quarta-feira, 14 de setembro de 2016





RENARD, O RAPOSÃO ESPERTO
(Folclore francês, cinco contos em adaptação de Jean-Marie Garblass)
(Versão poética em formato de octetos por William Lagos)

Renard e o Lobo Ysengrin ... ... ... 10/8/2016
Renard e o Galo ... ... ... 11/8/2016
Renard e Chanteclair ... ... ... 12/8/2016
Renard e o Corvo Tiercelin ... ... 13/8/2016
Renard e os Peixes ... ... ... 14/8/2016

RENARD E O LOBO YSENGRIN I – 10 AGO 16

Havia em França um esperto Raposão,
a quem chamavam, é claro, de Renard. (*)
Tinha sua esposa, Hermeline, no seu lar
e dois filhotes de grande agitação!...
(*) Raposa, em francês.  Pronuncie “Renar”.

Era ardiloso, mas sem grande ambição,
contentava-se a nos prados ir caçar
faisões, tetrazes de excelente paladar,
que para casa levava na ocasião.

Estava sempre disposto a negociar
e, se possível, aos outros enganar;
dizer podemos que era um comerciante.

Mas praticava tantas artimanhas,
nos demais a causar frequentes lanhas,
que o julgavam bem mais como um tratante!

Tinha amizade, desde a infância, com um Lobo
de alta estirpe, entre os bichos um Barão!
Ysengrin era seu nome e o capitão (*)
do exército do rei, com grande arroubo!... (+)
(*) Pronuncie “isangran”. (+) Valentia, coragem.

Valente e corajoso, porém um tanto bobo;
tratava-o Renard de “tio” e lhe pedia bênção.
“Deus te abençoe, sobrinho!” – e dava a mão
para beijar, em sua vaidade tendo afobo...

Vivia o Lobo em uma ótima choupana,
com sua esposa, a bela Dona Hersent (*)
e três lobinhos alegres e saudáveis.
(*) Pronuncie “Ersan”.

A visitá-lo ia Renard cada semana,
qualquer comida filando de Ysengrin,
os cinco lobos a mostrar-se muito amáveis...

Ora, um dia, terminavam o seu jantar:
Ysengrin havia caçado um bom carneiro
que comeram até o osso derradeiro
e já pensavam em ir ao leito se deitar,

quando à sua porta veio bater Renard,
rustido o pelo, magro e sem dinheiro
e Ysengrin o recebeu, hospitaleiro:
“Caro sobrinho, por que anda a tropeçar?”

“Meu belo tio, de fato estou doente...
Se me permite, quero um pouco descansar,
a minha casa ainda fica a um bom caminho...”

“Claro que sim.  Por favor, aqui se assente.
Quer tomar algo ou apenas conversar?”
“Quem sabe, apenas, dois dedos de vinho...”

Dona Hersent serviu-o, bem depressa.
“Já estou melhor...  Desde ontem não consigo
comer nada, meu querido tio e amigo...”
“Hersent, os rins e o fígado me aqueça,

que eu ia comer antes de ir à caça
amanhã pela manhã!”  “Basta-me o abrigo,
o meu estômago está de mal comigo...”
“Nada que um bom alimento não desfaça!”

E assim, Renard comeu o desjejum
que Dona Hersent reservara a seu marido
e percebeu numa trave três presuntos,

mas Ysengrin não mencionara qualquer um
como presente ao sobrinho tão querido,
ficando os dois a falar de outros assuntos...

RENARD E O LOBO YSENGRIN II

Fingiu o Raposo notá-los de repente:
“Mas que lindos presuntos tem no teto!”
Ysengrin ergueu os olhos, com afeto:
“Minha reserva, quando o inverno se apresente...”

“Mas deixa às vistas assim de toda a gente?
Devia guardá-los em algum lugar secreto!
E se algum amigo vem, mais indiscreto,
e lhe pede alguma lasca, meu parente...?”

“Ah, não darei!  Nem sequer a meus filhotes!”
“Ora, meu tio, tens coração tão terno...
E se aparece por aqui algum ladrão?...”

“E a todos rouba, com dois valentes botes!
Esconda em algum lugar até o inverno,
em que possa conservar sua provisão!...”

Logo a seguir, o Raposo despediu-se
e esperou que a família adormecesse;
saltou ao telhado, no lugar que reconhece
estar a trave em que presuntos viu-se...

Afastou do teto o colmo e surripiou-se
os três presuntos... E para casa desce.
A comida a seus filhotes logo aquece;
de sua esperteza consigo mesmo riu-se...

Para evitar qualquer possível desconfiança,
foi visitar, na maior “cara de pau”
a família cuja comida havia roubado!

Bem satisfeito, ainda cheia  pança,
em resultado de seu feito mau,
fingindo apenas estar passando desse lado...

Achou os lobos na maior agitação;
foi logo entrando e indagou qual o motivo.
“Caro Renard, algum ladrão furtivo
furou-me o teto e me fez espoliação!...”

“Como assim?” – perguntou o espertalhão.
“Não está vendo?  Meu teto está em crivo!
Roubaram meus presuntos!  Algum esquivo
furou-me o teto e me levou a provisão!...”

“Durante a noite?  E vocês não acordaram?”
“Todos caímos num sono bem pesado,
e já nem sei o que fazer agora!...”

Os olhos de Renard se entrecerraram:
“Meu caro tio, muito bem representado!
Enganaria a qualquer outro, sem demora!...”

“Como, enganar?  Fui roubado, estou dizendo!”
“É assim mesmo que deve responder!
Mas não me conte em que lugar foi esconder:
que foi bastante esperto eu já compreendo...”

“Mas, Renard!  O meu telhado, não está vendo?”
“Claro, claro!   Justo assim deve dizer,
que enganará a qualquer um seu parecer,
mas a sua inteligência eu bem entendo...”

“Quem furaria assim seu próprio teto?
Escondeu bem, que lhe faça bom proveito!
Só a mim que não engana!   Tenho faro!”

“Os meus respeitos, senhor meu tio dileto!
Só que o buraco bem menor devia ter feito!
Desse tamanho, vai o conserto sair caro!...”

RENARD E O GALO I – 11 AGO 2016

Chegara o inverno e Renard passava fome;
Hermeline gemia e os filhotes lamentavam,
o que comer todos em vão buscavam,
mas era inverno, quando toda a caça some...

“Vá nos caçar qualquer coisa que se come.”
mulher e filhos ao Raposão choravam,
porém nos prados as aves não se achavam...
“Algo hei de achar que nossa fome dome!...”

E foi troteando até o final do mato,
onde sabia existir granja bem dotada,
com capões, muitos porcos e galinhas...

Cruzou a cerca no mais fácil desacato,
mas bem difícil era apanhar a galinhada,
protegida por aramado e grossas vinhas...

Por sorte, só ali estava o camponês,
bastante rico, por ser um avarento,
mulher e filhos sofrendo algum tormento:
tudo vendia para o melhor freguês!...

A esposa fôra à feira desta vez,
para vender o que seria seu sustento!
O que criavam era vendido num momento:
mingau comeram e a salada que ela fez!

Bertoult, que era o nome do labrego, (*)
só queria mais dinheiro acumular,
porque mais terras pretendia comprar.
(*) Leia “Bertul”.  Labrego = camponês.

Porém, de fato, pelo ouro tinha apego
e a cada mês aumentava o seu tesouro,
sua família a tomar sopa de couro!

Um galo velho atravessara o aramado,
a que Renard tentou em vão caçar,
gritando o galo o seu cacarejar,
pelas galinhas sendo logo acompanhado!

Bertoult chegou depressa, desconfiado
e duas redes em seguida foi buscar,
logo prendendo o coitado do Renard
e então trazendo um facão bem afiado!

“Ah, Raposão, vais ser o meu pelego!
Sobre tua pele meus pés vou descansar:
tua carne dura vou picar para as galinhas!...”

Mas quando o foi matar, num golpe cego,
pôde Renard sua mão direita abocanhar,
seus dentes firmes como duas gavinhas!...

Quando Bertoult se tentou desvencilhar,
para o pescoço a sua mordida transferiu
e num perigo de morte ele se viu!...
“Não me mate, por favor, Senhor Renard!”

“Com teu facão pretendias me matar!
Pois vou feri-lo igual que me feriu!...”
“Juro por Deus!” – o labrego lhe pediu.
“Pago-lhe o preço que decida me cobrar!...”

“É verdadeiro esse seu juramento?”
“Pelo Nome de Deus eu lhe jurei!” –
disse Bertoult, já meio sufocado...

“Por uma prova do que diz, neste momento,
abra esta rede na qual eu tropecei!...”
E de imediato da armadilha foi livrado!...

RENARD E O GALO II

“Agora solte o meu pescoço!  Estou sangrando!”
“Quero que pague sua vida com a do galo!...”
“É um galo velho, só vai dar-lhe um caldo ralo;
três galinhas lhe darei, estou jurando!...”

“Eu quero é o galo que me foi denunciando!”
“Eu dou, senhor!... Mas já estou em grave abalo!”
“Se me atacar, eu primeiro irei matá-lo!...”
“Sim, meu senhor, mas minha goela vá soltando!”

Renard soltou-lhe o pescoço e, bem depressa,
saltou bem longe do alcance do inimigo!
Bertoult, porém, lhe havia jurado bem sincero.

Mesmo sangrando, de perseguir não cessa
o tal de galo.  Renard saiu de seu abrigo
e o abocanhou, sem fazer mais lero-lero!...

Assim, enquanto o labrego se lavava,
escapuliu-se da granja, velozmente,
o galo preso nos seus dentes, firmemente,
a debater-se, porém não se livrava!...

Vendo-se presa, a ave então chorava!
“Amo Bertoult eu servi tão fielmente
e ele me entrega, sem pena, totalmente,
para o Raposo que antes me caçava!...”

“Mas não percebe que lhe saltou a vida?
Eu teria sufocado o seu patrão!...
A sua função, destarte, foi cumprida!”

“Deve o vassalo morrer por seu Senhor,
a comprovar sua verdadeira devoção,
pois só assim demonstrará sua gratidão!”

“Sinto saudade de minhas pobres galinhas!...
E quem irá toda a granja, em clarinada,
despertar ao raiar da madrugada...?
Não sentes pena dessas coitadinhas?”

“Tenho pena é de minhas crias, pobrezinhas!
Sua longa fome por você será saciada...”
“Termino a vida nesta miséria desgraçada!
Se o senhor ao menos recitasse algumas linhas!”

“Qualquer verso que me enchesse de coragem!”
Renard do triste galo se apiedou,
mas no instante em que a mandíbula afrouxou,

o galo se escapou, tal qual vento em aragem!
E sacudindo das asas a plumagem,
num alto galho já se empoleirou!...

Nesse momento, escutaram uns latidos
e Renard em cova funda se escondeu.
Feroz matilha logo ali apareceu,
por alguns caçadores mal contidos!...

Ficaram estes um instante confundidos
e com um tiro, ao galo um abateu,
mas não sendo uma perdiz, se arrependeu,
sendo seus cães, aos berros, repreendidos!

De fato, andavam era atrás de um javali...
Renard saiu depois de seu abrigo:
“Tu me enganaste, galo espertalhão!”

“Mas teu castigo recebeste aqui...”
E abocanhando,  o carregou consigo
para levar à sua família a refeição!...

RENARD E CHANTECLAIR I – 12 AGO 16

Mas de outra feita, foi vencedor um galo,
chamado Cantaclaro ou “Chantecler”,
que de Constant Desnos e sua mulher (*)
vinte galinhas cuidava com regalo!...
(*) Leia “Constan Denô”.

Ora, Renard se introduziu por valo,
por ser de caçador o seu mister;
cruzou a sebe de proteção e dentro quer
capturar uma das aves, sem abalo...

Porém o valo havia sido obstruído
por pilha grossa de cem cacos de telha
e ao cruzá-lo, provocou estardalhaço!

Entre altas couves se escondeu, mas percebido
foi bem depressa, por uma galinha velha,
de Chantecler a mais constante no regaço...

Seu nome era Pintada – e foi depressa
prevenir a Chantecler, que se encontrava
do outro lado do terreiro, em que ciscava...
“Chantecler, chegue aqui com toda a pressa!”

“Ora, Pintada, deixa-me em paz, homessa!” –
Cacarejou, com expressão muito antiquada.
“Chantecler, uma fera está emboscada
por entre as couves e de espreitar não cessa!”

“Cara Pintada, estás confusa ou é histeria!
Foi nossa sebe recentemente consertada,
sendo impossível que seja atravessada!...”

Mas Pintada insistiu no que dizia
e então o galo deu duas voltas no terreiro,
ao seu ciscar retornando, bem ligeiro...

Mas por certa inquietação foi invadido
e bem depressa voou para a cumeeira,
a sua visão distribuindo, bem certeira:
cada ponto do quintal sendo atingido!

Parado num pé só, o olhar comprido
de um olho, o outro fechado, toda a eira
vigiando firme, mas a fera sorrateira
também vigiava aquele galo bem nutrido!

Em pouco tempo, Chantecler adormeceu
e se engasgou com terrível pesadelo:
em um saco vermelho era enfiado

e num laço pontiagudo se prendeu!...
Da cumeeira ele saltou, no maior zelo,
para Pintada a correr, bem assustado!...

Rapidamente, lhe contou seu sonho,
à sua galinha pedindo um bom conselho...
“Mas isso é claro, Chantecler, meu galo velho,
somente espero que seja algo bisonho!”

“O que interpreto é fato bem medonho:
da pele e dentes de Renard é claro espelho,
a sua cabeça ele engole em veloz relho,
seus dentes brancos o tal laço assim tristonho!”

“Eu já lhe disse que ele anda por aqui.
Acho melhor você tomar muito cuidado!”
Chantecler pôs-se a pular por todo lado,

mas acabou adormecendo por ali,
com um olho só, o outro ainda aberto,
pois dentre os galos ele era o mais esperto!

RENARD E CHANTECLAIR II

Pensando então que estivesse adormecido,
Renard mais que depressa deu um bote,
mas Chantecler desviou o seu congote:
“Pensou em vão me pegar desprevenido!”

“Meu primo-irmão, estou mesmo surpreendido!
Nenhum mal vindo de mim será seu lote!
Vim visitá-lo, quero escutar seu dote,
jamais cantor melhor eu tenho ouvido!...”

“Salvo o de Chanteclã, seu belo pai...
Mas acredito que seu canto seja igual!...”
E Chantecler soltou um forte cacarejo!...

“Mas com um olho aberto, não se vai
apreciar bem a sua potência triunfal!...
Chanteclã fechava os dois, não é gracejo!”

Chantecler fechou os olhos, lisonjeado
e então Renard o seu pescoço abocanhou!
E pelo valo da entrada se enfiou,
o pobre galo meio a meio sufocado!...

Mas as galinhas ergueram um alto brado
e toda a gente da granja despertou
e até Constant Desnos se aproximou
para saber a razão do desagrado!...

E lhe disse Pintada: “É o Chantecler,
que foi caçado por Renard, o Raposão!”
E logo foram organizar perseguição,

mas daí que abrissem um portão qualquer
Renard já era o senhor da situação,
longe demais para agarrá-lo então!...

Bem recordava de ter sido enganado
pelo outro galo, que comera só por sorte!
Chantecler era animal de grande porte
e na corrida já ia ficando bem cansado!

Os camponeses, com cachorros do seu lado,
caso o agarrassem, lhe dariam pronta morte,
mas conhecido de cada atalho o corte,
no seu trote ainda seguiu, desesperado!

E à distância as vozes vão ficando,
Renard ficando já tranquilizado,
o pobre galo a perder as esperanças,

o seu pescoço apertado, sufocando,
sem esperar ser agora resgatado,
os dentes de Renard iguais que lanças!

Os camponeses bem atrás, sempre a gritar,
e os cães perderam do Raposão a vista,
pois escolhera de um riacho a pista...
De longe ouvia:  “Ele fugiu!...  Que azar!...”

E Chantecler também tentou cacarejar;
as suas penas, uma a uma, logo enrista,
Renard, já bem seguro da conquista,
bem tolamente ladrou: “Fugi!... Que azar!...

Pois de imediato soltou-se Chantecler,
Batendo as asas para um galho alto!
Pensou Renard: A gente morre pela boca!

Pegar o galo outra vez ainda quer,
sem alcançar o desmedido salto...
E arrependido, retornou para sua toca!...

RENARD E O CORVO TIERCELIN I – 13 AGO 2016
(Esta história foi também aproveitada por La Fontaine em uma de suas Fábulas.)

Certo dia, em que a fome lhe apertava,
depois de correr muito e já cansado,
deitou-se o Raposão, bem estirado,
sob uma Faia, cuja sombra lhe agradava.

Realmente, um bom lugar achava
para uma sesta... e ali teria demorado
se não estivesse seu estômago apertado,
sem encontrar a comida que buscava!

Porém, naquele calor da meia tarde,
foi-se deixando por ali ficar,
sem ter vontade de se levantar,

mas sem dormir, já que a fome muito arde
e apenas água bebera o dia inteiro,
sem achar sequer frutinhas no terreiro!

Ao mesmo tempo, em granja próxima dali,
Dona Brigitte seus cem queijos cuidava,
sem notar que bem perto já rondava
o Corvo Tiercelin, que farejava por ali!... (*)
(*) Pronuncie “Tircelan”.

Tivesse visto que a ave estava aqui,
seguramente ao ladrão ela espantava,
mas no silêncio da tarde, sossegava:
deixando os queijos, foi cuidar de si...

E Tiercelin a sua chance aproveitou,
para a corda mergulhou, num belo salto,
pegando um queijo gordo e saboroso!...

E na mais pura zombaria, crocitou,
a subir muito depressa para o alto,
a pobre velha no rancor mais pavoroso...

“Traga meu queijo de volta, seu ladrão!”
“Por que virou-me as costas, desatenta?
A minha fome este queijo hoje contenta!
Doravante, vá mostrar mais atenção!...”

Muito alegre, ele voou sobre a região,
com o alimento que em seu bico se apresenta,
até uma Faia encontrar e em galho senta,
ali pousando na maior satisfação!...

Ora, por uma estranha coincidência,
era essa a árvore sob a qual nosso Renard
dormitava, ainda cheio de preguiça...

Decerto algo aguardando com paciência
que sobre ele fosse a sorte derramar,
sem precisar empenhar-se em grande liça!

Tiercelin se pôs feliz a debicar
o seu queijo amarelo e gorduroso...
Uma migalha foi descendo, em voo airoso,
junto ao focinho de Renard indo tombar...

De imediato, já começou a planejar
dele tirar não só o queijo tão formoso,
porém caçar o próprio corvo saboroso,
que a Malpertuis, seu lar, iria levar!...

E foi dizendo: “Meu Compadre Tiercelin,
trazes no bico um novelo de boa lã...
Irás usá-lo para forrar teu ninho?...”

“Olá, Renard!” – disse o Corvo, desconfiado,
sem mencionar ter um queijo bem salgado,
que por seu gosto comeria, bem sozinho!...

RENARD E O CORVO TIERCELIN II

“Você ainda canta, meu sobrinho?
Sei que foi músico em sua mocidade...
O seu pai, Rourd, ainda melhor, na realidade, (*)
mas gostaria de escutá-lo só um pouquinho...”
(*) Pronuncie “Rur”.

Tiercelin, que era um tanto vaidosinho,
soltou um grasnido, com ferocidade,
de machucar-lhe os ouvidos, sem piedade...
Mas ocultando seu desgosto tão mesquinho:

“Ora, bravo, Tiercelin!... Mas seu novelo
de lã amarela não lhe atrapalha o canto?”
Sentiu-se o Corvo ainda mais embaraçado...

“Quero ouvir outra vez seu canto belo!...”
Tiercelin abriu o bico, em seu espanto,
caindo o queijo do Raposo bem ao lado!...

Porém Renard fingiu então surpresa:
“Ora, é um queijo!  Pensei ser um novelo...
Realmente, um laticínio muito belo,
mas o doutor me proibiu esta beleza...”

“Recomendou-me boa dieta, com certeza...
Comi uma lebre, sem tirar-lhe o pelo,
no meu estômago ficou dura como gelo...
Pegue seu queijo!  Em armadilha ficou presa

“minha pobre pata... Mal consigo me mexer...
A minha sorte é que não se quebrou,
mas tenho de deitar-me bem quietinho,

“pelo menos até que pare de doer!...
Pegue seu queijo!...” – de novo lhe falou,
“Não se arreceie deste pobre doentinho!...”

Tiercelin desceu do galho, lentamente,
foi adejando com insegurança,
naquele espertalhão sem ter confiança,
porém do queijo sua gula é mais valente!

Pousou um pouco longe, bem prudente.
“Ora, daí o seu queijo não alcança!
Chegue mais perto, tenho cheia a pança,
deixou-me a lebre grande azia ardente!...”

E Tiercelin foi chegando, “de a passinho”,
até seu queijo poder alcançar,
Renard ficando imóvel no lugar...

Então o Corvo avançou, devagarinho:
“Você promete que não vai me atacar?”
“Pois não vê que estou ferido, meu sobrinho?”

Mas no momento em que chegou bem perto,
deu-lhe Renard um bote repentino,
sem dor na pata... feroz e assassino!...
Porém o Corvo mostrou ser mais esperto,

pulando para trás, em salto aberto!...
Só quatro penas, no salto de inopino,
pôde Renard lhe arrancar, em falso tino,
sem o Corvo sofrer destino certo!...

“Queria me comer também, traidor?”
“Só pretendia lhe dar abraço amigo...”
“Não pensa que me engana, espertalhão!”

“Fico com o queijo ao menos, meu amor!
Nunca se esqueça do que diz ditado antigo:
Perdão merece quem rouba outro ladrão!”

RENARD E OS PEIXES I – 14 AGO 16

Houve um inverno realmente rigoroso,
comida sem se achar em parte alguma;
Renard de fome em seu castelo espuma,
porem o frio era lá fora pavoroso!...

Dona Hermeline lhe disse: “Meu formoso,
Furacerca e Malatesta já nenhuma
comida têm!   De sair terás na bruma,
para a teus filhos trazer prato bem gostoso!...”

“Ou mesmo algo de ruim que mate a fome!
Não sentes pena de mim e dos filhotes?”
“Pouco me agrada sair deste castelo,”

disse Renard.  (Ninguém contudo assim o tome:
era uma cova com muitos biricuetes,
mas quente, seca e segura em seu desvelo.)

Renard, de má vontade, levantou-se,
pôs o focinho para fora e suspirou...
O frio do inverno logo a seguir ele enfrentou
e para a estrada real encaminhou-se.

Bem no meio do caminho ele agachou-se
e com cuidado os ares farejou:
cheiro de peixe nas narinas lhe chegou;
para artimanha então aparelhou-se...

Assim que ouviu o ranger do carroção
na estrada se deitou, bem estirado:
com tanto frio, bem depressa congelou!

Dois carroceiros chegaram na ocasião,
um caminhando, em passo compassado,
que da boleia o vento forte o espantou!...

Viram o bicho deitado ali na estrada
e imaginaram qual animal seria:
que era um lobo ou texugo parecia,
tendo Renard uma forma avantajada...

“Será que dorme ou morrera congelada
essa tal fera que por ali jazia?...”
Com o bico da bota um o atingia,
porém Renard pretendeu não sentir nada...

“É uma raposa, maninho... Está coberta
pela neve e parece mesmo morta...”
A boca experimentou com seu bastão...

Fez-se bem dura a criatura esperta,
mesmo a causa esticada, em nada torta.
“Morreu mesmo.  Mas é sorte, meu irmão.”

“Essa pele nos dará um bom dinheiro!”
“Então a ponha na carroceria;
lá na estalagem a gente a esfolaria,
com garantia de um preço bem certeiro!”

Havia barricas e muitos cestos em poleiro,
estufados de peixes ou de enguia,
que na feira um bom dinheiro renderia,
na sexta-feira seria o lucro bem maneiro!

E Renard conservou-se todo duro,
tal qual se morto de fato estivesse
e sobre os peixes foi assim jogado!...

Dentro do toldo da carroça estava escuro
e pela estrada manquitolando desce,
ante a comida quase louco de esfomeado!

RENARD E OS PEIXES II

De fato, era parcial o fingimento,
com tanto frio, ele quase congelara
e sem dificuldade se esticara,
a pretender um total congelamento.

Mas na carroça encontrou aquecimento,
já que a lona em toda a volta se fechara
e do frio a pouco e pouco se livrara,
ainda aguardando o seu melhor momento...

E ao ouvir que os carroceiros conversavam,
a calcular quanto a sua pele renderia,
abriu os olhos e espiou o que ali havia,

percebendo que os sacos mal fechavam...
E com os dentes, logo um laço desfazia:
cem lindos peixes ali dentro se encontravam!

Logo se pôs a comer, sem mais receio:
havia pescado, arenques e sardinha,
namorados, linguados e tainha,
comendo tudo o que achava de permeio!

Em dois minutos o saco estava pelo meio
e mesmo assim, a sua fome era daninha!
Breve do fundo do saco se avizinha,
desesperado pelo saboroso veio!...

E os carroceiros nada perceberam:
com toda a gana, ele comia silencioso,
mas com as orelhas abertas e espichadas!

Assim depressa os seus membros se aqueceram,
mas continuava comendo, de guloso,
de seu estômago as paredes alargadas!

Julgou então ser o momento de ir embora,
contudo estava cheio em demasia
e percebeu seria bem lenta a correria,
sendo forçado a aguardar mais uma hora!

Finalmente, escutando sons de espora,
percebeu já estar perto a hospedaria!...
Ficar mais tempo não mais conseguiria!
Se ia escapar, deveria ser agora!...

Devagar, abriu a lona da traseira,
vendo os rastros da gaiola sobre a neve:
muito longe se encontrava o seu “castelo”

de Malpertuis... Mas era a hora derradeira
e a enfrentar a jornada então se atreve,
para a família carregando um prêmio belo!...

Abriu o saco em que enguias havia
e enrolou quatro à volta do pescoço;
um bom salmão mordeu em bom retoço
e então saltou para a gelada via!...

Um carroceiro escutou quando fugia:
comera tanto que ficara grosso!...
E perseguiu-o então o pobre moço,
porém Renard mais veloz que ele corria!

Os infelizes ficaram no prejuízo
e Renard chegou à toca, finalmente,
seu botim entregando à sua família!...

Sabendo bem que ninguém, em seu juízo,
o iria caçar em um frio tão inclemente
e que em sua cova nem sequer um galgo o pilha!



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