qual tivesse de cumprir a mesma agenda!

Todo o fôlego se foi e então tossiu,
fechando os olhos alagados pelo pranto...
Quando os abriu, viu o caixão na estrada:

foi diminuindo aos pouquinhos e sumiu!
E nesse instante, fez juramento santo
de nunca mais ir à cidade amaldiçoada!...

O COELHINHO E A COBRA I – 5 SET 16

No meio das macegas, havia um ninho
em que morava Molly Rabo de Algodão,
com seu filhote, Rabinho de Algodão,
que ainda era bastante pequeninho...

Todos os dias de manhã, cedinho,
Dona Molly, cheia de preocupação,
lhe dizia: “Meu Rabinho, coração,
você acabou de mamar o seu leitinho;

“Mamãe está com sede e está com fome,
tenho de ir procurar folhas de trevo
e então beber nas águas da lagoa.

“Você fique bem quietinho.  A Mamãe come
e logo volta.  É perigoso e não o levo,
fora da toca parece só ser coisa boa!...”

Era obediente o Rabinho Algodãozinho
e quando para comer Molly saía
ele ficava bem quietinho e não mexia
as suas orelhas e nem o seu focinho...

Passou-se o tempo, bem devagarinho
(para um nenê é mais comprido o dia).
Mamãe saía e o coelhinho obedecia,
na toca quente sempre encolhidinho...

A Mamãe Molly retornava satisfeita,
pois comera todo o trevo que queria
e ainda bebera toda a água que podia...

Xixi e cocô a fazer longe de onde deita,
para quaisquer dos inimigos enganar:
que seu ninho era bem longe iam pensar!

Rabinho de Algodão era obediente,
mas certo dia, Molly um pouco demorou
e Rabinho de esperar se impacientou:
Quero fazer alguma coisa diferente!...

Com um olhinho cor-de-rosa, lentamente,
para fora da toquinha ele espiou:
sol amarelo e grama verde divisou,
o céu azul, linda paisagem, realmente!

Eu já sou grande!  Tenho três semanas!
E colocou para fora as orelhinhas,
escutando pela grama um barulhinho,

parecido com aquele com que espanas
o armário com as tuas revistinhas,
muito curioso a deixar esse coelhinho!...

Ficou escutando aquele chiadinho,
bem diferente dos que Mamãe fazia
quando pulava ou para a toca ela descia,
ou quando a brisa soprava de mansinho...

Alguma coisa se esfregava, ali pertinho,
bem diferente do roçado que ele ouvia
quando o capim com o vento se mexia,
mas era leve e gentil o barulhinho...

A Mamãe disse que eu ficasse bem quietinho,
e não saísse de dentro do meu ninho,
mas agora eu vou ficar só de pezinho...

Já para fora do buraco a se esticar:
Com meus olhinhos cor-de-rosa vou olhar!
Com minhas orelhas cor-de-rosa vou escutar!

O COELHINHO E A COBRA II

E para fora ele enfiou a cabecinha,
com as patinhas de trás firmes no fundo.
O silêncio estava agora bem profundo
e o tal ruído já nem sabia de onde vinha...

Ele tirou para fora uma patinha,
depois a outra, já saindo para o mundo;
pôs para fora seu corpinho bem rotundo...
Como era lindo tudo quanto o mundo tinha!

Mas então... ele escutou um assobio.
Olhou em volta, e ali estava uma serpente,
seu frio olhar cheio de fascinação!...

Sentiu Rabinho o mais horrível arrepio,
completamente imóvel, de repente,
quase parando seu pequeno coração!...

Então a cobra o agarrou pelo pescoço!
“Mamãe!” – ele gritou, desesperado,
mas com duas voltas já ficou enroscado,
sem conseguir se escapar desse retoço!

“Não me coma!  Eu sou ainda muito moço!”
Pela serpente cada vez mais apertado,
sem conhecer, bem sabia ser malvado
aquele abraço tão gelado e grosso!...

“Mamãe!” – ele gritou, já mais baixinho,
que a cobra estava lentamente a apertar!...
Gritou terceira vez, quase sem voz,

a serpente a espremer, devagarinho...
Rabinho já nem podia respirar,
enquanto o ofídio ia apertando os nós!...

Mas de repente, pula! pula! – ali chegou
a Dona Molly Rabo de Algodão,
patada dando com vigor e emoção,
porém a cobra chiou e não largou!...

Com seus dentinhos, a Coelha mordiscou
as escamas, combatendo com paixão!
Então a cobra afrouxou seu apertão:
para morder Dona Molly se atirou!...

Mas Mamãe Coelha, de um pulo, desviou
e dando as costas, bateu com as duas patas!
Rabinho percebeu que ela o soltava!...

“Corre, Rabinho!” – sua mãe logo exclamou
e os dois saíram pulando para as matas:
logo o parzinho entre raízes se embrenhava!

E no outro dia, embaixo de espinheiro,
Dona Molly um outro ninho já escavara
e a Rabinho novamente aconselhara...
“Quem mandou que você fosse tão arteiro?”

“Já viu que o mundo tem perigo bem certeiro!”
Lembrou Rabinho que quase o devorara
aquela cobra que tanto o fascinara!...
“O outro ninho não é mais hospitaleiro.”

“Aquela cobra já conhece o seu lugar,
por isso um novo eu tive de escavar,
não corra risco outra vez, desobediente!”

Assim Rabinho, que aprendera sua lição,
quase perdendo sua vidinha na ocasião,
ficou bem dócil desse dia para a frente!...

O TÚMULO DA BRUXA I – 06 set 2016

No tempo antigo, não havia tratores
e se faziam a ceifa e a semeadura
com as velhas ferramentas de cultura
que sempre haviam usado agricultores.

Os homens se empenhavam nos labores,
e as mulheres, de compleição mais pura,
cozinhavam ou faziam uma fritura,
lavavam as roupas dos trabalhadores,

cuidavam das crianças, com carinho,
todas as casas varriam e espanavam
e suas pequenas hortas cultivavam

ou dos pomares buscavam, em cestinho,
frutas maduras para cada refeição
ou ainda geleias de mais longa duração...

Um dia, duas irmãs, Helga e Gertrude,
foram ao campo, carregando um caldeirão,
cada qual com uma das alças em sua mão:
comida forte para tanto esforço rude

que executavam o pai, os tios e cada irmão.
Que fosse leve o caldeirão, ninguém se ilude;
de quando em vez, era preciso que se mude,
pelo peso que aumentava na ocasião,

o braço que segurava as grossas alças;
na outra mão, cada uma tinha a sua cestinha,
cheia de pratos e de garfos numerosos;

e ali ficavam a tarde inteira, até as falsas
horas, em que o crepúsculo se avizinha,
quando os caminhos já ficavam perigosos...

No riachinho, já tudo haviam lavado
e voltavam para casa a passo lento,
enquanto os homens completavam a contento
toda a tarefa que haviam programado.

Um cemitério no caminho era encontrado
e para proteger o campo bento,
de um muro fora feito o assentamento,
que nada fosse por bichos perturbado!...

E comentou Gertrude então, bem atrevida:
“Enterraram ontem ali a bruxa velha!...”
Mas disse Helga: “Não fales desse jeito.”

“Bastante mal falaram dela em vida,
se era bruxa, a discussão não é parelha
e para seu descanso afinal teve o direito!...”

“Mas é claro que era bruxa essa nojenta!
Você parece estar com medo dela...”
“Claro que não!  Só que respeito é coisa bela...”
“Está é com medo, pois a noite se apresenta...”

“Não tenho medo, mas com mortos não se atenta.”
“Pois não respeito em nada essa cadela!
Vou lá cuspir na cova em que está ela,
enquanto uma réstia de sol ainda esquenta!...”

“Pois não espere pela minha companhia!
Vamos voltar para casa, está na hora...”
“Eu vou entrar para cuspir na sepultura!”

“E se duvida dessa coisa que eu dizia,
vou levar um destes garfos, sem demora,
para depressa cravar na terra dura!”

O TÚMULO DA BRUXA II

“Amanhã, dia claro, vamos lá,
quando você estiver com menos medo
e verá que bem mereço seu segredo
ao ver o garfo que na terra se achará!”

E como Helga não a dissuadirá,
lá foi Gertrude, no seu capricho ledo:
cuspiu na cova, marcando com o dedo
o lugar em que a saliva ficará!...

Depois, pegando um garfo do avental,
em que se achava com os outros misturado,
cravou-o bem firme sobre a sepultura!

Mas no instante em que, num gesto natural,
tentou se erguer, estando o escuro já fechado,
alguma coisa no seu pé firme segura!...

Gertrude foi tomada de pavor:
Era o braço da bruxa que se erguera
e bem firme contra o túmulo a prendera!
Gritou de medo, no mais profundo horror!

“Helga, minha irmã, me ajude, por favor!”
Mas a mais velha, a quem receio acometera,
não quis entrar nessa necrópole severa,
e Gertrude desmaiou, num estertor!...

A pobre Helga só achou uma solução:
deixando ali cestinha e caldeirão,
correu ao campo, em busca dos parentes,

que de fato, do trabalho já voltavam
e para as casas devagar se encaminhavam,
com o resultado do labor muito contentes!

Helga depressa encontrou a parentela
e lhes contou o que havia sucedido,
a turma inteira penetrando com ruído
no cemitério, à procura da irmã dela!...

Eles corriam, à luz de grossa vela,
dentro de lâmpada seu lume protegido,
por vidro grosso com que fora construído
esse artefato, que enfrentava até procela! (*)
(*) Vento de tempestade.

Mas tropeçando por entre as sepulturas,
foram chegando até o ponto mais distante,
em que a velha que chamavam feiticeira,

fora enterrada, pelas razões impuras
que murmurava aquela gente faladeira,
longe dos próprios parentes, nesse instante!

E lá se achava Gertrude, realmente,
toda encolhida contra a terra remexida,
sem por lápide ser ainda protegida,
dando a impressão de ter morrido de repente!

Mas só estava desmaiada, no inclemente
terror sentido, quando a mão esquálida
se levantara de sua gélida guarida
e a segurara com um vigor potente!...

Logo acordaram a moça apavorada,
porém, de fato, alguma coisa a segurava,
que a luz fraca iluminava mal e mal!...

Helga, sem medo, puxou tal mão descarnada
e esse mistério logo a seguir se revelava:
prendera Gertrude com seu garfo o avental!

O LOBO BRANCO I – 7 SET 16

No Texas existe a Colina do Fantasma,
em que um forte foi há dois séculos erigido,
um povoado sendo aos poucos construído,
sem crescer muito, pois algo o marasma.

Corre uma lenda, ante a qual o povo pasma,
que um Lobo Branco é ali, às vezes, percebido,
sem que por perto tenha de fato aparecido,
só em acampamento noturno ali se espasma...

Muitos anos atrás, os Mórmons peregrinos,
a Utah buscavam chegar em caravanas,
pelo Texas querendo apenas acampar,

no outro dia a prosseguir nos seus destinos
em que correligionários, com suas damas,
liberdade de religião foram buscar...

Segundo a lenda, em um dos carroções,
havia dois meninos, que uma febre contraíram;
junto a um riacho, seus pais se decidiram
a esperar que melhorassem dos febrões...

Deixaram-se atrasar das multidões
que em direção ao Oeste então seguiam;
outros comboios ali logo passariam;
para o casal não faltavam provisões...

Não raramente, em função de mutações,
algumas crias nascem brancas, totalmente,
sejam cavalos, rinocerontes ou pavões,

que são comprados por alguns zoológicos,
para exibir a essa curiosa gente
que seus enjaulamentos julga lógicos.

Costumam ter os olhos bem vermelhos,
pois seus corpos não produzem melanina, (*)
nada incomum a ocorrência dessa sina,
não sendo mágicos, como narram contos velhos.
(*) Pigmento castanho, que existe em todos os grupos humanos.

Talvez nem todos sejam assim parelhos,
quem sabe um tótem se manifesta nessa quina;
esta historieta para tal lado se inclina,
sendo contada à meia-noite a alguns fedelhos...

Quando assam marshmallows ou salsichas,
sobre suas grelhas, para causar espanto
nos que se assentam à roda da fogueira,

enquanto esperam por rodelas de linguiças
e algumas vezes, em coro, erguem um canto,
para espantar assombração interesseira!...

O que é certo é que a família se atrasou,
na esperança de curar os dois meninos;
era verão e assim sofriam os pequeninos,
não só com a febre, forte calor chegou...

Caindo a noite, algum pouco refrescou
e decidiram assim dormir os peregrinos
em pleno ar livre, breve alivio dos destinos
das duas crianças que moléstia massacrou...

E se encontrando pai e mãe muito cansados,
logo caíram no sono mais profundo,
os dois meninos pela febre inquietos...

À meia-noite, foram dois olhos revelados,
muito vermelhos, mas sem furor imundo,
deixando os dois depressa bem despertos...

O LOBO BRANCO II

O animal se aproximou, devagarinho,
procurando um dos meninos alcançar,
que de medo se pôs logo a gritar
e a criatura foi saindo, de mansinho...

Mas depois, chegou de novo bem pertinho,
indo ao segundo menino acalentar,
o pobrezinho alegrou-se em abraçar
àquele que chamou de “cachorrinho”...

Mas este era, realmente, o Lobo Branco,
que começou suas bochechas a lamber
e de sua testa fez a febre espairecer...

De madrugada, se afastou, em leve arranco.
Veio o primeiro dos meninos a morrer,
curado o outro, sem nada mais sofrer...

Enterraram-no, junto à beira do caminho
e então seguiram para o seu destino,
os pais inconformados e o menino,
cruz de espinheiro a lembrar o pequeninho.

Doravante, ao contemplar a cruz de espinho,
os viajantes rezavam, com bom tino,
mas se tentassem remexer no solo fino,
uivos ouviam, já chegando bem pertinho...

Logo a seguir, o Lobo Branco aparecia,
que não matavam nem a tiro e nem pedrada,
guarda fiel dessa mesquinha sepultura.

Inquieta, a gente bem rápido partia,
deixando em paz a pequenina ossada,
que ao sol mostrava límpida brancura...

Até que um dia, passados nove meses,
uns mais valentes decidiram se acampar,
sem com o lobo fantasma se importar;
e à meia-noite, diferente de outras vezes,

o viram escavar... e de medo não te leses!
lambeu os ossinhos após desenterrar;
o esqueletinho viram então se levantar,
afirmaram testemunhas que então prezes.

E se encher de carne e então de pelo,
transformado bem depressa num lobinho!
O Lobo Branco lambeu-lhe o seu focinho,

maravilhada a gente de assim vê-lo!...
Saiu o Lobinho Branco então troteando,
o grande Lobo suas passadas amparando!

Foi essa história a correr de boca em boca,
um dia chegando aos ouvidos do casal,
que acreditou ser um milagre divinal,
embora os outros o achassem coisa louca...

Mas o casal não aceitou palavra mouca
e então voltaram pela estrada vicinal,
ali casinha a construir de material,
criando gado e ainda plantando coisa pouca...

E no lugar da cruz, capela ergueram...
Quando passava por ali algum doente
aconselhavam que aos dois Lobos esperasse,

sempre curados quantos obedeceram,
ali surgindo os Dois Lobos, novamente
e quem lambiam, era bem certo se curasse!...

NENÊS TROCADOS (CHANGELINGS) I – 8 set 2016

Não ocorre isto, por sorte, no Brasil,
mas em lugares frios, em que cai neve,
duende existe, impiedoso, que se atreve
a roubar nenês para um destino vil!...

Nunca aparece sob um céu de anil,
mas nessas noites em que a luz é breve,
quando a neblina em lençóis cinzas se eleve,
tudo a umidade a envolver em gotas mil,

chegam os goblins de dentes pontiagudos,
pontudas as orelhas e caudas bem compridas,
quase sempre em obediência a alguma troll,

cujos filhotes, ao nascer desnudos,
se assemelham às crianças mais queridas
que já se viu nascer à luz do sol...

Eles as trocam por nenês humanos,
em tudo parecendo os bebezinhos,
mas que logo se revelam malvadinhos,
chorões e arteiros desde os verdes anos...

E quando crescem, se demonstram desumanos,
toda maldade executando em seus caminhos:
flores esmagam e judiam animaizinhos
e quando adultos, causam numerosos danos.

Parecem gente de verdade, embora,
mas são ladrões e, às vezes, assassinos,
pois sem saber, são trolls e nos odeiam,

tais ocorrências bem mais comuns outrora,
em lugarejos afastados, pequeninos,
sem luz elétrica, que bastante eles receiam...

E o que acontece com esses coitadinhos?
São obrigados a crescer muito ligeiro,
sem ter infância, escravos do terreiro
dessa mãe troll e dos goblins mesquinhos.

Vivendo entre eles, desde bebezinhos,
nunca recordam de seu lar hospitaleiro;
duendes pensam ser de igual mau cheiro,
mas morrem cedo, por falta de carinhos...

Não acompanham o frenesi desses duendes:
Hip!  Hop!  Skip! – em seu ritmo ligeiro...
Mas os recolhe cuidadoso anjo da guarda,

sendo levados a destinos diferentes,
já libertados do sofrimento inteiro,
melhor lugar no qual carinho aguarda...

Ora, um dia, turma desses diabinhos,
em volta de sua ama troll dançando,
de uma cabana se foi aproximando,
em que encontrar esperavam bebezinhos!

Um casal de agricultores ali morando
dava muito carinho a seus filhinhos,
sem receio suspeitar dos maus vizinhos,
dos quais sequer pensavam haver bando!

Hip!  Hop!  Skip! – estes foram se achegando,
a fêmea troll a carregar cria nos braços,
seu leite fraco demais para a aleitar,

mais um motivo por humano a ir trocando,
magicamente adquirindo os traços
da criancinha que pudessem ali roubar!

NENÊS TROCADOS (CHANGELINGS) II

Vinte duendes cercaram a cabana
e o mais esperto penetrou na chaminé!
O fazendeiro se acordou, porém em pé
não conseguir ficar. Feitiço o dana!...

A sua esposa nem sequer mexia na cama,
presa no sono qual em prisão a ré...
Ficou o goblin a se aquecer, que até
atravessara sem se queimar a chama!...

A voz da troll escutou-se lá de fora:
“Quero o nenê!... Não desperdice tempo!”
O duende olhou o fazendeiro, divertido,

pontuda a cauda, pontudos dentes cor de amora,
orelhas pontudas a balançar no vento,
de limo verde e de líquens revestido!...

E sem sair do lugar, o demoninho
começou os seus braços a estirar,
até o berço em que estava a dormitar,
inconsciente de tudo, o nenezinho!...

O fazendeiro queria meter-se no caminho,
mas simplesmente não se podia levantar,
em pesadelo até pensando se encontrar,
vendo esses braços a crescer, devagarinho...

O diabinho só o olhava, sorridente,
muitos dentinhos pontudos a brilhar,
seus dois braços sem parar de se alongar,

na direção do bercinho do inocente:
quando o levasse pela chaminé,
traria a cria da troll até o sopé!...

E por mais que o fazendeiro se esforçasse.
nada podia fazer para impedir,
seus braços longos de um malvado agir,
apavorado que seu filho ele pegasse,

vendo a alegria que no rosto se estampasse
da criatura, que já pensava conseguir
ao infeliz nenezinho abduzir,
para que à fêmea troll o entregasse!...

Então suas mãos o berço já alcançaram
e na garganta do bebê logo tocaram,
porém recuaram tal sofrendo queimadura!

No pescocinho do nenê havia uma cruz,
antigo símbolo sacrossanto de Jesus,
em proteção da criancinha pura!...

Então o duende saltou logo para trás,
a voz da troll ainda chegando lá de fora:
“Traga logo esse nenê!  Por que a demora?”
“Mas eu não posso!” – gritou o pequeno satanás.

“A Coisa Horrível que tanto mal nos faz
esse nenê traz no pescoço!”  E nessa hora
na chaminé se atirou e foi-se embora,
como picado por cem abelhas más!...

O fazendeiro conseguiu então mexer-se
e a mãe do nenezinho se acordou,
chegou no berço e contemplou a cruz!

Hip!  Hop!  Skip! – os goblins a escafeder-se...
“Foi a cruz no seu pescoço que o salvou!” –
falou a mãe...  “Demos graças a Jesus!...”

William Lagos
Tradutor e Poeta –
lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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