quarta-feira, 12 de outubro de 2011

E S T I L H A S

                                        
                          Wind Toi Toi (pintura de Ira Mitchell - Nova Zelândia)
               
                       
ESTILHAS I

Os ventos eu peneiro, de permeio
por entre os dedos, numa cisma calma
ao debicar silente de minhalma,
antegozando aromas de receio...

Do Sol os raios ouço, mansamente,
comunicando à brisa seu futuro,
efêmero e perene, de obscuro
e de notável canto, meigamente.

A repartir da chuva, sem esforço
de meu porvir o singular escorço,
paisagem de metal, constelação

de meus penares, a partir medalhas,
metade ao vento, metade em escumalhas,
como limalhas do próprio coração!

ESTILHAS II

Os ventos eu peneiro, sem receio:
fiz rede dos cabelos e os perfumes,
odores de fumaça, chuva e lumes,
transitam por minha mente num recreio.

O vento que recebo, de ti veio,
e não de outras, por onde quer que rumes:
sob teus passos nascem vagalumes
e as mariposas brotam de teu seio.

Assim o vento, que me traz odor,
também me traz da borboleta a flor,
também me empresta do vagalume a luz,

nessas estilhas do vento feito em cruz,
enquanto a brisa perpassa, num fervor,
minhas sobrancelhas, em fogo que reluz.

ESTILHAS III

Os ventos que na barba me acarinham
são como beijos contra meu bigode:
do vento as digitais prender não pode
ninguém, mesmo os que dele se avizinham.

Os ventos a epiderme assim me espinham,
quais dedos de tufão que o sonho encode,
buscando a reentrância que acomode
os odores e perfumes que continham.

Os ventos que no rosto assim se aninham
são ventos de metal, de chuva e poeira,
são ventos de tua sombra derradeira,

quando teus passos junto aos meus caminham
e constroem, sobre a areia, as barricadas
que me permitem habitar sonhos de fadas.

ESTILHAS IV

Os ventos que perpassam os meus dedos,
em seus degredos, em terrível calma,
os ventos que quebraram cada palma,
os ventos que rasgaram meus segredos,

os ventos que ninaram tantos medos
e tantos outros acordaram em minhalma,
sopram areia ou borrifo que me embalma,
numa fragrância que espalha sonhos ledos.

Esses ventos são delícia de momento,
que sopram num instante e logo vão:
prendê-los em meus dedos busco então,

mas deles capturo o empreendimento
apenas desse ardor sobre minha pele
que para minha saudade mais me impele.

ESTILHAS V

Os ventos que me escorrem pelos olhos
são ventos de arlequim e colombina,
são ventos com fragrância de menina,
são ventos tamareiros, santos óleos,

os ventos que dos cílios são escolhos,
são ventos de meu pranto, em peregrina
escolha da ironia, canção fina,
almiscarado vento, olor de molhos,

de nardo e de alcaçuz, dívida antiga
para com dias perdidos de minha infância,
qual vento arrependido do passado,

os ventos da quimera que me intriga,
ventos de cisma, ventos de distância,
musas fantasmas em passo atribulado. 

ESTILHAS VI

Eu nunca faço o que de mim se espera,
a menos que se espere que o não faça:
esses beijos do vento que me abraça,
em risos cristalinos de quimera,

são dedos da memória que me espaça,
são dedos do futuro que se abeira,
são dedos do presente que aligeira
o futuro ao passado que congraça.

São dedos do presente, que devora
os ventos do futuro hospitaleiro,
que passa como um vento derradeiro...

Só por instantes representa a brisa,
que o tempo ainda é mais vento quando alisa,
mui calmamente, minha vida embora...

ESTILHAS VII

O vento que peneiro é meu futuro,
que passa velozmente, em calma obscura,
que permanece em mim, enquanto dura,
na sensação fingida e permanente.

Porque essa permanência, eu asseguro,
pela mesma flutuação de minha agrura;
o vento corre em decadência pura
e me deixa para trás, indiferente...

Mas quando passa, o vento come a gente:
leva cabelos, calor, suor e pele
e leva o tempo antigo que era nosso.

Por isso é que o peneiro, esforço ingente,
só por prender um instante, que congele
o meu presente fugaz, enquanto posso.

ESTILHAS VIII

Que de teu vento retive o quanto quis,
enquanto tive de mim perto teu alento.
De madrugada, junto à noite sento,
examinando os recortes que já fiz...

Guardei tua sombra em meu almofariz,
guardei no alforje teu abraço bento,
guardei nos olhos a sombra de teu vento,
guardei teu rosto num painel de giz.

De ti só peneirei o imponderável:
teus traços me pertencem, sempre meus,
guardo na alma as feições de tua memória,

na imagem subcutânea desta glória
de possuir teu fantasma inalcançável,
nesses seixos de tempo que são teus. 

ESTILHAS IX

Os ventos que peneiro pelos dedos
com meu bafo, transformo em mil cristais
e me sorriem tais ventos, nos demais
espelhos que refletem meus segredos.

Esses ventos que replicam os meus medos
com meu bafo, em estrelas siderais
eu transmogrifo, ou em estilhas naturais,
esgarçados assim em mil penedos.

Esses ventos que refletem nas arestas
o que lembro de ti ou que queria
poder lembrar, nas cloacas da memória,

eu conservo firmemente nas mil cestas,
por entre cujos vimes espiaria
cada momento fugaz da falsa história.

ESTILHAS X

Porque essas cestas ou barris de vime,
embora cheios de gretas e de frestas,
se prestam mais a conservar tais bestas
que um cofre de aço, que se estime

como sendo mais forte e nos anime
a preservar os tesouros destas giestas
por entre chapas de aço, que as arestas
o vento roça e rasga até que lime

a mais grossa armadilha que o oprime;
mas quando podem fitar por entre fendas,
esses olhos de vento espiam quedos

e, embora não cometam qualquer crime,
aceitam refletirem luz e lendas
em suas estilhas que guardam mil segredos. 

ESTILHAS XI

Conservo os ventos em plena solidez:
ventos domados por cristais que crio;
ventos de sonho não causam arrepio,
senão a sonhos de maior nudez.

Se pelas frestas do vime então espio
essas memórias do vento feito em grês,
os olhos fito dos ventos, sem dobrez:
também me espiam em seu luzir esguio.

Guardo nos ventos estilhas do futuro
e então posso abrir a tampa sem receio:
eles não fogem para o mundo externo.

Guardo nos ventos meu olhar mais puro,
guardo nos ventos os deuses em que creio
e guardo teu odor, em sonho eterno.

ESTILHAS XII

Que desses ventos peneirei os males
e meu porvir eu transformei em chuva;
mudei a garra em dedos como luva,
que me percorrem da garganta os vales.

Que nesses ventos guardei os similares
desses sabores que a brisa traz da uva,
do meigo odor com que zéfiro me enluva
narina a dentro ao sínus e aos milhares

de sinapses que provêm de meu passado,
efêmero e perene, o puro antanho,
de todos os desgostos peneirado...

e nesses ventos alma e mente banho
e novas vidas no presente ganho,
por mais que falso seja o bem dourado.



                            

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