PRETA
DE CARVÃO I
Vivia
na Baviera uma condessa
em
um castelo arruinado, em condições
da
mais completa e mais triste pobreza;
comia
mal, seu lamento nunca cessa:
a
guerra destruíra as plantações,
fugiram
os servos para outras regiões,
por
fome e frio perdera sua beleza.
Seu
pai e a maior parte dos guerreiros
que
haviam lutado pelo Imperador
tinham
sido em batalha massacrados.
Seus
dois irmãos alvejados por arqueiros,
Vivia
pobre e só Dona Malwitha,
querendo
a morte, sentindo-se maldita,
sua
juventude e atrativos já passados.
E
precisando trabalhar na horta,
armadilhas
armando para a caça,
horas
pescando à beira de seu rio,
mantendo
sempre bem trancada a porta,
a
se esconder de cada um que passa,
amaldiçoando
a sorte que a trespassa,
as
mãos e as faces estragadas pelo frio,
sua
pele se queimou, ficou curtida,
vestia
as roupas de uma camponesa,
grossos
calos trazia em cada mão.
Passada
a guerra, retornou a vida,
suas
melhores terras roubaram em crueza
e
quem a via, a chamava, com vileza:
“Quem
vai ali é a Preta de Carvão!...”
PRETA
DE CARVÃO II
“Era
assim mesmo que me chamavam os ladrões
que
se haviam apossado de minhas terras
e
aqueles que minhas minas exploravam,
mas
os piores eram os Sete Anões:
mortos
meu pai e meus irmãos nas guerras,
seus
servos dispersados pelas serras,
ouro
e diamantes de minhas minas retiravam.”
“Mas
o que eu podia fazer? Sem ter soldados,
vivendo
entre as paredes arruinadas
desse
meu arremedo de castelo?
Sem
ter ao menos o apoio de criados,
ficando
velha e feia, desgrenhadas
as
minhas madeixas, minhas vestes esgarçadas,
se
só desperta compaixão um rosto belo...?”
“O
próprio Imperador já me humilhara,
depois
de se servir de meus soldados,
meu
pai e irmãos morrendo a seu serviço,
meus
camponeses restantes retirara,
de
uns fez escravos, de outros seus criados,
os
meus apelos jamais sendo escutados,
pois
já perdera da mocidade os viços!...”
“Eu
era apenas a Preta de Carvão,
ninguém
em mim reconhecia a herdeira;
se
não tiraram meu castelo, no final,
é
que ninguém tinha dele precisão
e
era assombrado, diziam pela feira,
e
sendo eu sua moradora derradeira,
só
poderia pertencer ao mal!...”
PRETA
DE CARVÃO III
“De
fato, me chamavam feiticeira,
mas
o castelo fora já saqueado
buracos
feitos no sótão e no porão,
em
busca de riqueza alvissareira:
algum
tesouro por meu pai abandonado,
qualquer
baú de joias enterrado,
coisas
roubadas pela Preta de Carvão!”
“Mas
nada acharam e perderam o interesse;
caso
eu fosse possuidora de algum bem,
até
teriam me queimado na fogueira!
Mas
como se saquear nada pudesse,
deixaram-me
no fim em paz, também;
fiquei
vivendo só do que provém
de
minha horta, a trabalhar jornada inteira...”
“Passava
o tempo e me amargava a sorte,
sem
sequer lenha para me aquecer,
tão
só gravetos para cozinhar;
e
a cada noite considerava a morte,
sem
ter motivos para sobreviver,
melhor
seria minha vida interromper,
caso
morresse, poderia descansar!...”
“Quando
acordada, evitava o devaneio...
Por
que lembrar meus tempos de criança,
quando
meus pais viviam e eu tinha tudo?
Mas
ao dormir, desfazia-se o receio
e
me voltava de outros tempos a lembrança,
luxo
e criados, joias e abastança
e
me acordava a gemer em pranto mudo...”
PRETA
DE CARVÃO IV
“Porém
um dia me apareceu Gertrude,
que
fora minha babá, antigamente,
veio
bater-me à porta do castelo.
Reconheci-a
por seu rosto rude,
ela
me olhou, seu dó bem aparente:
O
que fizeram contigo? tristemente
Me
perguntou... Seu rosto era tão belo!...”
“Contei-lhe
então a minha triste história;
ela
assentiu e disse tudo recordar...
Que
havia sido pelo rei escravizada,
mas
me escondera, do porão na escória;
somente
agora se pudera libertar,
voltara
então para me acompanhar,
que
eu usufruísse vida assim mais abençoada.”
“Eu
a abracei e então, juntas choramos,
vendo
o castelo assim abandonado;
ela
jurou que nunca mais me deixaria
enquanto
viva fosse e começamos,
a
pouco e pouco, a deixar tudo organizado;
porém
o teto já furara de estragado
e
tudo se alagava, se chovia...”
“Porém
Gertrude encontrou um livro velho,
em
que havia relação de encantamentos;
como
o chamavam os antigos, era um grimório
e
descobriu o paradeiro de um espelho,
bem
escondido nos compartimentos
que
ficavam junto à adega; e a passos lentos,
desenterramos
o aposento merencório.”
PRETA
DE CARVÃO V
“Retiramos
os mil cacos de garrafas
que
ali restavam desde o tempo da pilhagem
e
até achamos uma botija intacta!...
A
porta presa nas enferrujadas gafas
puxamos
juntas, com força e com coragem:
ela
girou e então, qual em miragem,
cobriu-nos
pilha de ossadas, bem compacta!”
“As
duas recuamos, assustadas e tremendo,
mas
eram somente os ossos de esqueletos,
sepultados
talvez há gerações!...
Gertrude
abriu o grimório e ficou lendo,
os
esqueletos continuaram quietos,
ossos
secos apenas, sem afetos,
eram
os restos das antigas guarnições!...”
“Logo
a seguir, Gertrude me afirmou:
Há
uma porta depois da sepultura
e
é lá que o que buscamos se achará.
Com
cuidado, o vinho antigo destampou
e
as duas tomamos, em nervosia pura,
para
os ossos remover, tarefa dura,
que
haviam jogado ali, ao deus-dará!...”
“Desentupimos
logo um corredor
e,
sem dúvida, encontramos outra porta,
sob
os olhares vazios dessas caveiras!
A
fechadura arrombamos, com ardor,
meio
temendo que por trás dessa comporta,
houvesse
apenas outra gente morta...
As
instruções, porém, eram certeiras...”
PRETA
DE CARVÃO VI
“Havia
até uma pequena janelinha,
por
onde entrava um mínimo de sol;
envolto
num farrapo, estava o espelho;
havia
também uma arca pequeninha
e
um chifre multicor como o arrebol,
potes
e frascos e um estranho rol
de
manuscritos cheirando a mofo velho...”
“Gertrude
deu um passo e retirou
do
grande espelho a gasta cobertura
e
lá vimos duas moças bem formosas
que
o vidro desse espelho projetou,
faces
louçãs, olhar de expressão pura,
que
eu encarei, tomada de amargura,
suas
roupas belas como pétalas de rosas...”
“Ao
ver as duas jovens, eu recuei
e
percebi também que uma recuava.
Gertrude
declarou: Éramos nós,
antes
que houvesse essa traição do rei...
E
a cada gesto com que ela acenava,
igual
ademane a figura nos mostrava:
meu
coração gemeu de dor atroz...”
“Mas
de que serve me contemplar assim?
Sei
que estou velha, escura e muito feia!
Você
é mais velha ainda, minha Gertrude...
Para
nós é zombaria, em nosso fim,
ver
como era a beleza que incendeia,
a
juventude gravada em face alheia:
trago
nas mãos um mapa que se estude...”
PRETA
DE CARVÃO VII
“Não,
minha filha, respondeu-me a ama,
aqui
não existe nenhuma zombaria!
O
espelho nos guardou a juventude
e
somente um encantamento se reclama
para
criar sobre nós a fantasia:
guarda
o espelho a feiura, que ironia!
Mas
de beleza o nosso rosto ilude!...”
“Gertrude
abriu seu livro novamente
e
pronunciou um charme incompreensível.
Fui
então envolvida num clarão!
E
quando pude enxergar completamente,
duas
velhas eu vi, de rosto horrível
e
até meus trapos, por menos seja crível,
se
transformaram num vestido de salão!...”
“Eu
era jovem novamente! Quis dançar,
mas
o meu corpo ainda não me obedecia...
Gertrude,
bela, contemplou-me tristemente:
Querida,
está o espelho a nos mostrar,
por
um glamour, somente, a fantasia:
todo
o mundo jovens e belas nos veria,
mas
somos velhas e feias realmente...”
“E
não se pode tornar isso permanente?
Mas
é claro que sim, mas só no aspecto,
por
dentro, continuamos como dantes...
Só
se quisermos, poderemos realmente
mostrar
ao mundo um exterior infecto,
enquanto
o espelho guarda esse dileto
parecer,
até o pedirmos, triunfantes...”
PRETA
DE CARVÃO VIII
“Mas
há coisas melhores nesta sala,
falou
Gertrude, pois o livro lhe dizia
que
uma surpresa acharíamos nessa arca.
Pois
vamos ver se a gente se regala...
E
para o chifre a seguir se dirigia
e
outra frase do grimório lia:
súbita
luz a cornucópia marca...”
“E
começou a vomitar estranha massa,
que
a seguir se condensou em alimento:
bolos
e tortas, aves e assados...
Disse
Gertrudes, nessa língua: Passa!
Logo
a seguir, interrompeu-se o movimento,
mas
sobre o solo permaneceu o portento,
os
alimentos sobre pratos colocados.”
“E
as duas comemos até nos empanturrar...
Queres
agora pedir a sobremesa?
Não,
Gertrude, comi até demais,
há
muito tempo não me podia fartar;
meu
estômago não é capaz de mais proeza,
está
estufado inteiramente, com certeza...
Mas
não é outra ilusão e nada mais...?”
“Não,
Malwitha, é a Cornucópia da Abundância
e
as iguarias que produz são verdadeiras,
só
não sei como é que tira algo do ar...
Retoma
o que sobrou da substância!...
proclamou
nessas palavras estrangeiras
e
as vitualhas sobradas, bem certeiras,
foram
de volta ao chifre penetrar!...”
PRETA
DE CARVÃO IX
“Fomos
então ver o que havia na arca.
A
chave estava ali, na fechadura
e
Gertrude foi virando, com cuidado.
Maravilhei-me
com o que o cofre abarca:
eram
diamantes de qualidade pura,
outras
joias de lapidação segura
e
um saquitel de couro, bem atado.”
“Estava
cheio de moedas de ouro,
cunhadas
pelo antigo imperador...
Isto
também se renova, sem parar?
Não,
minha senhora, é um único tesouro,
aqui
guardado pelo conde, meu senhor,
seu
pai defunto, um dote em seu favor,
quando
partiu para nunca mais voltar...”
“E
aqui temos também o caldeirão
que
pertenceu à condessa, sua avó:
foi
com ela que aprendi toda a magia.
Nele
é possível preparar poção,
filtro
de amor, de permanente nó,
filtro
de morte ou de doença só,
remédio
certo para o mal que a alguém feria...”
“E
aqui se acham também os condimentos,
os
bálsamos e os pós e as ervas de poder
e
o nosso livro ensina todo o seu preparo...
Porém,
senhora, aproveitemos os momentos,
enquanto
a luz do sol nos aquecer;
não
nos convém aqui permanecer
depois
de finda a luz do dia claro...”
PRETA
DE CARVÃO X
Assim
as duas o espelho transportaram
para
a copa, em que estava o alçapão
e
onde se abria uma escada para a adega.
Depois
o cofre, com esforço, carregaram,
a
Cornucópia da Abundância e o caldeirão;
trouxeram
engradados do porão,
para
o transporte dos ingredientes que ele emprega.
Numa
das torres, a em melhor estado,
foram
guardar o espelho e o caldeirão;
um
espaço sob as lajes encontraram,
em
que o cereal antigamente era guardado;
era
uma tulha, ao lado do fogão.
Ficou
ali o cofre e, em precaução,
achas
de lenha sobre a laje colocaram.
A
cornucópia, porém, elas puseram
sobre
uma mesa que Malwitha consertara
e
lhe pediram uma nova refeição...
Lavaram-se
depois, como puderam
e
Gertrude outro pedido comandara:
lençóis
e cobertores vomitara
a
Cornucópia da Abundância, em profusão.
No
outro dia, o charme aprofundaram:
Gertrude
invocou glamour de proteção
e
as duas foram de novo até a adega.
As
tochas acenderam que encontraram
e
juntas recitaram a encantação,
sentindo
forte bater o coração,
pelo
temor desse feitiço que se emprega!
PRETA
DE CARVÃO XI
“Gertrude
fez-me mesmo repetir
uma
dúzia de vezes o encantamento,
até
poder declamar tudo sem errar.
Nós
desejávamos tudo reconstruir,
precisávamos
de operários no momento
e
de soldados fiéis em juramento,
para
essa obra poder-se realizar...”
“E
assim, velhas palavras entoamos,
na
linguagem esquecida desde antanho
e
demos talhos em alguns dos dedos;
sobre
as ossadas o sangue assim pingamos,
e
acometeu-me então um temor tamanho
de
executar esse ritual estranho,
mas
Gertrude conhecia os seus segredos...”
“Um
som estranho percorreu o aposento
e
os archotes expeliram novas chamas,
de
resina a exalar o seu perfume...
E
assim que se cumpriu o encantamento,
eu
vi se unirem os ossos sob as flamas,
criando
carne como crescem ramas,
até
serem corpos completos sob o lume!...”
“Gertrude
e eu, as duas recitamos
as
palavras do final deslumbramento
e
os corpos se acordaram e se ergueram;
seus
farrapos como roupas enxergamos,
mas
demonstravam muito pouco sentimento,
meio
estonteados, vazios de julgamento.
Disse
Gertrude: Eles não sabem que morreram.”
PRETA
DE CARVÃO XII
“Reconheci
alguns de minha infância,
outros
ainda de minha adolescência,
eram
criados e guardas do castelo,
pareciam
bem reais em substância;
veio
um deles prestar-me continência,
beijou-me
a mão, com toda a reverência,
seus
lábios quentes e seu rosto belo.”
“E
um a um perante mim chegaram,
para
prestarem-me idêntica homenagem,
enquanto
as chamas das tochas crepitavam.
Sem
hesitar, todos eles se ajoelharam.
Gertrude
demonstrou plena coragem;
saímos
por entre os restos da pilhagem
e
atrás de nós todos, em fila, caminhavam.”
“Contra
as paredes do salão se enfileiraram
e
eu lhes disse: Consertem as cadeiras
e
a mesa para fazerem a refeição...
As
antigas ferramentas encontraram;
cem
homens vivos eram as caveiras
de
uniforme ou librés, ainda, ligeiras,
meu
comando a obedecer sem discussão.”
“Na
cozinha, falou Gertrude nova ordem
e
a mesa ficou cheia de alimento,
refeição
forte, de grande substância.
Os
criados carregaram, sem desordem
e
assim serviram a todo o regimento;
vinho
e cerveja surgiram, num momento,
sem
ninguém lhes questionar a sua constância.”
PRETA
DE CARVÃO XIII
“Todos
comeram, saciando a fome intensa;
foram
os guardas para o antigo alojamento
e
os criados recolheram cada sobra,
buscaram
água e lavaram, com paciência,
depois
deitaram-se por sobre o pavimento,
sete
dias sem fazer um movimento,
que
a vida um preço novamente cobra.”
“Passada
essa semana, despertaram,
veio
o mordomo a pedir-me as instruções
e
lhe falei das reformas necessárias.
O
mordomo e o intendente inspecionaram,
nós
lhes servimos novas refeições,
organizaram-se
conforme as profissões
e
se ocuparam das mil tarefas várias...”
“As
carruagens e carroças consertaram;
levou
Gertrude uma moeda até a aldeia
e
meia dúzia de cavalos adquiriu.
O
capitão e dez soldados a escoltaram,
o
ouro era bom e o povo se arreceia,
meia
dúzia de cavalos a gente arreia;
para
o castelo essa manada conduziu.”
“Foi
aprestado depressa um carroção,
eu
fui montada numa égua baia,
Gertrude
na boleia, com o intendente.
Compramos
todo o material de construção;
dera-me
o chifre um manto e nova saia,
mas
só nos dava comida e roupa gaia,
de
louça e copos ainda havia o suficiente.”
PRETA
DE CARVÃO XIV
Em
um mês se completou a construção,
todo
o castelo reconstruído e até pintado,
dragado
o fosso, consertada a levadiça...
Os
ressurretos trabalhavam com paixão,
não
se queixavam de esforço tão pesado,
o
aqueduto foi a seguir reativado
e
logo ergueram sobre a horta uma treliça.
E
já cresciam macieiras e parreiras,
a
horta produzia muito mais,
foram
comprar suínos e galinhas
e
Malwitha e Gertrude, bem faceiras,
adquiriram
móveis e enxovais;
alguns
diamantes venderam, ademais,
sem
que os ourives enganassem as mocinhas.
Logo
a notícia foi levada ao rei
de
que o castelo foram reocupado
e
mandou a inspecioná-lo o senescal,
que
pretendia impor força da lei,
mas
cada posto de defesa viu ocupado,
até
um canhão por soldados manejado
e
se portou com humildade artificial.
Malwitha
apresentou-lhe os documentos
que
a cornucópia facilmente produzira,
provando
neta ser do velho conde,
apresentando
até seu testamento;
e
o senescal em tudo consentira,
mas
afastou-se, tão logo permitira
a
cortesia que a hospitalidade ronde.
PRETA
DE CARVÃO XV
O
senescal foi ao rei logo informar:
“Ela
provou descender do velho conde
e
me mostrou os devidos documentos;
certa
riqueza certamente foi encontrar
que
em algum ponto do castelo inda se esconde,
vou
enviar um espião que em tudo sonde
algum
criado da taverna nos momentos.”
“Mas
o castelo está bastante defendido,
vi
até nas ameias um canhão:
transformou-se
em verdadeira fortaleza;
não
será fácil que por nós seja invadido
e
já iniciaram a cuidar da plantação,
são
servos próprios, não chamou nenhum aldeão;
mas,
Majestade, ela tem grande beleza...”
“Então
é bela?” indagou-lhe o rei.
“Extremamente
bela, Majestade,
boa
companheira para a sua viuvez
e
se casar, consoante a antiga lei,
seu
dote irá trazer e é bem verdade
que
para as guerras tereis necessidade...
Quem
sabe dá-lhe um herdeiro desta vez?”
“Porque
sua filha, segundo nossa lei,
não
poderá jamais ser só a rainha,
mas
com alguém terá de se casar...”
“Se
tiver filhos, herdeiros eu terei...”
“Mas
meu rei ainda tem uvas na sua vinha,
não
precisa depender da princesinha...
Nunca
se sabe o que um consorte há de aprontar.”
PRETA
DE CARVÃO XVI
Assim
o rei enviou outro emissário
e
comitiva carregada de presentes,
pedindo
a mão à Condessa Malwitha,
querendo
saber se havia algo em contrário...
Malwitha
respondeu que seus parentes
haviam
morrido, por motivos diferentes
e
as batalhas do Império a seguir cita.
Pediu
então uma semana em que pensar
e
depois que o emissário já partira,
foi
pedir o conselho de Gertrude.
Que
a verdadeira imagem iria mostrar
aquele
espelho a cada um que o mira,
falsa
a beleza assim que lhe confira...
“Porém,
senhora, a qualquer um ilude...”
E
assim, quando o emissário retornou,
Malwitha
concordou com o casamento
e
na semana seguinte veio o rei,
com
grande séquito no castelo penetrou,
e
demonstrou grande contentamento,
ao
ver a abundância do alimento,
que
satisfez-lhe plenamente toda a grei.
Dentro
de um mês, realizou-se o casamento.
Malwitha,
com riquíssimo enxoval,
levou
seu cofre de joias como dote...
Mas
ao se verem, desde esse momento,
Branca
de Neve portou-se muito mal,
demonstrando
uma aversão inatural:
gritou,
insultou, chorou e deu pinote!...
PRETA
DE CARVÃO XVII
“Essa
mulher é velha e é feiticeira!...”
acusou-a,
só de a ver, Branca de Neve.
Mas
estava seu pai cego de amor.
Deu
uma ordem e a ama, bem ligeira,
a
carregou nos braços, como deve...
E
a corte inteira pensou: “Como se atreve
essa
menina a insultar El-Rei Senhor!...”
O
casamento celebrou-se em grande festa
e
todos se encantaram com a beleza
de
Malwitha, muito em especial o rei,
que
seu aspecto de modo algum contesta.
Amou-a
com paixão e com nobreza,
afirmando
a seguir ter a certeza
de
ter cumprido o ritual da antiga lei...
Que
com Malwitha gerara, nessa noite,
o
herdeiro que esperava para o trono...
Mas
a condessa sabia ser impossível
e
com Gertrude aconselhou-se, afoite,
enquanto
o rei roncava no seu sono
e
a ama respondeu-lhe, com entono:
“Vamos
fingir o mais que for possível!...”
Com
Branca de Neve, Malwitha foi gentil,
não
tinha por que odiar a princesinha,
mas
ela a via com seus olhos de inocência
e
enxergava seu real aspecto vil,
sempre
fugindo, com medo da rainha
e
a ofendê-la, com intenção mesquinha,
gritando
a todos sua maledicência.
PRETA
DE CARVÃO XVIII
Mas
quem a poderia acreditar?
Todos
achavam ser só por ciúme,
que
não queria ganhar qualquer irmão,
enquanto
o rei não cessava de afirmar,
embevecido
pelo seu perfume,
que
a mulher mais bela que se assume
era
a rainha do seu coração!...
“Não
sei por que a implicância da menina:
és
a mulher mais bela desta terra
e
sei que me darás o meu herdeiro;
em
ti encontrei a mais perfeita sina:
tenho
certeza de que teu ventre encerra
um
rapaz forte que seguirá a minha guerra
e
vencerá a cada exército estrangeiro!...”
“A
cada noite, depois que ele dormia,
eu
ficava a matutar no meu futuro,
ao
descobrir que não podia dar-lhe o herdeiro!
Já
dirigi aos céus a maior prece,
mas
sou velha demais, isso é seguro:
ele
é feroz e meu destino é obscuro!
Por
que há dez anos não me encontrou primeiro?”
“Mas
com a ajuda de Gertrude, eu vou fingir
que
já me encontro a iniciar a gravidez;
farei
com que se expanda minha barriga...
Quem
sabe ela consegue descobrir
algum
nenê, ao chegar meu nono mês,
fingindo
o filho que o rei nunca me fez?
Ah,
se a menina não fosse minha inimiga!...”
PRETA
DE CARVÃO XIX
“Aqui
estou desprotegida e sem soldados,
mas
quem sabe se um aleive vou inventar,
usando
justamente essa menina...?”
E
com as saias e vestidos estufados,
ela
buscou Branca de Neve ir abraçar,
mas
a menina se debatia, em seu gritar,
e
um pontapé lhe deu, fúria assassina...
Porque
somente ela percebia sua feiura
e
em sua inocência, enxergava-lhe a velhice
e
das piores intenções lhe via o segredo...
Malwitha
foi queixar-se, em amargura:
“Chutou
meu ventre aos olhos de quem visse!
Querer
com que eu aborte ela me disse!...
De
perder o meu nenê eu tenho medo!...”
E
nessa noite, começou a gritar
e
o rei chamou Gertrude bem depressa
e
retirou-se para outros aposentos.
Sangue
de ovelha foram derramar
e
um macaquinho bem novo, a toda a pressa,
colocaram
na cama, feia peça!...
Para
enganar do rei os julgamentos...
Naquele
tempo, não havia ciência
e
acreditaram ter o nenê morrido...
Para
o rei, ela mentiu ser um menino...
Branca
de Neve, porém, com impaciência,
garantiu
que ninguém havia nascido,
que
um animal fora substituído:
todos
pensaram ser um desatino...
PRETA
DE CARVÃO XX
Porém,
quando seu pai a repreendeu,
ela
afirmou estar muito feliz,
pois
sua madrasta era uma feiticeira!
Em
sua fúria, o rei quis-lhe bater,
mas
ela deu-lhe bofetada no nariz;
esconder-se
na floresta depois quis,
por
puro medo da punição certeira.
O
rei mandou procurá-la os caçadores,
mas
logo após, apareceu um lenhador,
trazendo
restos consigo, ensanguentados...
E
declararam os que eram tidos por doutores
que
eram os órgãos dela, em puro horror!
O
rei se arrependeu e, com louvor,
mandou
enterrar os restos mastigados...
“Porém
Branca de Neve conhecera,
já
que passear pela floresta costumava,
sete
pequenos salteadores e ladrões...
A
mina de meu pai, quando morrera,
Schlaubig,
seu chefe, agora explorava
e
seu local a ninguém mais contava,
salvo
aos outros malvados seis anões!”
“Que
o chamavam de Mestre, mas seu nome
era
“ardiloso”, malvado e espertalhão;
mas
Schlaubig, que fingia ser amigo
dessa
menina que na floresta some,
a
colocou a limpar seu casarão,
a
cozinhar e a dormir no seu porão
e
até tentou fazer troca comigo...”
PRETA
DE CARVÃO XXI
“Se
eu desistisse da posse de minha mina,
a
filha do rei eles assassinariam
e
nunca mais me causaria desgosto...
Mas
só queriam aproveitar-se da menina
e
como os falsos abortos continuavam,
que
não podia ter mais filhos murmuravam,
pensei
salvá-la para dar ao rei um gosto.”
“Mas
eles eram maus, esses anões...
Eu
percorria a mata, às escondidas,
para
ajudá-la, embora ainda me odiasse,
pois
era escrava desses brutalhões,
que
a amarravam, durante suas saídas,
a
cerzir as suas roupas mais puídas,
que
de suas garras fugir nunca pudesse.”
“De
uma feita, encontrei-a sufocada
e
quase morta pela forte amarração:
eu
lhe afrouxei o cinto e a convidei,
mas
tinha medo de mim a desgraçada,
pôs-se
a gritar tal qual fosse o Papão!
O
lenhador me ajudou a fugir, na escuridão
e
em vão contra os anões a aconselhei...”
“Enquanto
isso, os tais doutores afirmavam
que
aquele aborto estéril me tornara:
mãe
de um herdeiro, jamais podia sê-la!
O
rei se entristeceu com o que falavam,
mas
em seu leito, à noite, me afirmara
que
eu seria a sua esposa muito cara,
enquanto
fosse das mulheres a mais bela!...”
PRETA
DE CARVÃO XXII
“E
eu que sabia ser uma velha feia!
De
vez em quanto, olhava-me no espelho,
que
da eterna ilusão me garantia:
Minha
senhora, não sei do que receia,
No
meu cristal eu lhe guardo o corpo velho;
sua
beleza conserva e eu só eu engelho:
você
é a mais formosa, em sua harmonia.”
“De
outra feita, encontrei Branca de Neve,
com
um pente nos cabelos encravado,
como
castigo desses Sete Anões,
só
porque um dia a pentear-se ela se atreve!
Eu
a curei e vi que havia mudado,
mesmo
que o rosto estivesse descuidado,
já
era bela de partir mil corações!...”
“Mas
o cruel Schlaubig surpreendeu-me,
os
seus asseclas armados de seu lado:
Cresceu
bastante, como a senhora vê...
Um
ultimato nesse instante deu-me:
O
que dirá o seu marido dedicado,
quando
essa bela mulher tiver olhado?
Não
quererá trocá-la por você...?”
“Dê-me
essa mina de papel passado,
caso
contrário, a vestiremos com carinho
e
a deixaremos mais bela que uma estrela.
Pensa
o rei ter sua filha já enterrado,
ela
nem mais se recorda do paizinho...
É
coisa certa ser aceita no seu ninho...
Será
você do reino inteiro ainda a mais bela?”
PRETA
DE CARVÃO XXIII
“Que
mais então eu poderia fazer?
Ela
passava mais com fome que saciada;
e
já não tinha tanto medo mais de mim...
Alguma
fruta desejaria comer
e
eu confesso que levei à esfomeada
essa
maçã que a deixaria narcotizada
do
mau lugar poder tirá-la, enfim!...”
“O
lenhador outra vez me ajudaria
e
a levaríamos para um lugar distante
em
que a casaríamos com conforto...
ou,
quem sabe, ao rei eu revelaria
ter
descoberto, após busca incessante,
com
dó de ver seu lamentar constante,
que
em outro país sua filha ainda vivia...”
“Na
verdade, no castelo havia um retrato,
por
um pintor de renome executado,
de
sua mãe, a rainha falecida...
E
eu constatara, em verdadeiro fato,
que
em rosto e corpo parecia ter copiado
os
traços de sua mãe, e com cuidado,
eu
a levaria para ser reconhecida...”
“De
fato, o lenhador me conduziu,
como
ele sempre na mata protegera
e
fiz com que comesse a tal maçã...
Mas
o destino novamente interferiu,
Os
Sete Anões me perseguiram feito fera:
de
modo algum minha razão os convencera
de
que seguia saudável e louçã...”
“Mas
tinham medo de meu forte lenhador
e
eu mesma lhes lancei encantamento
de
invisibilidade a proteger nós dois.
Logo
perderam todo o seu ardor
e
devagar volveram ao alojamento,
conservando
na cabeça o pensamento
de
qualquer lucro a conseguir depois...”
PRETA
DE CARVÃO XXIV
“E
então esses malditos se vingaram:
colocaram-na
em um ataúde de cristal
ao
perceber que só estava adormecida.
Contudo,
acordá-la nem tentaram;
pérfido
plano arquitetaram, afinal,
para
poderem me fazer o maior mal
e
me levarem a ser mais perseguida.”
“Pois
descobriram o pedaço dessa fruta
de
Branca de Neve preso na garganta
e
a conduziram até o país vizinho,
em
que a instalaram escondida numa gruta.
E
o herdeiro desse trono ali se encanta,
que
com um beijo a acordasse não se espanta:
era
romântico o tal principezinho!...”
“Porque
o pedaço se maçã deslocaria
um
suspiro provocado pelo beijo...
E
sobre mim levantaram falsidade...
O
ingênuo príncipe facilmente se iludia,
um
matrimônio combinou-se, nesse ensejo;
e
o rei seu pai a aceitou, sem pejo:
de
sua mãe morta fora tio, na realidade.”
“Enquanto
isso, Gertrude falecera
e
com ela, meu castelo se arruinara,
as
ameias cobertas de esqueletos...
A
Cornucópia da Abundância se perdera,
o
meu dote meu marido já gastara,
nada
mais que o velho espelho me restara,
guardado
em aposentos bem secretos...”
PRETA
DE CARVÃO XXV
“Mas
os anões o esconderijo descobriram;
que
a cornucópia eles tinham-me furtado:
meu
espelho deram para Branca de Neve!
Os
seus lábios num sorriso se partiram;
finalmente
sua vingança havia encontrado
e
num canto do salão fora ocultado,
para
servir a seu objetivo em breve!...”
“E
quando nós entramos no salão,
ela
tratou-me com a mais meiga falsidade
e
afirmou para meu rei ter um presente.
Fez
que sentasse em dourado cadeirão;
noutra
cadeira ao lado, por maldade,
fez
que eu sentasse, em sua perversidade:
meu
coração uma armadilha já pressente!”
“Então
os anões trouxeram meu espelho,
coberto
em veludoso cortinado...
Branca
de Neve o cordão então puxou
e
vi meu rosto encarquilhado e velho,
o
esqueleto de Gertrude do meu lado...
E
enquanto o rei olhava, apavorado,
Branca
de Neve meu espelho então quebrou!”
“Foi
um relâmpago e a dor mais excruciante,
ao
se quebrar, ao mesmo tempo, o encantamento:
eu
era velha e feia em minha cadeira!...
Outros
anões me acorrentaram, nesse instante,
e
ela contou ao meu rei, nesse momento,
falsa
versão de cada acontecimento
e
eu já aguardava a morte, bem certeira...”
PRETA
DE CARVÃO XXVI
“Branca
de Neve foi muito mais cruel:
dois
sapatos de ferro me trouxeram,
avermelhados
por um fogo de carvão!...
E
nesse ódio pior que qualquer fel,
com
tenazes em meus pés eles meteram:
dor
maior sei que vocês nunca sofreram;
queimaram-me
até os ossos na ocasião!”
“E
depois, numa fingida caridade,
mandaram
que na mata me jogassem:
que
me salvasse a vida a Providência!
Quase
morri pela desumanidade,
até
que meus dois pés se desmanchassem
e
os tornozelos apenas me ficassem,
depois
de dias inteiros de inconsciência...”
“Mas
fui achada por meu fiel lenhador,
que
ao rei levara os órgãos de animais
e
em seus braços, levou-me à sua cabana,
alimentou-me
e tratou-me com amor:
fez-me
dois pés de madeira e ainda mais,
duas
muletas com galhos especiais
e
ensinou-me a andar, em sua choupana...”
“E
assim, no fim de tudo, vivo ainda...
Ele
me trata como sua companheira
e
sou grata por sua terna compaixão,
embora
sinta permanente dor infinda,
Cirzo
e cozinho, sou trabalhadeira,
na
luz do sol me queimei, coisa certeira,
sou
novamente a Preta de Carvão!...”
PRETA
DE CARVÃO XXVI
“Contudo,
esses malditos Sete Anões
algumas
vezes por aqui ainda passam
e
me tratam com constante zombaria...
Troçam
de mim esses espertalhões:
que
não lhes dei a mina ainda retraçam
a
que ninguém, hoje em dia, eles repassam,
qualquer
minha reclamação aceitaria!”
“Hatschi
é o pior, pois passa-me rasteira;
Pimpel
e Glücklig vem apenas gargalhar,
Schlafmütze
dorme quase o tempo inteiro.
E
uma outra coisa ainda tenho por certeira:
Jäger
e Brummbär até queriam me matar,
mas
Schlaubig me prefere conservar,
para
ser vítima de seu tripúdio derradeiro...”
“Jogam
moedinhas a meu protetor
e
dizem estar pagando o aluguel
dessa
mina que roubaram de meu pai...
Ele
recolhe os cobres, sem rancor;
eu
engulo amargamente todo o fel,
meio
encolhida em meu grosso burel:
a
vida passa e com ela o sonho vai...”
“E
muitas vezes, sou forçada a repetir,
a
cada vez que recontam nossa história,
essa
versão de meu conto de fadas...
De
Branca de Neve a mentira a seduzir
e
após o esforço para escapar da escória,
mal
relembro aqueles anos de vitória,
enquanto
como as migalhas de meus nadas.”
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