sábado, 1 de outubro de 2011

HÉGIRA


                                                         Flying Leaf - pintura de Leo de Freyne


HÉGIRA  (partida, fuga) I

Quero escrever de amor e hoje não posso:
já esgotei as metáforas de prata,
de carne e sangue, os ossos da omoplata
serviram como enxadas nesse esboço

de um castelo de sonhos, nesse fosso
de ilusões em que a alma se desata;
não mais se atreve o amor, numa cantata,
a falar, que o sentimento fez-se insosso,

talvez que os feromônios se afastaram
e nada mais me excite realmente,
quando estou só, senão esta veemente

intenção de descrever dor que deixaram,
funda em meus sentimentos nesta hora,
em que estou só e apenas amo o outrora.

HÉGIRA II

Foge de ti o meu amor dolente
ou fugiste de mim inteiramente,
não sei qual desses dois chegou primeiro;
se foi sincero amor ou interesseiro;

não sei de fato se até é inteligente
falar assim de amor frequentemente
ou se melhor me fora o derradeiro
verso que te escrevi seja o viveiro

de nossos versos de um amor dourado,
manchado de carmim alcandorado
ou desvestido de qualquer sentido...

Talvez, eu nem sequer tenha vivido
essa mescla de esperança e de temor:
viva emoção que já chamei de amor.

HÉGIRA III

Qual Maomé de Mecca sai outrora,
perseguido por parentes inimigos.
eu me transfiro assim a tais jazigos
em que sepultarei o meu agora.

Sou foragido em momentânea hora
dessa sombra de momentos mais antigos,
mais de temer por serem meus amigos
e mais difíceis de mandar embora.

Se Maomé fugiu do próprio clã,
eu fujo à sanha de meu próprio amor:
dentro de mim amor; o clã, de fora.

E, por isso, minha hégira é mais vã,
pois onde vou, carrego o meu temor:
esse fantasma de ti, que me devora. 

HÉGIRA IV

Todas as vezes em que fugi na vida,
mais por temor que por real motivo,
somente redundaram redivivo
pretexto para a mesma dolorida

memória que causara minha fugida
retornar em contorno bem mais vivo
e me fazer passar de novo ao crivo
desses carrascos que não têm contida.

Fugir de nada adianta, tudo volta
e mais que antes serve de tormento
que se tivéssemos parado a enfrentá-los,

pois sempre temos como nossa escolta
esses fantasmas de puro pensamento
que nos ajudam assim a dissipá-los...

HÉGIRA V

Quando se foge assim do amor escasso,
sem grande esforço para conquistá-lo,
sai-se do fosso para o interior do valo,
onde se encontra mais exíguo espaço.

Pois não se quer a negação do abraço
e, contudo, não se faz por alcançá-lo,
ao invés de corda, surge novo abalo
e se acaba por tombar com estardalhaço.

Porque é só de nós mesmos que fugimos,
ou para dentro de maior loucura
ou para fora, a sombra em nosso encalço.

Lá no fundo, a nós mesmos perseguimos:
é o coração desnudo de candura
que lança a nossos pés cada percalço. 

HÉGIRA VI

Pois vou fugir de mim e retornar
de novo para ti, sabendo ainda
que a réstia de esperança não é finda,
enquanto houver sendeiro a palmilhar...

Durante a noite, eu venho te buscar:
sombra de vento marcará minha vinda;
o poema se faz jóia, a noite é linda,
quando tua bênção rega meu olhar...

Bem me bastava poder-te ver um pouco,
nua de escrúpulos ou de mesquinharias,
disposta a tudo pelo nosso bem...

Mas a sombra da lua, em riso louco,
te reveste novamente em rebeldias
e tal amor com que sonhei, não vem.

HÉGIRA VII

Forjei para mim próprio minhas cadeias;
cada vez mais as busco reforçar:
são grilhões bem polidos a brilhar,
calabouços por detrás destas ameias...

Na busca desse olhar que me incendeias,
por trás da levadiça é meu estar:
não monto o palafrém a cavalgar
até a roca em que entreteces teias...

Fazendo assim, tornando mais potente
a jaula que me prende, carcereiro
sou de mim mesmo, igual que meu carrasco...

No vago eremitério, meu semblante
só se reflete no canto alvissareiro
de tantos versos que diariamente masco.

HÉGIRA VIII

Fugi de minhas artérias para o fundo
do complexo neural mais delicado;
o meu destino foi incinerado,
na evolução do axônio mais rotundo;

fugi para o dendrito mais profundo,
numa rede neural fui afixado;
quanticamente fui reduplicado
e estou em toda parte, no jocundo

reproduzir fractal desta quimera:
sou fantasma de mim, mesmo que queira
ser fantasma de ti, estranho vício,

que me levou à jaula da ilusão,
vazios de sangue mente e coração,
na saga amarga deste meu suplício...

HÉGIRA IX

Quando fujo de meus sonhos, eu me encontro
envolto em adrenalínico esplendor;
então me ergo, em concreto destemor
e parto bravo para tal recontro:

esqueço as ilusões e me demonstro
capaz de pelejar, amplo valor
a refletir, nas vascas do terror
do dia a dia sólido de monstro...

Depois, escravo do computador,
escrevo os cantos puros dos miasmas
emanados dos pântanos da mente...

Quem saberá, no fundo, qual o autor
de tantas elegias de fantasmas,
rabiscadas sem pensar no que se sente...?

HÉGIRA X

Não fui só eu: do tempo tu fugiste
e te escondeste do delator espelho
que te demonstra, no novo rosto velho,
que intacto esse algoz ainda persiste.

Fugir do tempo é reação bem triste,
coisa inútil até, um escaravelho
rolando permanente, sob o relho
do tempo, essa bolinha, em que consiste

sua vida, no esterco conservada,
na qual seus ovos pôr e a geração
preparar para a nova primavera...

Também rolamos, em direção ao nada,
no círculo dos dias, provação
retransmitida aos seres que se gera...

HÉGIRA XI

Também fugiste de todo o meu espaço:
aquela que eu encontro, é diferente
do que pensava fosse, em meu fremente
palpitar por deitar-me em seu regaço;

foi-se partindo, pedaço por pedaço,
transformou-se em mil outras, lentamente;
de nada me adiantou o esforço ingente
por remoldar aquela que argamasso,

pois se moldou por si, fez-se sozinha,
na estátua de si mesma, em bibelô,
bem menos frágil que meu coração;

no fim das contas, a deusa não foi minha;
tinha outros planos e os realizou,
enquanto eu mastigava uma ilusão.

HÉGIRA XII

Fugi do tempo e ele me alcançou,
com seus dedos de névoa cintilantes;
fugi do espaço e os uivos ululantes
do vento eu escutei, que me empurrou

de volta para o espaço e não deixou
que eu me abstraísse, nos vibrantes
sonhos de esteta, em jogos aberrantes:
fugi da vida e a vida me troçou...

Fugi de ti, no olvido aveludado;
fugi das unhas pontiagudas da memória;
fugi dos sonhos que buscava, alfim...

E todos me encontraram... Meu passado
ri diariamente... Tentei fugir da história,
sem conseguir sequer fugir de mim.


Nenhum comentário:

Postar um comentário