domingo, 29 de julho de 2012

TARUGOS ÚMIDOS & BICHANOS



                                         
                                                Imagem: http://www.google.com.br/imgres
                                                                           

TARUGOS ÚMIDOS I  (Pequenos cilindros de madeira)

Quando eu morrer, será longe da noite,
sem que as estrelas brilhem ou que a Lua
se dispa de seus véus e toda nua
afaste da tristeza todo o açoite...
Quando eu morrer, não acharei acoite
nos tecidos escuros, em que estua...
Será do Sol a perfurar-me a pua,
será o azul do céu em seu afoite.
Será a mortalha cruel desse mormaço,
será a umidade plena de opressão,
a atmosfera que esmague meu pulmão.
Não morrerei à luz de teu abraço,
ó noite amiga, companheira de infortúnio,
quando o sangue se enegrece ao plenilúnio...

TARUGOS ÚMIDOS II

Quando eu morrer, já estarei ausente
do descantar brilhante das estrelas.
Mas sob o Sol, percorrendo as tarantelas
desse zodíaco de que eu mesmo não sou crente.
Esse caminho do sol indiferente,
durante o dia, em que as estrelas belas
ele mesmo obscurece e que nem vê-las
consegue, em seu passeio refulgente...
Foram antigos que copiaram seu caminho.
Sobre as constelações, devagarinho,
superpuseram os do Astro-Rei,
em marchas oscilantes, sem carinho
pelos destinos dessa humana grei,
que muito amo, mas em que nunca confiarei.

TARUGOS ÚMIDOS III

De que maneira os astrólogos sumérios
sobre as estrelas engastaram sol?
Em longos couros do melhor escol,
na proteção de seus eremitérios,
foram traçando, com cuidados sérios,
as estrelas agrupadas em seu rol
como constelações e, em seu farol,
acolheram seus arcanos despautérios.
Porém viram que o Sol muitos sendeiros
seguia ao transcorrer de cada ano
e assim, por um esforço sobre-humano,
calcularam suas passagens, de janeiro
a dezembro, em tais agrupamentos
de estrelas, por vetustos julgamentos.

TARUGOS ÚMIDOS IV

Mas esse couro, mesmo bem curado,
tendia a enrugar-se e a desvirtuar
esses caminhos que tentavam retraçar.
E assim, o prenderam, lado a lado,
com tarugos de madeira, que esticado
conservaram esse seu mapa estelar,
por que melhor pudessem calcular
esse destino por deuses revelado.
E os caminhos do Sol foram traçados
em longos tentos, depois sendo aplicados,
diariamente, pelos tais verdugos
que obrigaram o Sol, sob tortura
a revelar constância bem mais pura,
e cujas pontas prendiam com tarugos!...

TARUGOS ÚMIDOS V

Mas por que a Lua deixaram assim de lado?
Quais as mulheres, ela era inconstante...
E quantas vezes comparada essa brilhante
deusa tem sido ao feminino agrado!...
Pois se o caminho da Lua era indicado
muito mais claramente, em elegante
arco noturno de prata cintilante,
melhor zodíaco teriam então traçado!
Melhor horóscopo criaram os ciganos,
das práticas hindus rememorado:
é a Lua que percorre o firmamento
e nos revela assim seus treze arcanos...
Mas os sumérios um sistema haviam criado
que sobre o doze tinha fundamento!...

TARUGOS ÚMIDOS VI

Por isso foi a Lua rejeitada
como fiel da balança do destino...
Umedeceram seus tarugos para o fino
filtrar dessa luz amarelada...
Cada arúspice em disciplina airada,
cada áugure em seu próprio desatino
e o fulgurátor, de um raio pequenino,
previa o futuro a partir da madrugada...
Mas eu sempre preferi a luz da Lua,
por inconstante que seja e que me esconda,
a cada quarta semana o seu carinho...
E assim, quando morrer, será na pua
cruel e adunca, que carne e alma sonda,
do Sol de estio, que resseca meu caminho...

BICHANOS I

Dizem que os gatos, quando vão ao gatotório,
não morrem totalmente, porém deixam
dez por cento da alma aos que mereçam
a felina proteção como envoltório...

Bem do outro lado, fica o canitório,
mas os caninos não passam, quando tentam
cruzar essa barreira, ainda que intentam
só brincadeiras, em seu brando pulgatório...

(Pois certamente as pulgas têm seu céu!...)
Mas esses dez por cento, aqui na Terra,
o lar protegem daqueles que os amaram.

Seus pêlos constituindo um forte véu,
não caçam pássaros, só a ratos fazem guerra
recompensando àqueles que os criaram...

BICHANOS II 

Não há dúvida que os gatos são estranhos:
têm sete vidas, segundo a nossa crença.
Mas para os nórdicos, existe diferença:
têm nove almas para seus assanhos...

Quando gatinhos pretendem mais acanhos
e manifestam a teu colo indiferença,
é justamente quando sua gatença
deseja mais carinho e mais amanhos...

Na verdade, da casa são senhores
e fazem o que querem ou se negam.
Não se julgam na menor obrigação,

mas aos humanos concedem só favores.
E mesmo quando as pernas nos esfregam,
pêlos nos deixam como em grande doação!...

BICHANOS III

Contudo, muitas vezes se arrepiam,
olhando em torno ou talvez pelas janelas;
o lombo arqueiam, mostram as costelas
e, de forma inquietante, logo miam...

Existem muitos que até deles se fiam:
coisas que veem, nós não podemos vê-las;
tem percepções que não podemos tê-las
são malignas presenças que assim viam...

E que, com seus chiados, proteção
concedem a quem mora no seu lar,
franca defesa contra elementais...

Porém esses avisos que assim dão,
que a tanta gente costumam assustar,
podem ter causas bem mais naturais...

BICHANOS IV

É certo que não veem as mesmas cores,
segundo os testes laboratoriais,
porém enxergam comprimentos mais
e bem melhor distinguem os odores...

Do senso de equilíbrio são senhores,
seus bigodes são radares naturais;
suas pupilas minúsculos sinais
conseguem captar dos roedores...

Ou dos insetos que invadem nossa casa;
amplos limites possui sua audição:
dos sons dominam bem maior alcance.

Assim, aquilo que a nós mesmos vaza
é captado por sua fina percepção,
que identifica sua caça num relance...

BICHANOS V

E embora isso refute tal crendice
de que possam outros seres contemplar,
tampouco pode inteiramente deslindar
essas estranhas sensações de fantasmice

que as pessoas isoladas, assim diz-se,
perpassam, quando escutam seu miar,
em sons horripilantes, de arrepiar
os cabelos e que a espinha lhes atice...

Afinal, se eles possuem tantas vidas,
sejam sete, sejam nove, tanto faz...
Alguma delas será mais fantasmal,

atenta às emboscadas e investidas
de criaturas errantes e sem paz,
que veem em nós sua presa natural...

BICHANOS VI

Por isso, trate bem o seu gatinho
e sua condescendência lhe conquiste,
que a proteção de tua morada assiste
contra a chegada indesejada de um vizinho...

Especialmente, quando estiver velhinho
ou a impressão te der de que anda triste,
ou no alto dos telhados não se aviste,
mas prefira encolher-se num cantinho...

Assim, quando partir ao gatotório,
deixa contigo alguma de suas almas,
para servir de teu lar como envoltório,

que não verás, mas teu instinto diz,
sua presença transmitindo estranhas calmas,
a cada vez que comichar o teu nariz!...  

Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

ROTA DAS CORUJAS & CASAMENTO REAL



                             Imagem: http://vibedeck.com/drmsounds


ROTA DAS CORUJAS I

Pois esta noite me passou o sono:
pegou um antigo ferro de engomar
e depois de inteiramente o alisar,
dobrou-o num cantinho, ao abandono...

Eu raramente no dormir ressono:
acordo facilmente, ao escutar
qualquer ruído que possa perturbar
esses minutos de que o descanso é dono.

Mas esta noite, quando o procurei,
a noite completara o expediente
e fora para casa descansar...

Por todo o canto olhei, mas não achei
esse sono bem passado e, infelizmente,
fiquei a noite com os olhos sem pregar...

ROTA DAS CORUJAS II

Os olhos eu preguei com frias tachas,
como as que usavam ao pregar sapatos,
quando a sola trocavam, que buracos
apresentavam ou mesmo algumas rachas.

As pálpebras tornaram-se assim caixas
onde guardar os sonhos timoratos,
marchetados pelos mais estranhos fatos:
os pesadelos atados com mil faixas...

Pensei usar também dois parafusos,
com porcas e arruelas e, no escuro,
o sono que eu perdera voltaria...

Como sonâmbulo de passos abstrusos
o sono procurei, em esforço duro,
sem encontrar a sombra que fugia...

ROTA DAS CORUJAS III

A sono solto queria ter dormido,
mas a noite o prendeu em cela escura,
com um grilhão ao pé e algema dura,
no fundo da prisão bem escondido...

Não sei qual fora o crime cometido
pelo meu pobre sono, que à tortura
foi também submetido, em sala obscura,
sem lhe contarem por que fora retido...

A meu advogado fui, até,
telefonar, para ver se conseguia
um habeas corpus para a pobre criatura,

de nenhuma acusação que fora ré...
Mas para a própria proteção o prendia
a autoridade, negando sua soltura.

ROTA DAS CORUJAS IV

Durou três dias seu interrogatório.
Mas o meu sono está preso!... E eu, que faço?
Três dias aguardei, no esfregaço
das pálpebras, nesse meu destino inglório.

Se fosse para apressar emunctório,
eu tomaria um purgante e logo o espaço
interior se esvaziaria sem mais traço...
Mas bem diverso é este peditório...

O sono preso não tem mais solução,
enquanto essa polícia não o largar...
Posso fechar os olhos, me deitar,

porém somente sonha o coração,
no devaneio, em que o sono pedes
e só o vês escorrendo das paredes...

ROTA DAS CORUJAS V

O sono, assim diziam os antigos,
é irmão carnal e auxiliar da morte.
Existem muitos que têm a simples sorte
de passar de um a outra sem perigos...

Contudo, da magia os mais amigos,
são os únicos que da irmã fazem a corte
e se voltam para o irmão no mesmo porte,
vendo nos dois idênticos abrigos.

Mas é no sono que visito minhas cidades
e encontro essas pessoas que conheço,
que mal consigo relembrar ao despertar,

recoberta minha visão de opacidades.
Mas lá os encontro e sempre reconheço,
nessas memórias que a luz vem apagar...

ROTA DAS CORUJAS VI

Mas sempre dormi pouco.  A noite bruna
tem para mim diversa utilidade:
é nela que trabalho de verdade
e os versos se libertam à luz de Luna...

Quando adormeço, até a poesia se esfuma
e coisas faço no sonho em variedade.
Mas não recordo que dos versos a vaidade
eu tenha escrito no meio dessa bruma...

Prefiro até, por isso, não dormir.
Bem acordado, o dom se reafirma,
desfruto o sono em forma de sonetos.

E prego as pálpebras nesse redigir
e enquanto passo o sono, se confirma
a multidão dos sonhos mais secretos...

CASAMENTO REAL I

Katherine se casou numa abadia,
em que há séculos se casa essa nobreza,
os superiores da velha raça inglesa,
mais um espírito do que uma etnia.

A quarta parte do mundo assim a via,
de cauda longa, esbelta em sua beleza,
branco de virgem mostrando em altiveza,
que mais que o mundo inteiro tem valia.

Mas nesses tempos de tanta carestia,
prendeu sobre a cabeça um longo véu,
com a tiara de brilhante strass...

Comprada em Porto Alegre, que alegria!
Como lembrança deste dia de céu,
que a Casa Sloper alegremente traz!...

CASAMENTO REAL II

Na verdade, nem sei se ainda existe
a velha Casa Sloper, em que bijus
confeccionavam com os vidros crus,
perante cujo brilho até desiste

o diamante verdadeiro e que consiste
a glória de um momento para os nus
de bolso e de carteira e que seduz
quem em pompa e circunstância assim insiste!...

É que depois que ocorreu a grande crise,
que afetou a Irlanda, Grécia e Portugal
e derreteu a poupança da vovó,

Carlos Não-rei, que mal sabe aonde pise,
veio a tiara alugar num carnaval,
dizendo que iam usar num dia só!...

CASAMENTO REAL III

E, na abadia, os Duques de Clarence,
trocaram votos com a dignidade
com que consagra a sua nobilidade,
por tantas gerações que mal se pense...

Mas essa crise até os nobres vence!
É militar o William, sem maldade,
outro sinal dessa incorruptibilidade
com que a honra britânica se adense.

Assim, com muito amor por sua esposa,
mas com um certo trabalho, ele enfiou
um belo anel, que as núpcias afiança.

Meio trancou nos espinhos dessa rosa...
Como o salário de piloto não bastou,
só conseguiu comprar uma aliança!...

CASAMENTO REAL IV

Porém esse ritual foi anglicano,
e chamou a atenção do mundo inteiro!
Ao verem tal prestígio alvissareiro,
a inveja despertou no Vaticano!...

Os cônegos iniciaram um insano
labor para encontrar um derradeiro
codicilo no código Romeiro,
que lhes tornasse o Papa mais humano.

Mas tudo foi em vão! Pois nenhum Papa
poderá legalmente se casar...
E o concubinato é tido como imundo.

E assim, por defender a ilustre capa,
como forma de tal boda eclipsar,
resolveu beatificar Paulo Segundo!...

CASAMENTO REAL V

Ao saber dessa notícia, Elizabeth,
Suprema Chefe da Comunhão Anglicana,
percebeu que seria desumana,
se não jogasse ao Papa algum confete...

Contra os católicos do reino não se mete,
seria política até bastante insana.
Há pouco tempo, uma visita arcana
do Papa a Londres consentiu enquete.

Dando pompa e circunstância a seu rival,
embora isso ao Arcebispo desgostasse,
lembrou-se assim que branco e amarelo

São as cores vaticanas, afinal!...
Para que gesto cordial lhe demonstrasse
usou conjunto amarelinho muito belo!

CASAMENTO REAL VI

E foi assim: os duques se casaram
e se beijaram perante dois bilhões!...
Não só assistidos em mil televisões,
mas por todos que na Web conectaram!

Outros milhares foram e ocuparam
barracas a granel.  E grandes multidões
formaram filas, mostraram corações,
nos mil cartazes com que lhes acenaram.

E é assim que permanece a monarquia:
em cada rosto o orgulho reluzia,
partilhando da real estabilidade...

E o respeito com que tanto os aplaudia,
manifestava esse lema em que ainda cria:
"Sempre haverá uma Inglaterra", na verdade!...



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domingo, 15 de julho de 2012

ACANTOBDELÍDEOS & MIÇANGAS



                                           Imagem: http://www.artilim.com/artist/helleu-pau   

 

MIÇANGAS I 

Tal qual Electra, de cabelos arrepiados,
a mão crispada contra suas madeixas,
qual um recuerdo das mais antigas queixas,
ela me encara, com olhos espantados.

Não sei quais sentimentos expressados
serão por tal mulher, em suas endeixas,
sua boca a sugerir sabor de ameixas,
na vastidão dos beijos apressados...

Porém sugere mais é desespero,
mas certamente apenas representa:
não mais se encontra na primeira juventude.

E sua expressão projeta assim um mero
gênero dramático, pelo qual intenta
mostrar talento maior que o corpo a ajude.

MIÇANGAS II

Já percebe ter trocado por miçangas
os anos de valor da mocidade.
Conquistou seu prestígio, é bem verdade,
mostrando o corpo em bem exíguas tangas.

Mas agora se limita a não ter mangas,
em seus vestidos de discreta opacidade.
Sua primeira sedução se evade,
mais evidentes já se mostram gangas.

E assim, ela pretende ser atriz,
deixando atrás o fado de modelo,
suas poses com visas mais enfáticas,

para indicar, afinal, que sempre quis
demonstrar mais talento que desvelo,
em peças de teatro mais dramáticas. 

MIÇANGAS III

Contudo, se de perto a observo,
nessa expressão de falso desespero,
por trás do rosto ainda me apodero
de outra face, pela qual me enervo.

E nessa cara disfarçada espero
achar significado que conservo,
não que jamais pretenda ser-lhe servo,
mas compaixão eu sinto e nela quero

desvendar o que está por trás de tudo:
seu desespero é real e não me iludo,
ela só finge desespero ao ocultar

essa angústia real, a leve sombra,
que já procura se desvencilhar,
mas cuja rebeldia tanto a assombra.

MIÇANGAS IV

Não que ela use miçangas ou colar,
nem qualquer tipo de balangandãs,
nem brincos, nem pulseiras, coisas vãs,
que mais beleza intentam ressaltar...

Apenas busca o colo revelar:
o pescoço sem rugas ou malsãs
pintas do sol.  Que o leque de seus fãs
ainda a possa por bela admirar...

Também nos ombros, nas axilas depiladas,
conserva a pele as perfeições rosadas;
mantém ainda toda a sua esbeltez.

Mas já enfrenta a cruel competição
dessas mais jovens musas convocadas
para se exporem com maior desfaçatez.

MIÇANGAS V

Decerto sabe que já perdeu terreno:
uma modelo tem vida muito breve...
Alguma ao suicídio até se atreve,
para tornar-se em mito, por veneno,

cortando os pulsos ou, de jeito mais ameno,
tomando barbitúricos... que assim ceve
a sua vaidade, que a lembrança deve
perdurar por período não pequeno.

Mas não é o caso, porém, desta mulher.
O tempo ela combate, na armadura
de quem busca escolher novo mister.

Pois já percebe haver a sombra escura
e continuar nas passarelas já não quer,
mas sobre os palcos seu viver perdura.

MIÇANGAS VI

Contudo, também sabe o que perdeu.
"Onde foi que deixei a juventude?"
Parece até indagar e não se ilude
que possa retornar o que esqueceu...

Pois outras perdas quem sabe já sofreu:
a um filho que não teve assim alude;
ou imagina onde largou a sua saúde,
trocada por miçangas que escolheu...

Mas essa vida, que em seu rosto escoa,
guarda no olhar os traços da ternura,
talvez aguarde ainda o seu amor...

Mas seu príncipe encantado marcha à toa
e nem sequer enxerga nela a pura
centelha vespertina do candor...                     



ACANTOBDELÍDEOS I
(Pequenos animais marinhos aparentados com as estrelas-do-mar.)

Será no nunca que meu barco vou ancorar.
Já demorei em outros portos por demais;
já esgotei as boas-vindas do jamais
e assim alhures tenho de arribar...

Numa enseada escondida e sem corais,
contra as marés que correm desde o mar,
sem recifes ou escolhos, vou buscar.
minha proteção contra golpes mais fatais...

E se na praia do nunca eu me atracar,
lá lançarei duas âncoras pesadas,
senão me forçam as marés a encalhar,

ficando ali minhas mágoas estilhadas,
contra as areias do olvido a perpassar,
jogando o antanho com mil cartas marcadas.

ACANTOBDELÍDEOS II

Nesse jogo do presente com o porvir,
somente guarda tempos meu antanho:
na sua memória tem lugar tamanho
para todos esses lances perquirir

que meu passado já viu tremeluzir,
porque o presente, em seu imenso assanho,
namora as musas de perfil de estanho,
por quem se deixa facilmente seduzir...

E assim corre o presente, esse infiel:
esquece o amor de hoje; e o amanhã
persegue, a ansiar por sua nudez...

E não se dá guarida e nem quartel,
mas feito louco, se atira em busca vã,
sem jamais se contentar com o que já fez.

ACANTOBDELÍDEOS III

É doidivanas o presente aventureiro:
esquece o amor e a fúria do momento,
lança-se à frente, em descontentamento,
sem nunca ter repouso verdadeiro.

Apenas flui, no instante corredeiro:
beija uma hora, em sedutor intento
e logo beija outra, em violento
adultério com o tempo por inteiro!...

Ah, presente que não posso conservar,
por mais que meu instante seja belo!
Enquanto, às vezes, somente por pirraça,

parece se deter, a maltratar,
quando em tristeza o coração congelo,
sem que a mágoa constante se desfaça!

ACANTOBDELÍDEOS IV

Mas o presente é assim: promiscuidade
é sua característica principal.
E como é perdulário o seu final!
Pois tudo entrega ao passado, sem piedade.

E nem sequer por prodigalidade:
é tão só por natureza mercurial;
não passa de um atalho perenal
entre o passado e o porvir da humanidade.

Como é fugaz o instante do presente!
Não é o dia que se chama hoje:
Metade já é passado e se pressente,

na transição do momento que nos foge,
que a outra inteira no porvir se assente,
sem que o presente em ponto algum se aloje.

ACANTOBDELÍDEOS V

E que é o futuro, então, senão a bruma
das infinitas probabilidades?
Desses caminhos do mar, que sobrenades,
dessa senda que nos ares já se esfuma?

Ai, futuro!  Que assim se prende numa
vertente cristalina de vaidades
e então escorre, diretamente ao Hades,
em que toda esperança assim se espuma...

Mas só podemos contar com tal futuro
que, bem contado, depende só de nós.
Voltamos passos, em cada encruzilhada,

para o sendeiro que pensamos puro
e imersos na ilusão, vamos empós,
até que a senda se desfaça em nada...

ACANTOBDELÍDEOS VI

Assim, ancoro meu barco em solidez,
nessa enseada que descobri, talvez
em consequência das escolhas que já fez
o meu antanho, quiçá sem perceber

cada momento congelado do viver
e que não posso mais mudar a bel-prazer;
paralelepípedos lançou, a me prender,
nesse castelo de arenito e grês...

Mal domino o presente incontrolado,
mas tenho de laçar cada momento,
para que seja meu o meu porvir,

que, no instante seguinte, já é passado,
e já se afasta, em seu completamento,
quando o amanhã ainda posso construir...


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