domingo, 27 de maio de 2012

O RELÓGIO MARAVILHOSO


                                                   Uma pintura de Hall Groat: www.dailypainters.com


O RELÓGIO MARAVILHOSO

 (Homenagem a John Morressy)

O RELÓGIO MARAVILHOSO I

Era uma vez um pobre camponês
que labutava desde o arrebol,
desde o primeiro ao derradeiro mês.

E mesmo a trabalhar de sol a sol,
o seu trabalho de pouco lhe servia;
pegava, às vezes, peixes com anzol.

E desse modo um pouco melhor comia,
pois realmente era sáfara sua terra
e muito pouco sua colheita produzia. 

Pior ainda, o país vivia em guerra
e enquanto a tropa pisoteava a plantação,
se enfurnava num buraco de uma serra.

Mas um dia, carpindo com o enxadão,
desenterrou uma espécie de panela,
cavou ao redor e ergueu a alça de um puxão!

Agradeceu então sua boa estrela!
Estava cheia de moedas de ouro,
à luz do sol brilhantes como vela...

O lavrador recolheu o seu tesouro
e o carregou até a sua cabana,
escondido em seu gibão de couro.

E conhecendo a natureza humana,
guardou o dinheiro embaixo do fogão.
Sumiu dali por mais de uma semana.

Levou duas moedas no fundo do surrão;
numa cidade grande as foi trocar
por patacas de cobre, em profusão.

Com o dinheiro, logo foi comprar
roupas melhores em algum brechó,
mais montaria para cavalgar...

O RELÓGIO MARAVILHOSO II

E como o lavrador vivia só,
Comprou uma espingarda e uma pistola,
as moedas mentindo ser da avó.

Voltou à cabana, a dar tratos à bola,
sobre a melhor maneira de empregar
para o futuro, o seu ouro como mola.

O tal buraco já lembrara de tapar,
mas trouxe adubo para a pobre terra
e viu sua próxima colheita triunfar.

Alugou um carroção, subiu a serra
e foi vender a colheita na cidade,
por sorte era armistício de uma guerra.

Trocou outra moeda, sem dificuldade:
muitas de cobre, de prata só algumas;
de atenção não sentia necessidade.

Porém moedas facilmente esfumas
e foi, aos poucos, comprando umas terrinhas
de seus vizinhos, devagar, primeiro umas,

outras depois, sem parar de trabalhar.
Acabou por contratar um ajudante
e depois dois, para as terras amanhar.

E como seu esforço era incessante,
outra vez alcançou nobre colheita,
que novamente foi vender, constante.

Trocou várias moedas, desta feita,
como se fossem da venda o resultado
e a pouco e pouco, sua vida inteira ajeita,

mas sempre continuou bem atilado,
sem deixar de morar em sua choupana:
só num paiol o dinheiro foi empregado.

O RELÓGIO MARAVILHOSO III

Mas cedo ou tarde a sua prosperidade
acabaria por chamar boa atenção,
pelo rápido crescer da propriedade.

E acabou por sentir certa atração
pela mulher, muito trabalhadeira,
que contratara, por ter precisão,

como auxiliar e como cozinheira:
fazia comida para dez empregados
e ainda cuidava das galinhas da capoeira...

E sendo os dois assim acolherados,
o camponês acabou por se casar,
para que os filhos não nascessem difamados,

como dissera o padre, a lhe assustar...
E assim se celebrou o casamento,
sem a mulher desaponto lhe causar.

Ao contrário, veio logo o nascimento
de um menino saudável; e um irmão
no outro ano chegou em seguimento.

A essa altura, tornara-se o patrão
de mais de trinta e cinco lavradores;
comprou ovelhas e iniciou a criação.

Não dependia mais de seus suores
e acabou por nomear um capataz
para o controle de seus trabalhadores.

Mas o apetite dessa gente era voraz
e assim saía pelas matas a caçar,
sua mira se tornando bem veraz,

novas terras aos poucos a comprar,
inclusive reserva de boa caça,
já que eram tantos para se alimentar...

O RELÓGIO MARAVILHOSO IV

E embora fosse tão trabalhador,
seus filhos não paravam de chegar,
já dez meninos o fruto desse amor...

Mas a seguir, para a ninhada transformar,
vieram dez meninas numa fila!...
E quando a filharada se ia acabar,

chegou o caçula, bem na época da esquila,
mais um menino cheio de saúde
e para mais um batizado foi à vila...

Mas há ditado popular que não ilude,
quando se nasce num ambiente de fartura,
especialmente entre essa gente rude,

um enriquece, trabalhando até a loucura,
mas seus filhos já dividem tal riqueza:
ficam os netos na rua da amargura!...

E assim seus filhos não queriam trabalhar
e a choupana estava cheia até demais...
Pior ainda, não paravam de chegar

tios e primos da mulher, cada vez mais.
Vinham chegando a fazer uma visita
e ali ficando, por razões bem naturais...

E nem sequer esse aperto a alguém incita:
dormiam no sótão, outros nos galpões;
de cuidar dos animais faziam fita...

Já se empurravam na casa multidões,
a comer e a beber diariamente,
sem contribuir sequer com dois tostões...

E o camponês ainda caçava, diligente,
seus empregados a cuidar das plantações,
sem que pudesse correr um só parente!

O RELÓGIO MARAVILHOSO V

A sua esposa lavava e cozinhava,
o dia inteiro, no fogão pequeno:
em construir outro maior ninguém pensava.

Mas as filhas dominava, por aceno:
“Têm de aprender, que um dia vão casar!”
E assim traziam para a casa o feno

e na cacimba a água iam buscar,
cerziam a roupa, o teto até limpavam,
haviam aprendido a cortar e a costurar,

somente a lenha é que elas não cortavam:
era trazida pelos empregados;
sendo pequenas, nem ainda namoravam.

Os seus irmãos eram bem mais desleixados
e não queriam saber de trabalhar,
que estavam sempre bem alimentados...

Contudo, uns com o pai iam caçar,
enquanto outros faziam pescaria,
e havia outros que sabiam churrasquear...

A choupana estava cheia, noite e dia
e as meninas não podiam nem varrer,
que em cada canto sempre alguém dormia!

E o camponês mal sabia o que fazer;
tinha até medo de aumentar a sua cabana:
qualquer aumento mais gente iria trazer!

E toda a parentalha só se irmana
na mais  completa e mais pura indolência:
só por comida é que todos tinham gana!

Mas a mãe na cozinha se esfalfava;
punha as meninas no serviço, com carinho;
eram obedientes e nenhuma resmungava...

O RELÓGIO MARAVILHOSO VI

Mas quando lhes nasceu o irmãozinho,
que chamaram de Jorginho, se encantaram,
a disputar para o colo o menininho!...

O tempo todo com ele elas brincaram
e lhe cantaram meigos acalantos:
mil histórias de fadas lhe contaram...

Mas as mais velhas iam embora, aos prantos,
a cada vez em que iam se casando,
mesmo com festas, banquetes e mil cantos...

Sem que a choupana fosse se esvaziando,
porque dos noivos mais parentes se achegavam
e em cada canto se iam acomodando.

Os anos pouco a pouco se passavam;
os pais tinham já menos paciência,
mas os parentes espantar não se animavam.

O lavrador sentia a sua impotência:
há muito tempo esvaziara a sua panela;
a maior parte, é certo, com ciência,

mas nem podia olhar pela janela
e ver os campos e matas que comprara,
que havia parentes até sentados nela!...

E os seus filhos em casa iam ficando,
sem pensarem em família constituir
e das caçadas já estavam se cansando...

Porém após a última irmã casada ir,
Jorginho recordou as suas histórias
e a correr mundo acabou por decidir,

ansiando por se encher de muitas glórias,
como um soldado no exército do rei
ou contra monstros granjear grandes vitórias...

O RELÓGIO MARAVILHOSO VII

E quando comunicou sua decisão,
seus pais imediatamente concordaram:
“O melhor será partir agora, então!”

“Até hoje seus irmãos não trabalharam;
nenhum pensou ir em busca de fortuna!
É mais que tempo!...”  E para a porta o empurraram,

antes que alguém a sua defesa assuma!
“Afinal, já completou quatorze anos!
Assim um pouco de espaço a gente arruma!...”

“Vai este agir diferente de seus manos!”
Porém seu primo Walter protestou:
“Mas vocês são os pais mais desumanos!”

“Oi, rapazes!...” depressa ele gritou.
“Querem deixar que o Jorginho vá embora?”
Porém ninguém a favor se pronunciou...

“Ora, tio, dê-lhe ao menos, nesta hora,
umas moedas para levar consigo!
Ah, tia, que a menos a senhora

lhe prepare um fiambre mais amigo!”
Mas disse o pai: “As moedas acabaram!
E juntar mais dinheiro eu não consigo!...”

“Todos vocês sem nada aqui chegaram
e só pensam em beber, comer, dormir!
O meu dinheiro todo já gastaram!...”

“Mas sem nada no bolso vai sair...?”
“Nem bolso tinha, quando ele nasceu,”
disse a mãe, “nu em pelo e a reluzir...”

Apenas Walter se compadeceu:
“Está certo, mas eu vou dar-lhe um presente;
alguma coisa irá levar de meu!...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO VIII

Enfiou a mão no bolso e, sem corrente,
retirou um relógio bem antigo
e o estendeu ao primo, bem contente.

“E as horas ele marca, meu amigo?”
“Duas vezes por dia, certamente,
estará sempre certo, sem perigo!...”

“E isto é mais do que consegue, realmente,
a maioria dos relógios por aí!...”
Agradeceu o rapaz, seguindo em frente.

Falou a mãe: “Como é que eu permiti
que ele fosse embora, sem almoço?”
Disse o pai: “Ora, é menos um aqui...”

“Na passada, ele vai pescar no poço;
sabe caçar um coelho com bodoque:
eu o ensinei e se tornou já quase um moço!”

Sua mãe logo esqueceu-se do remoque,
pois precisava cozinhar a refeição
e as filhas não lhe davam mais um toque...

Mas o tempo estava bom nessa ocasião
e Jorginho foi seguindo pela estrada,
arrependido já, talvez, da decisão!...

Pois já sentia de fome um quase nada
e então assentou-se à beira do caminho,
até que sua atenção foi despertada

por um peso inesperado em seu bolsinho.
Enfiou a mão e seu relógio retirou
e o ficou a contemplar, devagarinho...

Que a mesma hora marcava, ele notou;
mas calculou, ao notar o sol a pino,
que já fosse meio-dia... E o acertou...

O RELÓGIO MARAVILHOSO IX

Por um momento o observou o menino
e só então recordou-se de dar corda:
o tique-taque surgiu-lhe de inopino!...

E deu um salto, tal e qual serpente o morda!
Nunca ouvira outro relógio a funcionar
e entre seus dedos, o mecanismo acorda...

Nunca seu primo quisera trabalhar
para dar corda sequer o suficiente...
Logo achou lindo o seu tiquetaquear!...

“O seu som é bonito e diferente,
caro relógio...  Só espero marque a hora
o tempo todo e bem corretamente...”

“E por que não deveria?  Sem demora
e sem adiante, estarei sempre certo,
se me der corda e não me jogar fora!”

Jorginho olhou o relógio mais de perto.
“Mas você fala?” inquiriu, meio surpreso.
“Mas é claro, quando estiver desperto...”

“Sou um relógio de respeito,” falou, teso,
“Foi você que iniciou a conversação,
desse diálogo a minha parte prezo...”

“É o que manda a boa educação...”
“Eu não sabia que relógios nos falavam,”
disse Jorginho, com uma certa agitação.

“Nunca escutou, quando outros conversavam:
“Só o tempo dirá?”  Pois é ditado muito antigo...
“Não compreendi o que significavam...”

“Pois agora já sabe, caro amigo.
Aprendeu hoje nova e boa lição,
mas ensinar-lhe muito mais ainda consigo...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO X

“E que mais me poderá dizer, então...?”
“Posso dizer-lhe qual será o seu fado,
caso concorde em me escutar com atenção...”

“Mas veja bem, agora estou atrasado
onze minutos... Faça-me o favor
de me acertar, nesse botão do lado...”

As suas faces cobertas de rubor,
Jorge moveu os ponteiros, com cuidado.
“Desculpe, sempre foi do sol a cor

que me mostrou quanto tempo havia passado.”
“Não se preocupe, portou-se muito bem,
doravante mostro as horas acurado...”

“Que dirá o tempo, já entendi, porém,
qual o motivo de estar falando agora...?
Outros relógios podem falar também?”

“A maioria só quer marcar a hora,
eles não passam de uns grandes mandriões!
Todos falávamos, todavia, outrora...”

“Mas aos poucos, nos negavam atenções,
só cuidavam do avanço dos ponteiros
e foi assim que se calaram multidões...”

“Hoje só marcam os minutos, derradeiros...
Mas para alguns ainda somos especiais:
podemos ser excelentes companheiros...”

“Eu desenvolvi habilidades naturais,
tornei-me um ótimo conversador:
posso falar bem melhor que muitos mais...”

“Se me escutar, lhe farei grande favor.
Chegou a hora, por exemplo, de ir pescar,
pois os peixes estão tontos de calor...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XI

Logo a um riacho os dois foram chegar
e Jorginho tirou do bolso um anzol,
prendeu na linha e já sentiu o beliscar...

“São preguiçosos no calor do sol...”
disse o relógio, bem languidamente.
“É mais difícil pescar no arrebol...”

Jorge limpou e assou-o, conveniente
e indagou: “mas você, não come nada?”
“Eu como corda,” respondeu o indulgente.

“Já o meu pai, esse tem fome desusada,
come tudo o que encontra pela frente...
Ele é o Tempo e cada coisa é devorada...”

“Desde que nasce, o Tempo come a gente,
come as plantas, os bichos, minerais...
Tudo mastiga o Tempo, indiferente...”


“Mas para mim, são as cordas naturais
fontes de energia para o meu trabalho
e não careço, realmente, nada mais...”

“Mas se você já descansou e não atrapalho,
vamos depressa para a capital,
de sua fortuna lá encontrará o malho!...”

Logo ao chegarem, viram a sede real
com panos negros saindo das sacadas,
cobrindo estátuas, em um preto carnaval...

Vendo as pessoas a andar, desanimadas,
Jorge pensou que chegara em má ocasião,
mas responderam a suas perguntas apressadas.

“É o nosso rei,” foi a pronta afirmação.
“Ele morreu?” quis saber o rapazinho.
“Não morreu, tem boa saúde, como não?”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XII

“Mas está aborrecido, o pobrezinho...
Ainda é menino e já cansado de brincar,
quebra seus jogos e cada brinquedinho...”

“Mas por que isso é motivo de enlutar?
O povo gosta dele tanto assim...?”
O velho olhou me torno, a averiguar

se alguém ouvia... E respondeu, por fim:
“Caro amigo, é o contrário, justamente,
o povo teme é do rei o estopim!...”

“Quando está aborrecido, é bem frequente
mandar prender pessoas sem motivo
e as tortura, bastante cruelmente...”

“Ou baixa leis do mais perverso crivo,
como mandar todos andarem sem sapatos
ou colocar na cabeça um sapo vivo...”

“Quando é tomado por esses arrebatos,
manda queimar alguma casa na cidade
e até nossos impostos, tristes fatos,

já aumentou duas vezes, sem piedade,
unicamente durante o último mês...
Ou então inventa uma guerra de verdade

contra um vizinho qualquer e, sem mercês,
para o exército todo o povo ele convoca,
velhos e moços; até crianças, uma vez...”

“E nos piores caminhos desemboca
essa tropa de gente desarmada...
Ou então ideia mais louca se lhe espoca...”

“Põe a lutar nossa gente desgraçada,
uns contra os outros, sem qualquer razão,
e quem recua, ele mata de pancada...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XIII

Jorginho ainda trazia, no surrão,
meia dúzia de peixes e os trocou
por pousada, no canto do porão

de uma hospedaria e se deitou...
Mas o relógio, em tique-taque, disse:
“Aqui você vai encontrar o que buscou...”

E Jorginho, antes mesmo que dormisse,
Indagou-lhe: “Mas aqui, na hospedaria?”
Teve a impressão de que o relógio risse.

Pois respondeu-lhe, em tom de zombaria:
“Não, amiguinho, seria no castelo
que sua oportunidade encontraria...”

“E se os guardas me cortarem, no seu zelo,
a minha cabeça ou me enfiarem na prisão?”
“Diga que traz ao rei um presente belo...”

“Mas que presente?”  indagou, em derrisão.
“Não tenho nada!  Só posso ser escravo...”
“Eu sou o presente!” respondeu, com decisão,

o seu relógio, com um certo travo
de impaciência no seu tique-taque,
parecendo até ficar um tanto bravo...

“Está certo,” disse Jorge e, com um baque,
Largou a cabeça sobre o travesseiro,
esquecendo do relógio o peripaque...

No outro dia, levantou-se bem ligeiro,
tomou um banho, até a roupa lavou,
alimentou-se com as sobras do hospedeiro.

E assim que a roupa posta ao sol secou,
partiu para o castelo, bem depressa
e com mais corda seu relógio alimentou.

O RELÓGIO MARAVILHOSO XIV

Seu coração batia à toda a pressa,
mas foi direto falar com a sentinela.
“Nenhum mendigo por aqui ingressa!”

“Não sou mendigo,” disse, sem balela,
“Eu trouxe para o rei belo presente!”
E o soldado respondeu, sem mais aquela:

“Pois muito bem, vou levá-lo, incontinenti,
ao capitão da guarda!  O azar é seu!
Vai jogá-lo na prisão.  Ele é impaciente...”

Porém o capitão logo aquiesceu:
“Se quer assim, vou conduzi-lo até o rei!
Já faz semanas que se aborreceu...”

“E antes que proclame nova lei,
vai ordenar que lhe corte sua cabeça!
Hoje mil tratos à minha bola dei,

antes que o rei me pregue alguma peça!
Nunca se sabe qual será seu novo invento...”
“Mas se ele é ruim assim, não o obedeça!”

“Está doido, rapaz?  Prestamos juramento
e o cumpriremos até prestar um novo,
prova da honra do nosso regimento!...”

“Antes você que alguém do nosso povo...
Vamos depressa ao seu salão de audiência!
Ele é curioso e você será um renovo...”

“O rei está assim porque não tem paciência:
em suas mãos o tempo é bem pesado...”
“Dou-lhe um presente e terei a sua leniência...”

“Depois que ao rei eu tiver alegrado,
ele o fará um pouco mais feliz
e por me apresentar será elogiado!...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XV

“Pode até ser, se é o que você diz.
Mas caso o rei não goste do presente,
o que lhe ocorra foi você quem quis...”

O rei olhou-os com ar indiferente,
encolhido em seu trono, aborrecido...
“Majestade, me permita lhe apresente

este rapaz, que tem muito insistido
ter um presente para Vossa Majestade!”
“Um presente?  Desse garoto mal vestido?”

Jorge afirmou, na maior sinceridade:
“Tenho certeza de que o rei irá gostar
da maravilha que lhe trouxe, de verdade!”

“Qual é o presente, que nem posso enxergar?
Tenho roupas e joias, mil brinquedos,
não sei de nada que me possa dar!...”

“É um presente que conhece mil segredos!
Trouxe um relógio para Vossa Majestade!”
“Um relógio!?” disse o rei, cruzando os dedos.

“Tenho milhares, nesta imensidade
que chamam de castelo, em cada quarto...
Mais de onze mil, se me falam a verdade...”

“Mas dez ou doze mil, já estou farto!
Joguem o tolo no meu calabouço,
hoje de tarde, seus ossos todos parto!...”

“O meu relógio fala!” disse o moço.
Na mesma hora, o rei ficou curioso.
“Um relógio falante?  O seu pescoço

vai-se esticar, caso seja mentiroso...
Mostre o relógio e faça-o já falar!
Caso contrário, será um criminoso!...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XVI

O rei estendeu a mão para o apanhar;
logo o relógio iniciou um cumprimento:
“Bom dia, Majestade!” E se pôs a declarar

que sentia o mais veraz contentamento
por ver o rei alegre e bem saudável.
Este ficou em total encantamento...

“Mas ele fala mesmo!  É admirável!
Diga logo, relógio, a sua mensagem!...”
“Posso dizer que me é muito agradável

chegar-lhe às mãos após longa viagem...
Prefere que recite uma poesia?
Ou uma epopeia com feitos de coragem?”

“Do rei seu avô quer que faça uma elegia?
Ou prefere de amor ouvir histórias?
Ou discutir religião e filosofia...?”

“Quer que descreva de seu reino as glórias?
As batalhas de guerras esquecidas?
Seus inimigos esmagados em escórias?”

“Quero ouvir tudo!  Minhas noites são compridas
e não encontro a mais pequena distração!”
Assim o relógio falou horas seguidas...

“Há muito tempo não ouvi conversação
mais interessante do que essa sua!...
Conte uma história de aventura e de emoção!”

“Dessas histórias, as melhores são
as que se passam em barcos sobre o mar.
Mas quem conhece bem essas é meu irmão.”

“Sei muito poucas para lhe contar...
Pena que o rei está preso no castelo,
senão a meu irmão o iria levar...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XVII

“Quem disse que estou preso?  Minha carruagem!”
“Não é preciso!  Eu tenho um carro alado,
mas Vossa Majestade tem coragem...?”

“Talvez fique no ar meio assustado,
mas a vista de lá é maravilhosa...”
“Onde está o carro?” disse o rei, já conquistado.

O relógio deu pancada mais ruidosa
e então surgiu uma carruagem no salão,
seus cavalos de estrutura portentosa!

“O que espera?” disse o rei.  “Vamos, então!”
“Majestade, a viagem é demorada,
Deve nomear um regente na ocasião...”

O rei-menino fez cara desconfiada...
“Um regente...?  Pois nomeio esse rapaz!
Eu desconfio dessa gente amaldiçoada

do meu Conselho, que só problemas traz!
Qual é o seu nome?   “Jorge, Majestade.”
“Está nomeado meu regente!  Olhe o que faz!”

“Vamos embora!” repetiu, com ansiedade.
“Preciso dar cinco minutos de atenção
ao meu antigo amo, Majestade!...”

“Está certo, mas me diga que horas são!”
“São nove da manhã, precisamente...”
“Pois seja curta a despedida, então!...”

Disse o relógio a Jorge, ocultamente:
“Pronto, rapaz, eis sua oportunidade,
que o vazio desse trono é permanente...”

“Assim que eu for, exija a lealdade
da guarda do castelo e ainda hoje à tarde,
proceda à coroação, com pontualidade!”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XVIII

Eu vou embora e já o tempo arde!
Este reizinho nunca mais irá voltar,
vou levá-lo a seu destino sem alarde!”

“Sente no trono no momento em que eu voar!
E logo após receber o juramento,
vá à sacada para ao povo proclamar.”

“Reduza os impostos já nesse momento;
mande soltar os condenados da prisão,
salvo os bandidos que sofreram julgamento.”

“Proclame de suas leis a revisão,
prometa não iniciar nenhuma guerra
e então governe com brandura e compaixão.”

“Terá o amor de todos nesta terra,
cansados já de tanta tirania
e aceite a sabedoria que se encerra

na mente de ministros de valia.
Tenho certeza de que terá longo reinado
e que o tempo empregará sem zombaria!”

“Meu amigo, sinto-me até muito obrigado,
mas quem ou o quê você é realmente?
Não é apenas um cronômetro encantado!”

“Pois tem razão.  Do Tempo eu sou agente
e estava há muito tempo disfarçado,
para o castigo de um rei tão impaciente...”

“Mas aonde irá, nesse seu carro alado?”
“Ao Tribunal da Justiça Temporal!...
Esse rei tem muito tempo esperdiçado...”

“Pior ainda, em atitude criminal,
ele matou o tempo muitas vezes...
Seu castigo será no tempo proverbial!...”

O RELÓGIO MARAVILHOSO XIX

“E não o trará de volta, em alguns meses?”
“O tempo voa!   Mas só numa direção...
Adeus, rapaz... E o tempo não desprezes!”

“Você terá do Tempo a proteção!...”
“Mas como ser um bom rei eu saberei?”
“Empregue o tempo e terá sua educação!”

“Estou esperando!” reclamou o rei.
Jorge pôs-lhe o relógio sobre a mão.
“Porte-se bem, senão eu o punirei!...”

“Sim, Majestade, seus desejos ordens são!”
Mas no momento em que a carruagem alçou voo,
Jorge sentou-se no trono, em prontidão!

Logo exigiu dos soldados juramento...
Foi atendido após pequena hesitação
e coroado sem o menor impedimento.
Do Conselho restaurou a reputação,
ao povo proclamou seu julgamento,
como o relógio lhe ensinara, em boa ação.
E todo o povo proclamou o seu louvor,
por longo tempo, sem lhe perder o amor.

Porque, de fato, foi um justo rei,
não o melhor de todos, certamente,
mas governando consoante dita a lei,
sem travar guerras indevidamente,
mas buscando o bem-estar de toda a grei,
favorecendo o comércio, prontamente;
e o país assim mostrou-lhe lealdade,
por longos anos de prosperidade!

Mas logo aos familiares informaram
e aos poucos, todos foram-se chegando.
Primeiro os pais é que se apresentaram,
depois os vinte irmãos se acolherando,
que as irmãs e os cunhados o visitaram
e na corte se foram acomodando...
depois os primos, os tios, os empregados,
todos querendo ser beneficiados...

E o Rei Jorge Primeiro, o Relojoeiro,
foi títulos distribuindo de nobreza
aos pais, irmãos e irmãs, hospitaleiro;
aos tios e primos só deu cargos, com certeza;
sinecuras, talvez, mas com certeiro
dever cerimonial, em altiveza...
Mas a Walter, que o relógio presenteara,
Nomeou ministro, em cortesia rara!

Porque confiava em seu discernimento
e gratidão também sentia de verdade;
foi conselheiro de pleno julgamento,
o seu Ministro da Cronologilidade!
Encarregado do andar do tempo,
cada relógio em total pontualidade!...
Walter, é claro, recebeu cem auxiliares
para dar corda nos relógios aos milhares...

E sua família continuou na ociosidade,
vestindo luxo e comendo sempre bem,
porém sem ter qualquer autoridade.
E até o povo achou certo, também,
pois com os nobres de total mediocridade
muita paciência a gente sempre têm...
Jorge casou-se, sem grandes desenganos
e governou por mais setenta anos!...

Não perca tempo, porque o tempo cobra
cada minuto que julgou de sobra!...



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