sexta-feira, 30 de setembro de 2016



SHIRAZ  (3/11/2010)
Duodecaneto de William Lagos

                                 (TÚMULO DE SAADI, SHIRAZ)

SHIRAZ  I   

Com dedos de renovo, tocarei
de teus olhos nas duas comissuras...
Em tua retina só deixarei as puras
visões do bem que contigo viverei...

As sobrancelhas, de leve, seguirei
e todas as lembranças mais impuras,
toda a imundície, falsidão, agruras,
com dedos de renovo, apagarei.

Depois, eu tangerei as tuas pestanas:
de cada uma, tirarei uma tristeza,
para que aos poucos, sem notar, remoces...

Mas a saudade, em que de mim te irmanas,
eu deixarei, sem destoar de tua beleza,
para que as lágrimas só te escorram doces...

SHIRAZ II

Eu tocarei nas outras comissuras
que demarcam de teus lábios os dois cantos
e delas tirarei marcas de prantos,
as feições a tornar-te menos duras.

Alisarei algumas rugas mais escuras,
que se formaram quais dobras de mantos
das vestes empoeiradas desses santos
que vão buscar em súplicas por curas.

Farei com que se tornem mais suaves
essas marcas da feroz melancolia
com que o tempo sorrateiro te marcou

e tua boca será de vinho as caves,
a tua saliva saborosa da elegia
que em tantos beijos já me embriagou.

SHIRAZ III

De carícias coroarei os teus cabelos,
onde as raízes já se fizeram brancas,
ante a vaidade, com que só as muito francas
dentre as mulheres não demonstram zelos.

Pelo meu toque manso, em cem desvelos,
eu quebrarei do tempo as duras trancas
e a cor devolverei das velhas tranças,
antes que nelas repousassem gelos.

Percorrerei assim cada madeixa,
num gesto leve de pressão sutil,
o crânio massageando com carinho

e a melanina ali meus dedos deixa,
a aquarelar qualquer sinal senil,
enquanto os lábios sorvo de mansinho.

SHIRAZ  IV

Percorrerei tuas rugas bem de leve,
pés de galinha no canto de teus olhos,
sob as pálpebras a rede dos refolhos
em que a vida transmutar fácil se atreve.

E buscarei, com mais um toque breve,
patas de aranha, do nariz escolhos,
correndo para o queixo e santos óleos
ali ungirei, da forma que se deve

depor tiara na cabeça da rainha,
e as fendas encherei, uma por uma,
por um processo de que eu só tenho o segredo,

para a beleza antiga, que foi minha,
retornar a essa pele que perfuma,
com gentileza, a polpa de meus dedos.

SHIRAZ V

Indagarás, talvez, com que poder
de ti eu posso afastar senectude;
bem natural em ti essa atitude,
nessa descrença de todo o humano ser.

Afinal, vazias promessas combater
faz parte da experiência, sem virtude,
quando a memória a teu passado alude,
de tantas falsas a lembrança conceber.

Não obstante, minha promessa é verdadeira,
porque possuo, realmente, tal pendor,
que a muito poucos outros satisfaz;

é inegável que a promessa mais certeira
sempre foi feita no mais sincero amor,
porque, afinal, sou o Mago de Shiraz!...

SHIRAZ VI

Apenas julgas saber esse que sou,
a quem chamas desde sempre pelo nome;
porém minha vida no passado some,
apenas fingi nascer onde hoje estou.

O meu feitiço só aos poucos penetrou
nessa lembrança que o real carcome,
nesse mesmérico poder que assim te dome:
somente eu sei de onde venho e aonde vou.

Recorda apenas que só me conheceste
quando mostrava talvez quarenta anos,
com um passado mais ou menos trágico,

mas meu viver anterior nem percebeste,
envolto nos mil véus dos desenganos:
vim de Shiraz no meu tapete mágico...

SHIRAZ  VII   

E é desse modo que então conseguirei
apagar de tuas feições qualquer estrago;
que o tempo, por sua vez, também é mago,
quando aplica sobre ti maldosa lei.

Porém mago mais potente eu saberei
ser para ti com todo o meu afago;
os passos de tua vida não indago,
salvo no instante em que te vi e então te amei.

Doravante, ao te doar a juventude,
de ti não cobrarei o menor preço,
nem condição impor de grau fortuito;

amor poder comprar ninguém se ilude;
por tal esforço só anelo o teu apreço
e algum amor, se queres dar, seja gratuito...

SHIRAZ VIII

Assim permite que as dobras do pescoço
e aquelas que já espiam sob o queixo,
que com a língua, levemente, eu mexo,
possa apagar, ao me dares teu endosso

que te torne inteiramente o rosto moço,
se bem não penses que da face atual me queixo;
o rosto humano é o oposto a cada seixo:
eles se alisam enquanto o nosso fica grosso.

Mas com beijos a minha mística saliva
fará que a pele se vá aos poucos hidratando:
perde a aspereza a calçada em que se pisa

e assim o meu frescor tua carne ativa,
a pele elástica de novo se tornando,
pelo carinho que o amargor alisa!...

SHIRAZ IX

E a epiderme já marcada de teu colo,
no ardor do Sol e no peso de teus seios,
eu saberei reerguer, sem mais receios,
no movimento de cura com que a enrolo.

Meus punhos são esponjas e, sem dolo,
um linimento saberei passar nos veios,
tua carne lisa perlustrando nos permeios,
enquanto a polpa de meus dedos eu esfolo.

Mas te transmito minhas células perdidas
por estas mãos que murros nunca deram
as suas falanges evitando machucar

e destarte te darei as sobrevidas
conservadas nestes dedos, porque esperam,
desde outras vidas, tua carne acarinhar.

SHIRAZ  X   

Eu te busquei, sei que foste uma odalisca
em meu palácio secular de Baghdad;
amor maior do que esse meu não há,
capaz de transfixar a luz que pisca,

capaz de o tempo transpor numa só risca
da cor do arco-íris, que te encontrou já
na antiga vida em que te amei por lá
e que à vida atual chegar hoje se arrisca.

Só por anseio de ti, é bem verdade,
pois tal coisa não farei por ninguém mais,
a transmitir-te minha imortalidade,

na atual encarnação, que sem piedade,
já pretendeu te macular, como as demais,
na zombaria que intitulou Terceira Idade.

SHIRAZ XI

Descendo assim abaixo de teus seios
teu coração eu rejuvenescerei
e teus pulmões, sem esforço, saberei
limpar dessa fumaça e dos enleios

que aspiraste no engano dos anseios;
também teu fígado e teus rins eu poderei
tornar mais puros e assim renovarei
as tuas entranhas em todos seus permeios.

Dançarei em tuas artérias e abrirei
esses caminhos que o sangue percorria,
veia por veia te desentupirei

e os ligamentos das articulações
restaurarei em idêntica magia,
pernas e braços com todas suas flexões.

SHIRAZ XII

E finalmente, em teus órgãos sexuais
penetrarei nestes termos de minhalma,
as Trompas de Falópio, em fresca palma,
assoprarei com meu canto triunfal!...

Teu útero e os ovários virginais
eu tornarei de novo – assim embalma
a aplicação fantástica da calma,
no restauro das membranas naturais.

Total e inteira te embelezarei,
a mocidade completa a renovar,
assim causando inveja a teu espelho;

e em meu espanto, então perceberei,
que depois de tantas graças te dotar,
a mim mesmo desgastei e fiz-me velho!...

William Lagos – lhwltg@alternet.com.br
Tradutor e Poeta – wltradutorepoeta@gmail.com
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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