terça-feira, 25 de outubro de 2011

J E R I C Ó

                                                            imagem: www.itsromanticpaintings.co.uk

JERICÓ I

            eu canto o encanto monótono do beijo
            tantas vezes repetido com amor,
            por mais que conhecido o seu sabor,
            na experiência sutil de novo ensejo!
                    que se revela,
                    a mim e a ela,
                    numa janela,
                    exposta ao vento!
            louvo o beijo conhecido e sem mistério,
            beijo doméstico, de expressão singela,
            beijo de despertar, beijo de vela,
            sem explosão de intenso despautério,
            mas rico ainda, em sua intensidade,
            no conhecido flavor da saciedade,
            que diariamente nos traz o refrigério.

JERICÓ II

        esta é expressão que sempre me assustou:
        "um beijo no teu coração..."  horrível,
        como a furar a barreira intransponível
        do meu esterno, que sempre me escudou:
                   inquietação,
                   na expiração,
                   suor na mão
                   e um arrepio...
        esse tipo de beijo é mais pungente,
        mesmo que seu sabor seja vazio,
        de certo modo, me deixa em corrupio,
        embora um beijo real seja mais quente.
        talvez sejam como beijo de vampiro
        esses teus olhos...  e até mesmo miro
        os dois buracos abertos bem na frente!

JERICÓ III

        entre os gases que respiro, está o argônio,
        um desses gases que apelidaram nobres;
        entre as flores que vejo, dos mais pobres
        são os carinhos do humilde pelargônio.
                     argônio pelargônio,
                     gerânio pelgerânio,
                     malvão ou pelmalvão,       
                     os nomes que lhe dão,
        dependendo do lugar ou do momento:
        tudo depende da cor desse cristal,
        com que se encara tanto o bem e o mal.
        mas o gerânio me desperta sentimento
        por seu perfume humilde e meio agreste
        e pelas flores folhadas com que despe
        o veludo de suas pétalas ao vento...

JERICÓ IV

        se às vezes falo dos amores velhos,
        cujas faces até somem da memória,
        não julgues que me porto como a escória
        que tem prazer em olhar-se nos espelhos.
                    que, na verdade,
                    com humildade,
                    a saciedade
                    de leve toco.
        não se trata de gabar-me de quem tive;
        bem ao contrário, sinto é gratidão:
        que, por instantes, o seu coração
        compartilhassem comigo quando estive
        gozando a dádiva quase incompreensível:
        que me quisessem nesse instante incrível,
        que guardarei enquanto a mente vive!

JERICÓ V

        de quem são esse corpo ou essa boca,
        de quem são esse rosto e o hematoma?
        quem é que beijos e pancadas soma,
        te faz feliz e depois te deixa louca?
                    sexto sentido,
                    amor bandido,
                    rosto ferido,
                    dizem de amor.
        o pior é que uma parte de ti gosta...
        que pancada de amor, dizem, não dói.
        esse tipo de amor a estima rói...
        há quem, para apanhar, paciência tosta...
        até conheço algumas que o buscaram,
        mas que comigo se desapontaram,
        que não me envolvo em relação tão tosca.

JERICÓ VI

        por alguma razão chamam maçã
        esse tal fruto roubado ao paraíso,
        afirmação até de pouco siso,
        que nem havia então tal fruta sã...
                    que foi criada
                    e cultivada,
                    já adiantada
                    a civilização...
        seria mais provável fosse um figo,
        cujas folhas melhor cobrem nudez
        e os frutos da figueira são, talvez,
        conhecidos desde tempo mais antigo...
        mas a maçã nos lembra um coração
        ou a sombra das nádegas no chão,
        da ancestral que nem sequer tinha o umbigo!

JERICÓ VII

        a lua puxa o céu para um armário
        e enrola, com cuidado, o véu azul;
        na prateleira de cima guarda o sul,
        o norte esconde em outro relicário.
                    então seu manto,
                    em lento canto,
                    feito de pranto,
                    pinta de negro.
        suas estrelas são talvez amaldiçoadas
        à permanência tão só no céu da boca,
        quiçá pregadas às dobras de uma touca
        ou quem sabe são apenas perfuradas,
        pequenas lágrimas que jóias querem ser,
        mas que se apagam pelo amanhecer,
        quando as gazes do azul são espalhadas. 

JERICÓ VIII

        nesses mil olhos brancos de traições,
        presidem as estrelas os destinos,
        nas noites frias tangem os seus sinos,
        cobrindo de ironia as multidões.
                    um pó de ouro,
                    puro desdouro,
                    cujo tesouro
                    é o teu despeito.
        mas quando vejo em estrelas meu agouro,
        estendo os dedos até o manto do céu
        e, uma a uma, as desprego desse véu,
        só deixando os buracos nesse couro,
        e mastigo tais estrelas, sem cessar,
        para na terra depois as espalhar,
        onde renascem como trigo louro.

JERICÓ IX

        mas por que jericó foi escolhido
        para desta nova série ser o nome?
        nem eu o sei: de títulos há fome
        para o exército de versos produzido.
                    outro podia,
                    ser "luz do dia",
                    ser "energia"
                    ou "marimbondo",
        que, na verdade, não passam de caprichos
        esses rótulos que ponho nos sonetos,
        mas se quiseres sentidos ver secretos,
        fica à vontade, com teus sonhos michos.
        eu usei jericó, cidade antiga,
        como podia ter usado "lua amiga"
        ou, quem sabe, empregar nomes de bichos...

JERICÓ X

        quanto às estrelas que na língua tenho,
        tu me deixaste, com teu longo beijo,
        pelo brilho cintilante desse ensejo:
        no céu da boca a encastoá-las venho
                    e, uma a uma,
                    em doce espuma,
                    eu beijo a ruma
                    dos velhos astros,
        quando fizeste de minha boca o céu,
        tua própria língua em sonho de saliva,
        cada pequena estrela assim me ativa
        o palato duro, recamado em véu;
        e agora que estás longe, ainda mastigo
        e, em cada estrela, julgo estar contigo,
        lambendo os astros que deixaste ao léu.

JERICÓ XI

        eu bem queria um lencinho receber,
        como esse que cantava a libertad,
        bordado com cabelos... mas não há
        ninguém que queira um me oferecer...
                    mesmo porque,
                    já não se vê
                    a bordadeira que,
                    nos dias de hoje,
        se disponha a usar os seus cabelos,
        de forma permanente e mais fiel,
        que as longas tranças dessa rapunzel
        que o príncipe acolhia em seus desvelos...
        mesmo penélope, a da tapeçaria,
        para tanto, cabelos não teria
        e deve ter tecido com novelos!...

JERICÓ XII

        na falta de um lencinho, serve a mecha
        que me queiras deixar de teus cabelos,
        ou uma trança semelhante a tais novelos,
        em que prendia toda a antiga queixa
                    a moça-velha,
                    que se aconselha
                    e que se espelha
                    em sua tristeza...
        a minha avó casou-se aos trinta e nove,
        já era velha, nesse tempo antigo;
        cortou a trança que era seu abrigo,
        iniciativa que até hoje me comove:
        longos cabelos, guardados tantos anos...
        teve um só filho e, por seus desenganos,
        que este último poema então a louve!...




sábado, 22 de outubro de 2011

FERRARIA


FERRARIA I

Quando o ferreiro tempera o seu metal,
martela com o malho, muitas vezes
até que se enrijeça; em seus arneses
o prende com tenazes...  Tão real

é o calor, que até o aço se avermelha
e então se torna duro e quebradiço:
tem de ser resfriado e novo viço
ele adquire, maleável para a grelha.

Esse é o processo do enrijecimento:
uma alternância de frio e de calor,
até que o gume se aguce e mais se afine.

Também isso nos ocorre... O sentimento
tem de esfriar, às vezes...  Só o amor
não é perpétuo para o fim que se destine...

FERRARIA II

Será assim na vida: o martelar,
golpes constantes, calores e tortura
nos enrijecem, mas quebra-se a ternura;
alheio alívio precisamos alcançar...

Mas quando tudo é fácil de moldar,
a nossa alma permanece impura,
moldável e pliável...  Nunca dura
esse formato a que se deve adaptar...

É essa linha fina e equilibrada,
entre a dor e seu alívio, calculada,
que cria o aço e a alma temperada...

Como é difícil aos outros educar!...
Mesmo que em nós seja a têmpera alcançada,
talvez até se perca...  ao se tentar!...

FERRARIA III

Existe a alma em crisálida perfeita,
adormecida, enquanto se refaz
dos pesadelos que sua mente traz
da velha encarnação antes sujeita.

Mas a crisálida da alma é de aço feita,
muita vez, quando o tempo se desfaz
tal alma busca quebrar o tracanaz
em que se encontra essa memória estreita.

Em seu esforço amargo, contrafeita,
percebe não consegue perfurar
a indesejada proteção constante,

que só pode de fora ser desfeita
por esses golpes que a podem lastimar,
mas que a abrem para o mundo circunstante.

FERRARIA IV

Ou talvez esteja a alma adormecida
na calidez arcana do casulo
e precise de um susto, por que o pulo
desfaça assim o conforto e, para a vida,

novamente a desperte.  Tal ferida
é como a chicotada em que me açulo,
à luz de meu remorso.   E fico fulo
de raiva de mim mesmo, por guarida

ter dado a tais instintos.  Certamente,
é então que esta modorra e complacência
são desfeitas pelos golpes desse malho,

com que o mundo de fora, claramente,
me arranca para fora da indolência,
ao rasgar-me a crisálida de um talho.

FERRARIA V

Sei muito bem que não brota em mim somente
este contentamento malsão, a subserviência
ao que o mundo quer de mim, esta falência
submissa ao dever a se cumprir frequente;

a maioria dos que vejo em meu ambiente,
acomodados em tranquila desistência,
apenas se distraem ou amargam a veemência
de seus azares, como os chamam, realmente.

E também tu, ao aceitares sem lutar
o que a vida escorrega em teu regaço,
estás morna e adormecida em teu casulo;

por isso, aqui estou eu, a te lembrar
que nenhuma borboleta sai ao espaço
sem as asas desfraldar, em leve pulo.

FERRARIA VI

Por isso, não te queixes, companheira,
das mágoas de tua vida  e da amargura
que te prende em suas mãos, que te segura,
tão firmemente, que te vês inteira

forçada a deglutir a derradeira
gota de fel, que tanto te enclausura,
sem perceberes que é esperança pura,
tua chave do gradil, cela de freira...

Porque existe a larva que se apruma
e seu invólucro abre com verruma,
para tornar-se simples mariposa,

enquanto as que o precisam ter rasgado,
pelos golpes de um malho mais pesado,
são borboletas de asas cor-de-rosa.

FERRARIA VII

A vida é tal casulo e tal mortalha:
a um tempo te protege e te assassina;
sem teres dores, a tua função divina
jamais se realiza e nem se talha.

Como a semente que para a luz se esgalha,
rompida a grossa casca que a confina,
é para a luz que a alma se destina:
dentro ao caroço seus dotes não espalha.

Como o nenê que rasga sua placenta,
após passar por longa gestação
e surge à luz com tanto alumbramento,

feliz é quem na vida se apresenta
com a certeza de uma nova exaltação,
após romper os grilhões do sofrimento.

FERRARIA VIII

Pareça embora até contraditório,
somos escravos do acomodamento;
mas é somente pelas dores de um momento
que alcançamos tal dom leve e ilusório.

Mesmo que julgues apenas irrisório,
há um certo expandir do crescimento,
mas a crisálida morre em tal portento
e cada golpe tem soar premonitório.

Ainda que seja teu casulo seda,
macia e confortável sua acolhida,
sempre é melhor que seja abandonado

e é por isso que te desfere o fado
esses golpes com que o gládio desenreda
esse novelo inútil de tua vida...

FERRARIA IX

Roda o moinho e roda mais a vida
e, aos poucos, se desgastam todos dois;
à ferraria os eixos vão depois,
derretidos em centelha dolorida,

malhados pela força desferida,
aquecidos pelo fole, são anzóis,
instrumentos de trabalho ou armas, pois,
são eixos novos com que a mó é conduzida.

A cada golpe do malho rebatido
saltam centelhas, mil pequenos sóis,
que logo se desfazem pelo espaço...

Igual que um dom por duendes concedido:
só queimam por instantes, arrebóis
de mil auroras que te morrem no regaço.

FERRARIA X

Na ferraria se ferram os cavalos:
penetram fundo os cravos, porém firmam
as ferraduras que seu passo afirmam
quando passam por estradas ou por valos.

Os cravos desta vida são esqualos
que mordem ferozmente e dilaceram
farrapos de tua alma, a que se aferram
e não sabes que fazer para afastá-los.

Estes cravos nos concedem segurança
como os sapatos de ferro dos equinos:
é bom sofrermos tais pequenas dores,

porque as mordidas são cravos de lança
que assim nos fortalecem os destinos,
mesmo que falhem todos os amores.

FERRARIA XI

Mas também lá se forjavam os portões
e outros adornos para casas nobres,
os utensílios de moradas pobres,
mesmo talheres para as refeições...

Pois estas tão variadas produções,
igual que as proteções com que recobres
teu corpo e mesmo que redobres
as tuas defesas, são novas brotações.

Quando a alma é ferida por dor leve,
se recupera fácil e renova,
endurecida contra mal maior,

mas se não sofre, tampouco assim se atreve
a enfrentar ataques que lhe mova
um mau destino em máscara de amor.

FERRARIA XII

Bem ao contrário de São Paulo, eu digo:
o mal que quero é o mal que nunca faço,
o bem que não desejo é o bem que abraço,
para tal fim, maugrado meu, eu sigo.

Da ferraria, o duro malho abrigo
constante e firme neste meu regaço:
o meu casulo por mim mesmo esgarço,
mas meu futuro com tais golpes ligo.

Eu bem quisera tornar-me borboleta,
sem precisar receber golpes de malho,
mas esse é o preço que aceito para o céu

tornar em minha morada mais dileta,
enquanto abro caminho, talho a talho
e do casulo espalho as painas como um véu!...

domingo, 16 de outubro de 2011

TRADUZINDO FITZGERALD


Fonte da matéria: http://wp.clicrbs.com.br

Duas editoras nacionais estão colocando no mercado novas traduções para o clássico de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby. Pela Companhia das Letras, em sua coleção Penguin, a escritora e jornalista Vanessa Barbara apresenta a sua versão. Para a L&PM, o tradutor William Lagos também finalizou uma nova tradução, publicada agora na série L&PM Pocket. São dois tradutores com carreiras diversas. Vanessa Barbara tem 29 anos, é jornalista, autora de O Livro Amarelo do Terminal, uma radiografia do terminal rodoviário de São Paulo, e coautora de O Verão do Chibo (Alfaguara). Já traduziu, entre outros, Três Vidas, de Gertrude Stein, e Afluentes do Rio Silencioso, de John Wray. Já William Lagos, “nom-de-plume” de Luis Humberto William Lagos Teixeira Guedes, tem 67 anos e já traduziu 279 livros para cerca de vinte editoras, vertendo obras do alemão, do inglês, do francês, do italiano e do espanhol. Em seu portfólio constam  versões de obras de Arthur Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Raymond Chandler, Balzac, Voltaire, Jack London e uma pá de outros.
Aproveitando a circunstância da chegada às livrarias desses dois novos Gatsby, enviei duas perguntas a cada um dos tradutores, e publico abaixo as respostas de ambos sobre o desafio e o prazer de traduzir o livro:
Mundo Livro –  Diferentemente de outros autores de língua inglesa e de outros romances, o Gatsby é um livro que já teve um bom número de traduções no Brasil e não está exatamente fora de circulação. Ter tantas outras edições da obra para comparação ajuda ou de alguma forma dificulta o trabalho do tradutor?
Vanessa Barbara – Sempre ajuda. Consultei bastante as traduções em francês e em espanhol, além dos trabalhos acadêmicos sobre o Gatsby, que não são poucos. Há sempre dúvidas em uma ou outra passagem, e é importante saber como outras pessoas resolveram aquele trecho.
William Lagos – Quanto ao fato de haver outras traduções, simplesmente ignorei, não consultei qualquer uma, coisa que nunca faço, portanto para mim a existência de obras paralelas é indiferente. Apenas faço o melhor possível, o mais rápido possível, o mais limpo possível, o mais fiel possível ao original… E tenho certeza de que a qualidade do meu trabalho foi superior à da maioria das outras, embora, como lhe disse, não tenha consultado qualquer referência.  Como adendo, não leio o livro de antemão antes de traduzir, vou fazendo página por página, à medida em que o texto se desenrola e, se descubro algum engano, o computador permite corrigir facilmente, não é como quando iniciei, traduzindo na máquina datilográfica, em que as correções requeriam substituição de páginas.  De qualquer modo, para uma boa tradução, o que interessa é o domínio do português, muito mais que do da língua-origem. Sem querer parecer pretensioso, este é o meu método de trabalho e esta a melhor resposta que lhe posso dar.
Mundo Livro –  Quais as maiores dificuldades oferecidas pelo Grande Gatsby a um tradutor?
Vanessa Barbara – Achei as longas descrições de Fitzgerald bem duras de traduzir, foi difícil achar um jeito de ficarem fluidas em português. Além disso, como se trata de um livro sobre uma geografia que não conhecemos – os americanos não devem ter esse problema -, demorou um pouco para se localizar, tanto que tive que fazer um mapa (está no blog da Companhia: http://www.blogdacompanhia.com.br/2011/09/a-cartografia-de-o-grande-gatsby/)
William Lagos – Não encontrei qualquer dificuldade em Gatsby, é um inglês bastante fácil, coerente e tradicional, tanto no ponto de vista ideológico, como na linguagem empregada.  Há gíria, mas raramente obscenidades. Lembro que foi fácil, rápido de agradável…  No último livro que traduzi, de Brian D’Amato, Nas Cortes do Sol, tive de empregar todo o meu vocabulário obsceno, havia correspondência para tudo e a instrução foi ser fiel ao original.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

E S T I L H A S

                                        
                          Wind Toi Toi (pintura de Ira Mitchell - Nova Zelândia)
               
                       
ESTILHAS I

Os ventos eu peneiro, de permeio
por entre os dedos, numa cisma calma
ao debicar silente de minhalma,
antegozando aromas de receio...

Do Sol os raios ouço, mansamente,
comunicando à brisa seu futuro,
efêmero e perene, de obscuro
e de notável canto, meigamente.

A repartir da chuva, sem esforço
de meu porvir o singular escorço,
paisagem de metal, constelação

de meus penares, a partir medalhas,
metade ao vento, metade em escumalhas,
como limalhas do próprio coração!

ESTILHAS II

Os ventos eu peneiro, sem receio:
fiz rede dos cabelos e os perfumes,
odores de fumaça, chuva e lumes,
transitam por minha mente num recreio.

O vento que recebo, de ti veio,
e não de outras, por onde quer que rumes:
sob teus passos nascem vagalumes
e as mariposas brotam de teu seio.

Assim o vento, que me traz odor,
também me traz da borboleta a flor,
também me empresta do vagalume a luz,

nessas estilhas do vento feito em cruz,
enquanto a brisa perpassa, num fervor,
minhas sobrancelhas, em fogo que reluz.

ESTILHAS III

Os ventos que na barba me acarinham
são como beijos contra meu bigode:
do vento as digitais prender não pode
ninguém, mesmo os que dele se avizinham.

Os ventos a epiderme assim me espinham,
quais dedos de tufão que o sonho encode,
buscando a reentrância que acomode
os odores e perfumes que continham.

Os ventos que no rosto assim se aninham
são ventos de metal, de chuva e poeira,
são ventos de tua sombra derradeira,

quando teus passos junto aos meus caminham
e constroem, sobre a areia, as barricadas
que me permitem habitar sonhos de fadas.

ESTILHAS IV

Os ventos que perpassam os meus dedos,
em seus degredos, em terrível calma,
os ventos que quebraram cada palma,
os ventos que rasgaram meus segredos,

os ventos que ninaram tantos medos
e tantos outros acordaram em minhalma,
sopram areia ou borrifo que me embalma,
numa fragrância que espalha sonhos ledos.

Esses ventos são delícia de momento,
que sopram num instante e logo vão:
prendê-los em meus dedos busco então,

mas deles capturo o empreendimento
apenas desse ardor sobre minha pele
que para minha saudade mais me impele.

ESTILHAS V

Os ventos que me escorrem pelos olhos
são ventos de arlequim e colombina,
são ventos com fragrância de menina,
são ventos tamareiros, santos óleos,

os ventos que dos cílios são escolhos,
são ventos de meu pranto, em peregrina
escolha da ironia, canção fina,
almiscarado vento, olor de molhos,

de nardo e de alcaçuz, dívida antiga
para com dias perdidos de minha infância,
qual vento arrependido do passado,

os ventos da quimera que me intriga,
ventos de cisma, ventos de distância,
musas fantasmas em passo atribulado. 

ESTILHAS VI

Eu nunca faço o que de mim se espera,
a menos que se espere que o não faça:
esses beijos do vento que me abraça,
em risos cristalinos de quimera,

são dedos da memória que me espaça,
são dedos do futuro que se abeira,
são dedos do presente que aligeira
o futuro ao passado que congraça.

São dedos do presente, que devora
os ventos do futuro hospitaleiro,
que passa como um vento derradeiro...

Só por instantes representa a brisa,
que o tempo ainda é mais vento quando alisa,
mui calmamente, minha vida embora...

ESTILHAS VII

O vento que peneiro é meu futuro,
que passa velozmente, em calma obscura,
que permanece em mim, enquanto dura,
na sensação fingida e permanente.

Porque essa permanência, eu asseguro,
pela mesma flutuação de minha agrura;
o vento corre em decadência pura
e me deixa para trás, indiferente...

Mas quando passa, o vento come a gente:
leva cabelos, calor, suor e pele
e leva o tempo antigo que era nosso.

Por isso é que o peneiro, esforço ingente,
só por prender um instante, que congele
o meu presente fugaz, enquanto posso.

ESTILHAS VIII

Que de teu vento retive o quanto quis,
enquanto tive de mim perto teu alento.
De madrugada, junto à noite sento,
examinando os recortes que já fiz...

Guardei tua sombra em meu almofariz,
guardei no alforje teu abraço bento,
guardei nos olhos a sombra de teu vento,
guardei teu rosto num painel de giz.

De ti só peneirei o imponderável:
teus traços me pertencem, sempre meus,
guardo na alma as feições de tua memória,

na imagem subcutânea desta glória
de possuir teu fantasma inalcançável,
nesses seixos de tempo que são teus. 

ESTILHAS IX

Os ventos que peneiro pelos dedos
com meu bafo, transformo em mil cristais
e me sorriem tais ventos, nos demais
espelhos que refletem meus segredos.

Esses ventos que replicam os meus medos
com meu bafo, em estrelas siderais
eu transmogrifo, ou em estilhas naturais,
esgarçados assim em mil penedos.

Esses ventos que refletem nas arestas
o que lembro de ti ou que queria
poder lembrar, nas cloacas da memória,

eu conservo firmemente nas mil cestas,
por entre cujos vimes espiaria
cada momento fugaz da falsa história.

ESTILHAS X

Porque essas cestas ou barris de vime,
embora cheios de gretas e de frestas,
se prestam mais a conservar tais bestas
que um cofre de aço, que se estime

como sendo mais forte e nos anime
a preservar os tesouros destas giestas
por entre chapas de aço, que as arestas
o vento roça e rasga até que lime

a mais grossa armadilha que o oprime;
mas quando podem fitar por entre fendas,
esses olhos de vento espiam quedos

e, embora não cometam qualquer crime,
aceitam refletirem luz e lendas
em suas estilhas que guardam mil segredos. 

ESTILHAS XI

Conservo os ventos em plena solidez:
ventos domados por cristais que crio;
ventos de sonho não causam arrepio,
senão a sonhos de maior nudez.

Se pelas frestas do vime então espio
essas memórias do vento feito em grês,
os olhos fito dos ventos, sem dobrez:
também me espiam em seu luzir esguio.

Guardo nos ventos estilhas do futuro
e então posso abrir a tampa sem receio:
eles não fogem para o mundo externo.

Guardo nos ventos meu olhar mais puro,
guardo nos ventos os deuses em que creio
e guardo teu odor, em sonho eterno.

ESTILHAS XII

Que desses ventos peneirei os males
e meu porvir eu transformei em chuva;
mudei a garra em dedos como luva,
que me percorrem da garganta os vales.

Que nesses ventos guardei os similares
desses sabores que a brisa traz da uva,
do meigo odor com que zéfiro me enluva
narina a dentro ao sínus e aos milhares

de sinapses que provêm de meu passado,
efêmero e perene, o puro antanho,
de todos os desgostos peneirado...

e nesses ventos alma e mente banho
e novas vidas no presente ganho,
por mais que falso seja o bem dourado.