segunda-feira, 19 de setembro de 2016



CASSANDRA & MAIS
Novas Séries de  William Lagos, 15-24 AGO 2016



                                      (CASSANDRA, EVELYN DE MORGAN, 1898)


CASSANDRA I – 30 SET 2007

Três capacetes na mesa de minha sala,
pares de luvas três, três precauções
contra os minuanos de três estações,
três cervejadas que a prudência cala...

Três imprudências sob a chuva rala,
temeridades três, três sensações,
três aventuras, três enfrentações,
três obstáculos, enfim, que se resvala...

Três capacetes em que a boca emboca,
motocicletas em que a vida invoca,
três acidentes em que a sina ensina...

Três sinaleiras que a loucura aloca,
três derrapadas que a tocaia entoca:
morre o rapaz e morre sua menina...

CASSANDRA II – 15 AGO 2016

Três profecias de uma profetisa,
três contos tristes para um mau futuro,
três negativas ante o avisar seguro,
três resvaladas na rota em que se pisa,

três cumprimentos daquilo que se avisa,
três esguichadas de algum sangue puro,
três imprudências pintalgando o muro,
três ambulâncias de que já não se precisa,

três corpos estirados sobre mesas,
três bisturis as autópsias fazendo,
três ataúdes para três destinos,

três gavetas ocupadas sem surpresas,
três esperanças em nada convertendo,
três caminhadas de cortejos peregrinos...

CASSANDRA III

Foi Cassandra de Tróia uma princesa,
filha de Príamo, que o reino governava
e de Hécuba, a Frigia, que aceitava (*)
gravidez após a outra, com certeza.
(*) Reino indo-europeu da Ásia Menor, nordeste da atual Turquia.

Levou Cassandra a Apollo sua beleza,
que no seu templo a ela visitava,
mas a corte desse deus não aceitava,
pois mais que Apollo a buscasse com nobreza.

Um preço então cobrou por seus favores:
que o Sol lhe desse o Dom da Profecia,
Hélios Apollo concedendo um tal clarão;

mas recusou-lhe os beijos e lavores, (*)
traindo Apollo que a troco lhe dizia:
“A tuas profecias nunca crença te darão!”
(*) Curvas delicadas.

CASSANDRA IV

E foi assim.  Apollo, em seu rancor,
mesmo seu dom jamais a renegar,
envolveu-o com um vasto enfumaçar,
sem que ninguém lhe desse algum valor...

Porque somente consequências de pavor
podia Cassandra assim profetizar
e nem ao menos as podia controlar,
mas balbuciava em seu momentos de palor. (*)
(*) Palidez, desmaio.

Foi assim chamada a “Profetisa da Desgraça”,
“por seus cabelos ululando passa
o anátema cruel” da incompreensão, (*)
(*) Citação de Castro Alves.

tal qual se fosse ela mesma a responsável
pelo mal que então proclama, irreparável,
tal e qual se o tecesse com sua mão!...

CASSANDRA V

Também nós temos o Dom da Profecia:
sempre podemos dizer, ao fim da tarde,
que irá se pôr esse astro que nos arde
quando já contra o horizonte se acharia.

Igual podemos afirmar que cairia
um copo contra o chão, com certo alarde,
se nossa mão se abrir em tal aguarde
e que seu liquido interior derramaria.

Ou que a luz diminuiria ao se fecharem
nossas pálpebras em pleno meio-dia,
para de novo aumentar caso as abríssemos

ou mesmo a nota que a seguir se escutaria
em conhecida canção que nos tocarem
que a executar nesse momento ouvíssemos...

CASSANDRA VI

Mas ai de nós!   Certeza não teremos,
só conhecendo as probabilidades,
muito mais que as possibilidades
e os acidentes destarte nós prevemos.

Porem igual que Cassandra, sofreremos
com a descrença das potencialidades
com que incidentes se façam realidades;
por meio algum os assim impediremos.

Da mesma forma que é inútil avisar
a nossos filhos sobre seus perigos,
pois com sorrisos nos desprezarão...

Três advertências assim a descartar,
três consequências a que darão abrigos,
três acidentes que ainda enfrentarão!

BIOTA I – 30 SET 2007

Amor percebo qual um simbionte,
que se alimenta de mim e me sustenta:
o meu sustento amor sempre alimenta
e bebo tal amor qual pura fonte...

De natural beleza, no horizonte,
aberto frente a mim, amor contenta
a alma faminta que a emoção aguenta,
em invisível passagem por tal ponte...

Entre o concreto e a sombra, essa visão
que não se vê e o coração preenche,
que não se escuta e assoberba a mente...

Pois nos devolve o quanto, em sua paixão
tirou de nós primeiro; e que nos enche
desse alimento vital e onipresente...

BIOTA II – 16 AGO 2016

Entre o concreto e a sombra existe o amor,
que não se toca, por mais que nos abrace;
que muito faltaria,se alguém abandonasse
esse fluido de som sem estridor...

Todos sentimos consequências do calor,
que nos corrompe a alma em seu enlace,
interstícios mil por que perpasse
e nos penetre com impiedoso ardor...

Mas essa sombra que nos cobre em véu
disfarça a realidade e as ilusões,
bem mais forte que o fragor das estações,

nesse tumulto de culpa, qual de um réu,
quando te vês do sentimento prisioneiro
e ao mesmo tempo és dele hospitaleiro.

BIOTA III

Se afirma ter a matéria três estados,
sendo o sólido, o líquido e o gasoso,
mas entre o sólido e o líquido há o pastoso
e são os fluidos entre a água e o ar achados.

Se esvai a cânfora pelos ares inspirados,
igual que as velas ante o fogo luminoso
de seus pavios contra momento tenebroso,
em fluidos gases os círios transformados,

ainda que parte em volutas permaneça
e sendo os pingos derramados sobre espelho
ali erguerão duplas figuras de cetim,

aqui um castelo, mais além um escaravelho
e mesmo um rosto que tua mente não esqueça,
mais certo olor que o nariz penetre assim...

BIOTA IV

Biota é o nome que se dá à totalidade
dos seres vivos a recobrir a Terra,
flutuando esses que o oceano encerra,
imensa massa de total diversidade.

A gente pensa ser a humanidade
preponderante sobre vale e serra,
mas na verdade só o orgulho nos emperra
de perceber essa triunfalidade

da massa imensa dos micro-organismos,
que compõem noventa por cento do biota,
insetos e aracnídeos nove mais,

enquanto ao homem, com todos seus modismos,
só um décimo por cento se denota,
muito menos que às plantas e animais.

BIOTA V

Jamais assaz no antanho numerosos
fomos nós em nossas múltiplas plateias:
mesmo entre nós combatendo as alcateias
e entre si a digladiar-se os poderosos,

nossos números de expandem, vigorosos,
sacrificando embora as assembleias
das árvores e das plantas de mil veias
ou de animais e de aves desditosos.

Ainda assim, somos nós anfitriões
de bilhões de bactérias simbiotas
e outros trilhões de gulosos comensais,

que nos habitam em vastas multidões,
dos alimentos a reservar-se quotas,
(mas para nós metabolizam muito mais...)

BIOTA VI

Mas em que parte da matéria é que avistamos
os sentimentos em que se embasam os amores,
as emoções que alimentam os rancores
e as mil ideias que da mente retiramos?

Não possuem sólidos nem líquidos reclamos
e nem são feitos de gases constritores;
serão pastosas as calorias dos vigores
ou serão fluidas as quimeras que sonhamos?

Um outro estado então partilharemos,
muito mais vasto que o biota material,
formando traços e atributos dos humanos;

e neste mundo igualmente nós vivemos
em cada instante de um certo amor real
ou quando as próprias mágoas lastimamos.

CIMITARRAS I – 05 OUT 2007

Eu vejo nisto apenas frustração:
não saber como querer o que se pode
nesta vida; ou talvez, do que incomode,
como livrar-se, em curta duração.

Eu vejo a busca da velocidade,
por esses jovens, como apenas medo
de se inserirem mal em tal enredo
que complexiza a vida em sociedade.

Somente querem as máquinas do vento,
movidas a cerveja, num portento
de combustível de grande aceitação.

Em tudo sendo apenas a zoada
da vampiresca e inútil revoada
que só conduz a maior desilusão...

CIMITARRAS II – 17 AGO 2016

Confesso até pensei na mocidade
em ter um dia qualquer motocicleta
ou ‘motociclo’, palavra que se aquieta
nos arcaísmos da antiga sociedade...

Mas nunca foi verdadeira esta ansiedade:
por outras coisas meu coração se inquieta,
só o imaginou com intenção pouco dileta,
quando apreciei foi a arte, na verdade.

Sempre escutei uma voz dentro do peito
a me dizer:”Não vai!” ante o perigo,
pois dei-me mal quando a não obedeci,

Por toda vida a tal proteção tive o direito,
sem de fato saber por que consigo
ainda guardar a proteção que garanti.

CIMITARRAS III

Talvez me tenham, realmente, preservado
para cumprir esta missão de agora,
que de meu peito se tornou senhora,
há bem uns trinta anos de contado...

Para outras vocações vi-me inclinado:
compus centenas de canções no meu outrora,
dediquei-me ao teatro e, em breve aurora,
tendo de orquestras também participado.

Nelas tocava diversos instrumentos,
sem que chegasse nunca a ser solista,
sendo intérprete apenas de conjunto,

menos poéticos tão empreendimentos,
que abandonei após terrível pista
de um incêndio em que o passado foi defunto!

CIMITARRAS IV

Presumo agora que o terrível incidente
que minha vida cerceou pela metade,
levando quanto havia reunido até essa idade,
mas que meu corpo preservou inteiramente,

foi então prova da proteção fremente
que projetasse a anterior atividade
tão só no mundo da poetividade,
que antes disso não era assim potente.

Em duas metades me cortou a cimitarra,
mas pouco a pouco refiz o material,
na mente e carne sem sofrer o mal,

privado assim de minha antiga amarra,
reconheço que então muito lastimei,
porém de fato libertou quanto eu guardei.

CIMITARRAS V

Mas ao redor percebo, não escutam
suas vozes interiores muitos mais
e assim se portam pior do que animais
que contra seus instintos nunca lutam.

E a despeito de seus erros, jamais mutam
seus procederes mantendo artificiais,
sem aprenderem as consequências naturais:
apenas bebem e após, grosseiros, esternutam.

E nessas máquinas se julgam os senhores
da vida e estrada, jovens imortais:
somente aos outros podem males advir,

até cessarem finalmente seus motores,
inconscientes suicidas em fatais
fugas da vida, mas sem poder fugir.

CIMITARRAS VI

São ginetes de modernas cimitarras,
os ventos a cortar com exultação,
adrenalinando suas veias de emoção,
o mundo a desprezar, em longas farras,

até o dia em que encontram barras,
subitamente, num instante sem noção,
perdida a aposta da vida em exaltação,
enquanto, Morte, sobre os tais escarras...

Muito mais vale o azedo da cerveja
do que o suor que do trabalho escorre
e a cimitarra se abate, incontinenti,

quando sua face o pavimento beija
e até a imprudência dentro deles morre,
de responsabilidades isentos, finalmente!...

RETORNO A SÍBARIS I – 5 OUT 2007

Eu me surpreendo a pensar como os antigos:
"Antigamente, havia mais respeito..."
É a contragosto que o ditado aceito,
que em torno olho e vejo seus perigos...

Pois, realmente, esta nova geração
foi criada ao sabor de um estatuto
em que direitos tem o seu reduto,
porém deveres são lançados de roldão.

E fica assim: uns se tornam delinquentes,
outros drogados, ou bêbados frequentes.
E, se algo tem em comum a juventude

é a irresponsabilidade mais completa,
que a sociedade por inteiro afeta,
sem que ninguém sequer trabalhe ou estude.

RETORNO A SÍBARIS II – 18 AGO 2016

Cidade grega da Grécia Maior,
que na Itália de hoje se acharia,
um rico porto em que comércio se fazia,
com grandes lucros para quem era senhor.

Muitos escravos a sofrer o seu fragor,
já que a nobreza de tudo usufruía,
no maior luxo que esse tempo permitia,
gozando o sexo e olvidando o amor.

Por isso existe hoje o termo “sibarita”
para quem procura apenas seu prazer
e se limita em tal satisfação,

nessa atitude infeliz que ainda visita
quem nunca teve realmente de sofrer,
os bens da vida derramados em sua mão.

RETORNO A SÍBARIS III

Mas a verdade é que estão insatisfeitos
esses tais que são felizes na aparência
e que se podem entregar à incontinência,
aristocratas a afirmar os seus direitos...

Dificilmente compreendem tais conceitos
como igualdade,divisão e persistência
e se desgastam até perder toda a potência,
tratamentos a lhes surtir poucos efeitos.

Caso inventário um dia façam do passado,
em nada notam a marca que deixaram,
salvo naquilo de que se aproveitaram

nesse mundo por eles dominado
por seu desprezo e tediosa crueldade
sobre os que os servem com honestidade.

RETORNO A SÍBARIS IV

Não me refiro ao ricos, tão somente,
são mais os filhos de gentes abastadas
ou que roubam de seus pais pequenos nadas
para gozar de qualquer vício conveniente,

usufruindo da sociedade complacente
e permissiva pelas longas madrugadas,
nessas baladas tardiamente começadas,
que até lhes trazem surdez em dom frequente.

E que lhes resta, caso um dia a sociedade
se revoltar perante tantos parasitas
a consumir o que os demais produzem?

Acostumados a essa longa ociosidade,
com que preenchem assim horas malditas
da mesma forma que os animais que rugem?

RETORNO A SÍBARIS V

E qual é o certo “estatuto” a que refiro?
Naturalmente, é “o grande monstro ECA”,
que por sua aplicação horrível peca,
os mil valores da moral lançando em giro.

Esse “Estatuto da Criança” aplica um tiro
sobre os deveres – sobre os quais defeca!
A Adolescentes de direitos leva a meca,
quando adultos insistindo igual respiro.

Tal qual tivesse realmente a sociedade
de ainda tratar com a maior benevolência
esse que estupra, espanca e mesmo mata,

acostumados nesta triste negociata
de em toda sua infração achar leniência
enquanto rouba e a todos desacata!...

RETORNO A SÍBARIS VI

De fato, em breve, Síbaris sofreu
o que seria um destino bem terrível,
sendo atacada por vizinho irresistível
a quem com pouca resistência se rendeu.

E o que então aos sibaritas ocorreu?
Quem vivera a gozar de luxo incrível –
foi lançada à escravidão mais indizível,
essa gente que da virtude se esqueceu.

Hoje há ruínas que podem ser mostradas
aos turistas, do Adriático nas praias
e nada resta de seu máximo esplendor,

nem restará das gerações sibaritadas,
após sujeitas às portentosas vaias
desses pobres que demonstram mais valor!

AMOR DE CÂMARA XIII – 5 OUT 16

Eu sinto a solidão como a palpável
parede de sorrisos de indulgência
com que encaro o mundo, essa paciência
de longanimidade imponderável...

E vejo o mundo assim, tal qual miragem
de demiurgo, talvez...  Em que me insiro
como observador...  Em que me inspiro,
ao descrever dos outros a passagem.

Nesse favor com que a mim mesmo acorro
e beijo a própria imagem, que me beija,
nos permanentes amores transitórios...

Que então me levam a buscar certo socorro
nos braços de quem sei que me deseja,
amor fazendo aos acordes de Praetorius...

JARDIM DO ESPANTO III (2006)
A ARTEMÍSIA I

Não me interessa provar desse absinto,
Que de tantos poetas tristes vidas
Destruiu, em miragens incontidas,
Nas visões verdes de pavor retinto;

Nem preciso da Erva de São João
Para tratar meus males e minhas dores:
O que preciso é do elixir de amores,
Que mais feliz me tornasse o coração...

Porque esta grande família de singelas
Flores inclui o hipérico brilhante,
Traduz remédio e licor alucinante;

Pois dentro em mim, outro palor se estígia:
Cura a si mesmo; e mostra. em frases belas,
O amargo coração, tal que a Artemísia...

A ARTEMÍSIA II – 19 AGO 2016

Jamais eu precisei de me drogar
E só única vez me embriaguei,
Pois realmente de mim mesmo desgostei,
Sem muito álcool novamente experimentar.

Sequer tabaco algum dia fui tragar,
Salvo uma vez no palco, em que mostrei,
Dado o papel que então interpretei
Que um cachimbo saberia preparar...

Pois muito menos a Dama Maria Joana,
Que hoje a esquerda tanto quer legalizar
E que a direita só pretende condenar

E mesmo o coro dos poetas que se irmana
Não me induziu a orgias cerebrais,
Que em alpha entro por meus meios naturais...

A ARTEMÍSIA III

Não necessito de outro combustível
Que esse que me envia a embriaguez
Dionisíaca – ou o dos beijos que me dês,
Querida musa, de desejo inexaurível,

Tua presença, mesmo sendo imperceptível;
Sobre meus ombros as palavras lês,
Suavidade e frescor contra minha tês,
Por mais que sejas aos abraços intangível.

Porém me assopras dos sonhos o vigor,
Possivelmente bem tangível nesse plano
Onírico, planejando o meu porvir...

E no teu leito de plumas, com calor,
Tu me recebes em teu amor arcano,
Que no acordar ainda posso pressentir...

A ARTEMÍSIA IV

Pois é somente no teu seio envolto
Que me sinto totalmente libertado,
Com tuas cadeias a vogar em sonho alado,
No qual despejo meu coração revolto,

De sua gaiola de costelas enfim solto
Para volver aos montes do passado,
Para compor meu futuro atribulado,
Nessa leve atribuição do seu indulto...

Por que, então, deveria me drogar,
Mesmo em planície de absinto verdigris,
Se já me drogas nessa pura exaltação,

Quando meus dedos permites deslizar
Bem mais além do que esperava ou quis,
No esmerilar perpétuo da emoção...?

JARDIM DO ESPANTO IV – (2006)
A TRADESCÂNCIA I

O que eu sinto por ti, dia após incerto dia,
É inquietação tranquila e vaga insegurança,
De não saber quem és, na simples esquivança
De quem mostrar-se bela deseja e nem sabia

Como manter seu bem, a quem, trocando açoites
De más palavras, ferozes, como pérolas
De maus amores, ardentes como férulas,
Conservando bem aceso o interesse e às noites,

Depois de um dia de atroz digladiação,
De ser uma mulher cruel e depois meiga,
Mostrar-se dadivosa e ardente, nessa instância

De uma incerteza certa, em pálida emoção,
Que me converte a alma, na religião mais leiga,
Pacientemente inquieta, tal como a Tradescância. 

A TRADESCÂNCIA II – 20 AGO 2016

A tradescância não é mais que forração
A preencher os espaços dos canteiros,
Os seus vigores, contudo, interesseiros,
Logo a cobrir assaz vasta extensão,

Se a deixares livre nessa ação,
Sem ser podada pelos jardineiros,
Mas tendo a liberdade dos terreiros
Numa conquista de bem fácil brotação.

Trapoeraba também alguns a chamam,
Longas lianas de pura suavidade,
Tão fáceis de quebrar, na realidade!...

Porém “se plantam” no lugar em que as derramam,
Bastando um pouco de solo e de umidade
E outras touceiras ali em breve se recamam...

A TRADESCÂNCIA III

Mesmo gentil, sabe bem ser persistente
E assim se impõe, aos poucos, às rivais,
Reveste as rosas de abraços maternais
E as azaleias em conchegar frequente;

Mas não afoga as outras, malquerente,
Apenas as protege em seus ramais,
A umidade conservando muito mais
Que o solo aberto ao sol indiferente.

Alguma é verde, sendo outra bicolor;
Existe uma que chamam “fluminense”,
Em tons pálidos de verde e de amarelo,

Doces guirlandas tecendo para o amor,
Simples tiaras que uma testa adense,
Do que o loureiro num coroar mais belo.

A TRADESCÂNCIA IV

De modo idêntico, toda a inspiração
Que à alma chega, qual doce torrente,
Nunca me afoga, por mais seja frequente,
Só me protege da excessiva trovação.

Em titilares controla minha ilusão
E me previne, qual faz bardo imprudente,
De defender ideologia ingente
Ou de expandir algum pendor de religião.

Mas essa tradescância que me forra,
Cruel às vezes, depois cheia de meiguice,
Controla o fluxo e o gesto determina,

Embora o sangue por meus dedos corra,
Seguem tais versos a converter tolice
Em doce canto para a dona de minha sina!

REGRAS DA VIDA XL (40) – 6 OUT 06

Retorne às suas origens, vez em quando,
a retomar contato com suas bases...
A vida te demonstra tantas fases,
que é importante se furtar ao bando

de tais solicitações... Um meio brando
é voltar ao lugar que foi o oásis,
em que você cresceu, onde as diástoles
do coração vão as sístoles calmando...

Retorne à calma e pense em seu futuro:
quais as coisas que, realmente, tem valor
e como irá planejar o seu destino...

Nas ondas mansas do porto mais seguro,
renove suas raízes... nesse odor
alcandorado dos tempos de menino...

[diástoles são as dilatações do coração depois que as sístoles o contraíram.]

AMOR DE CÂMARA XI (11) – 6 OUT 06

Eu nem me esforço por teu amor concreto.
Abstrata, és mais real... Posso forjar-te
segundo a síntese de meu ideal secreto,
enquanto a substância, ao contemplar-te

se escapa a tal prazer, sob as pupilas...
E, no entretanto, quando enfim te abraço
e, nesse teu ardor, por mim cintilas,
teu dom carnal preenche todo o espaço...

Como endorfinas então o meu marasmo!
Tal como a música, teu corpo me consola,
durante os dias bons e os dias maus...

Pois me renovo em ti, a cada orgasmo:
Sempre é um antídoto, nesta vida tola,
fazer amor com a música de Strauss...

JARDIM DO ESPANTO VI (2006) - A PASSIFLORA I

Não busco minha vantagem: sempre faço
Quanto me pedem em favor dos outros;
Esqueço a recompensa e até estoutros
Prêmios do esforço com que me desfaço;

E o resultado, maugrado meu, é aziago:
Tal se esperasse o que pedir não peço;
Que adivinhem o quanto mais mereço,
Sem perpassar-lhes pela mente qualquer pago.

Porque, se não cobrei, por que deviam
Retribuir-me em qualquer dote monetário?...
"Obrigados" eu granjeio e me devora

A expectativa do que talvez me atribuiriam;
E só me resta tornar, em gozo perdulário,
Mais complexas as flores, tal qual a passiflora.

A PASSIFLORA II – 21 AGO 16 

Meus sentimentos percebendo assim complexos,
Como posso esperar que alguém me entenda
E que me possa partilhar dessa prebenda
Em que tantos dos demais encontram nexos?

Se de emoções participo nos amplexos,
Sem que algo material a tais atenda,
Devo lançar sobre mim mesmo a reprimenda
Do sofrimento por mais terríveis vexos. (*)
(*) Vergonhas, embaraços.

Da passiflora proclamam ser calmante
E apresentar os elementos da Paixão
Que foi imposta a Jesus, Nosso Senhor;

Mas nela vejo mais desenho delirante
De simetria radial, em profusão
Que nos deslumbra, na singeleza do esplendor.

A PASSIFLORA III

Também a chamam alguns Maracujá,
Dos GuaranIs a seguir nomenclatura;
“Mburucuyá” é mais o nome que perdura
Nesses registros ameríndios que ainda há.

Sendo servida em infusão ou em chá,
É apresentada como defesa pura
Da cefaleia, do nervosismo a cura
E se olhares nas farmácias, ali está,

Embora digam que sendo ressequida
Um pouco perca da inicial virtude,
Que deveria ser colhida desde o pé;

Mas outros dizem melhor seja consumida
Com Eritrina e Cratégus, menos rude
Que numa purga purificada até.

A PASSIFLORA IV

Mas é assim que age a passiflora,
Em seu desmanche a conferir virtude;
Que algo ganhe em troca, não se ilude:
Perecem flor e esperança nessa hora.

Não surgirá seu fruto após demora,
Nem semente lançará ao mundo rude,
Sem ter o fruto que em outra liana mude,
Em tudo igual à raiz do seu outrora.

Assim ela é colhida... e quem recorda
De agradecer à humilde trepadeira
Em qualquer cerca ou galho pendurada?

E quem ao dom da vida um dia aborda
Em gratidão pelos dotes de sua esteira,
Por mais se banhe em sua bênção derramada?

JARDIM DO ESPANTO VII -- A AVENCA I (2006)

Minha alma é forte e tem a resistência
De quem se acostumou a esperar nada;
E mesmo assim, esperou pela alvorada,
Que só lhe pode surgir por persistência...

Retorna a cada dia; a vida é zombeteira:
Pendula a reluzir promessas transitórias
E a palpitar oscila,  em seu pendor de glórias;
Porém a permanência é muito mais certeira

Nos dois pontos extremos que o pêndulo completa;
A cada oscilação, assim, no mesmo instante,
Logo suspende e hesita; e ao outro se despenca...

A glória só reluz no centro dessa inquieta
Fascinação fugaz, que me enche, delirante,
De frágeis emoções, tremendo como a avenca...

A AVENCA II – 22 AGO 16

Prospera a avenca em zona mais escura,
Frágil demais para o esplendor solar:
Sob essa luz é bem fácil seu murchar,
Em acastanhada e rápida loucura...

Por forte fora, nesse estado pouco dura,
Cessando em breve seu meigo tremular,
Somente ramos finíssimos a mostrar,
Sem sua ramada de folhagem pura.

Mas mesmo estando morta em aparência,
Se para a sombra transportares o seu vaso
E lhe deres a umidade suficiente,

Muitas vez se renova essa potência
De planta humilde, reverente ao ocaso,
Em que tremula, límpida e inocente...

A AVENCA III

Contudo, se nenhuma luz houver,
Não sobrevive à plena escuridão:
Logo enegrece, sem maior pendão,
Nem exerce a oscilação de seu mister.

A doce avenca só o meio termo quer,
Nem muito escuro, nem ardência de clarão,
Que suas folhinhas verde-claras são,
Gentis e meigas como unhas de mulher,

Quando se sente amada e protegida,
Sem se deixar destruir pelo ciúme,
Que então se fazem bastante pontiagudas!

Mas fica a avenca em seu umbral contida,
Sem nos mostrar trescalância de perfume,
Nem excesso de ambição para suas mudas...

A AVENCA IV

Tal qual a avenca, minha vida conformei
No meio termo fiel de uma balança;
Peso demais de prestígio já me cansa,
Peso demais de desprezo lamentei.

Fica no meio o caminho que tomei,
Sem de uma esquerda enristar a lança,
Sem da direita conformar-me à dança
E sem tomar quaisquer partidos, viverei.

Meus versos mesmo nem publicarei;
Caso o fizesse, seria obra servil,
Não sua dedicação ao Criador,

Que não sou eu, tal qual sempre direi,
Não sendo mais que o escriba mais gentil,
Tal qual avenca nas mãos do plantador.

VIVEIRO VIII -- A CACATUA I (2006)

A quem compararei o meu amor?
À pluma multicor da cacatua,
De olhar tão reluzente, em seu olor,
Que evoca a mágoa da promessa nua.

Porque é bela essa ave e quase fala:
Sua voz é rouca, estrídula, potente,
Não tem muito a dizer mas, persistente,
Repete a mesma frase e não se cala...

Quisera ouvir, que sempre repetisse,
Envolvido no encanto da plumagem,
No bico adunco, o verso que reclama

Meu coração, que mais queria ouvisse,
Esgotado o rigor da parolagem,
Que apenas reiterasse que me ama...

A CACATUA II – 23 AGO 16

Surgiu na Polinésia a Cacatua,
Das Filipinas e Molucas às Salomão,
Alegres pássaros de gentil coloração,
Porém cinzentos quando vistos sob a Lua...

“Todos os gatos são pardos”, quando flua
Sobre eles de um lunar a esprateação;
Ficam as cores em perene mutação,
Sempre que expostas ao solar da rua.

Na maioria, são brancas essas aves,
Mas coroadas por variegadas cristas,
Iguais que velas de imponentes naves.

Psitacídeos sendo, aprendem fácil
A imitar da voz humana as pistas:
Grasnido rouco, mas de algum modo grácil.

A CACATUA III

Por sua beleza a ser muito apreciadas
Em mil viveiros à roda do planeta,
Cada zoológico com ambição secreta
De exemplares numerosos das aladas,

Pequenas maravilhas, quase fadas,
Surgidas no Pacífico, em que as afeta
Um clima favorável e refeição dileta,
Embora sejam pelo mundo cobiçadas. 

Bem variadas as espécies que apresentam,
Com o mesmo bico preto ou acinzentado
(Das Licmetas a ser característico).

Algumas delas raramente se sustentam,
Pela frequência com que o pássaro é caçado,
Por seu aspecto vistoso e nobilístico...

A CACATUA IV

Descritas foram em mil setecentos e noventa,
Por Brisson, um ornitólogo francês
Que a “Cacatua alba” como o tipo fez,
Porém Cuvier padrão diverso atenta,

Ao concluir que como tipo se apresenta
A Cacatua que em vermelho como grês
Mostra seu ânus, (ou outro nome que lhe dês)
E com chamá-los de “Kakatoes” se contenta.

Algumas se acham bem ameaçadas,
Tal como a Cacatua de Olho Azul
E a Cacatua de Crista em Parassol...

As Cacatuas de Cristas Amareladas
Já são bem raras nos Mares do Sul,
As Cristas Roxas conservando mais farol...

A CACATUA V

Não tenho cacatuas no jardim,
Nem tampouco papagaio ou periquito,
Com alpiste a manter pássaro aflito
Da liberdade em privação assim.

Prefiro as fotos de tais aves-arlequim
E se as quiser, as gravações do grito
Que só com boa-vontade acho bonito:
Antes venha um rouxinol cantar pra mim!...

Ainda que seja de um negror sem jaça
E que do olhar a atenção não prenda...
Há tanta gente que só em cor encontra graça!

Porém Natura mostra a singular prebenda
De impedir que qualquer canto melhor faça
O lindo pássaro que gerou já tanta lenda!

A CACATUA VI

Destarte eu, tal como a cacatua,
Tenho a tendência de repetir sobremaneira
Versos de amor, em emoção ligeira,
Que se enfileira junto à palavra nua,

Mas que em cada coração humano estua,
Amor de sonho ou pobre amor de feira,
Favor mesquinho ou emoção hospitaleira,
Que fere a alma com seu ferrão de pua!...

E assim descrevo só o mesmo sentimento
Por tantos outros descrito antes de mim;
E de algum modo os termos surgem novos,

Em sua noção de embaralhar o pensamento,
Em sua loucura doce de carmim
Que sempre a mente demarcou de tantos povos...

ECOS NA NEBLINA I – 24 AGO 16

O MEU PENSAR NA CACATUA AINDA ME INSPIRA.
SOBRE AS PALMEIRAS AS QUERO VER POUSAR,
PARTINDO COCOS DE PERMEIO AO CROCITAR,
IGUAL A AMOR QUE NO MEU PEITO GIRA.

POUCO ME IMPORTA QUE A PRÓPRIA ALMA FIRA.
ESSA EMOÇÃO PERENE HÁ DE FICAR,
CEM MIL ECOS NA NEBLINA A DESPERTAR,
QUE ESCONDE AS ILHAS EM VOLUTA E ESPIRA.

E PERMANEÇA DENTRO EM MIM A GOTEJAR,
NESSES TERMOS DE BATIDAS DESGASTADAS
SOBRE O VENENO DE POTÊNCIA E AGITAÇÃO

QUE AINDA ENCONTRO EM MEU VAGO CAMINHAR,
EM TANTAS VIDAS POR ELE ACORRENTADAS
NA NOSTALGIA DE TOTAL DECANTAÇÃO!...

ECOS NA NEBLINA II

É DOR PACIENTE, TAL COMO UM BISTURI
O DOCE ENGODO DA LINDA FALCATRUA;
PERCORRE A ALMA QUAL ADAGA NUA
E ACORDA A DOR QUE JÁ SE ACHAVA ALI.

AS DUAS SE ANINHAM, CADA QUAL POR SI,
BUSCANDO PERPETUAR SUA VIDA CRUA;
EM MELÍFLUA INSTIGAÇÃO A MÁGOA ESTUA
NESSA OUTRA DOR EM QUE JAMAIS EU CRI.

QUE DILACERA E RESSECA, DE IMPOTENTE;
FICA ESSA PENA AGREGADA À DOR MAIS FORTE,
AGLUTINANDO-SE À OUTRA INTENSAMENTE,

FAGOCITANDO-A, EM PERMANENTE CORTE,
NOVO FRACTAL DE REPETIÇÃO IMPENITENTE
A GERENCIAR-ME TODA A FUTURA SORTE.

ECOS NA NEBLINA Iii

QUE ALGUM DISTANTE PARAÍSO PROCURASSE
PARA VIVER SÓ CONTIGO E TE ROUBASSE,
QUE ALGUM ANTIGO VELEIRO REFORMASSE
E PARA OS MARES DO SUL TE TRANSPORTASSE,

MESMO QUE TAL PARAÍSO LÁ EXISTISSE,
FORA DA ROTA DOS TUFÕES O DESCOBRISSE,
SEM TSUNAMI QUE MINHA ILHA RECOBRISSE
E ESSA VIAGEM SÓ CONTIGO EU CONCLUISSE,

AINDA SERIA TAL CENÁRIO UMA ILUSÃO.
NÃO É ASSIM QUE SE EFETUA A CRIAÇÃO
DENTRE A NEBLINA DE ALGUM LUGAR QUALQUER.

PORQUE NÃO BASTA SE AMAR EM VÃ PAIXÃO,
MAS OS ECOS ESCUTAR DE UM CORAÇÃO,
QUE UM PARAÍSO SÓ SE ENCONTRA NA MULHER!...

RECORDAÇÃO XX

Ela esfregou em mim negros cabelos,
Feitos de chuva e noite, tantos fios,
Que me varriam inerme em seus desvelos
E o corpo estremeciam, como frios

Dedos de geada; e recobriu-me todo,
Enquanto o ventre firme me envolvia,
Como um torno macio, como um engodo,
No perdurar do amor, em que sentia

Sua carne a palpitar, até forçar-me,
Na derradeira excitação do alarme,
A derramar-me inteiro, um alazão,

Que essa amazona firme cavalgava,
E um brado de prazer então soltava,
Quando meu sêmen chegou-lhe ao coração.

RECORDAÇÃO XXI

Este fato se passou no Canadá:
Era uma índia algonquina e hoje seu nome
Me surge na memória e depois some;
Nem faço ideia mais de onde ela está.

Foi em Yellowknife, no meio de um inverno,
Cinquenta negativos... eu passeava
Com um grupo de amigos, só andava
Mesmo em turismo, nesse frio de inferno

Escandinavo, "Fimbulwinter"; e a mulher
Encontrou-me num bar e me levou
Para uns momentos simples de paixão.

Nada pediu, nem um colar sequer:
Apenas me tomou consigo e se entregou,
Numa fugaz e meiga exaltação...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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