terça-feira, 25 de outubro de 2011

J E R I C Ó

                                                            imagem: www.itsromanticpaintings.co.uk

JERICÓ I

            eu canto o encanto monótono do beijo
            tantas vezes repetido com amor,
            por mais que conhecido o seu sabor,
            na experiência sutil de novo ensejo!
                    que se revela,
                    a mim e a ela,
                    numa janela,
                    exposta ao vento!
            louvo o beijo conhecido e sem mistério,
            beijo doméstico, de expressão singela,
            beijo de despertar, beijo de vela,
            sem explosão de intenso despautério,
            mas rico ainda, em sua intensidade,
            no conhecido flavor da saciedade,
            que diariamente nos traz o refrigério.

JERICÓ II

        esta é expressão que sempre me assustou:
        "um beijo no teu coração..."  horrível,
        como a furar a barreira intransponível
        do meu esterno, que sempre me escudou:
                   inquietação,
                   na expiração,
                   suor na mão
                   e um arrepio...
        esse tipo de beijo é mais pungente,
        mesmo que seu sabor seja vazio,
        de certo modo, me deixa em corrupio,
        embora um beijo real seja mais quente.
        talvez sejam como beijo de vampiro
        esses teus olhos...  e até mesmo miro
        os dois buracos abertos bem na frente!

JERICÓ III

        entre os gases que respiro, está o argônio,
        um desses gases que apelidaram nobres;
        entre as flores que vejo, dos mais pobres
        são os carinhos do humilde pelargônio.
                     argônio pelargônio,
                     gerânio pelgerânio,
                     malvão ou pelmalvão,       
                     os nomes que lhe dão,
        dependendo do lugar ou do momento:
        tudo depende da cor desse cristal,
        com que se encara tanto o bem e o mal.
        mas o gerânio me desperta sentimento
        por seu perfume humilde e meio agreste
        e pelas flores folhadas com que despe
        o veludo de suas pétalas ao vento...

JERICÓ IV

        se às vezes falo dos amores velhos,
        cujas faces até somem da memória,
        não julgues que me porto como a escória
        que tem prazer em olhar-se nos espelhos.
                    que, na verdade,
                    com humildade,
                    a saciedade
                    de leve toco.
        não se trata de gabar-me de quem tive;
        bem ao contrário, sinto é gratidão:
        que, por instantes, o seu coração
        compartilhassem comigo quando estive
        gozando a dádiva quase incompreensível:
        que me quisessem nesse instante incrível,
        que guardarei enquanto a mente vive!

JERICÓ V

        de quem são esse corpo ou essa boca,
        de quem são esse rosto e o hematoma?
        quem é que beijos e pancadas soma,
        te faz feliz e depois te deixa louca?
                    sexto sentido,
                    amor bandido,
                    rosto ferido,
                    dizem de amor.
        o pior é que uma parte de ti gosta...
        que pancada de amor, dizem, não dói.
        esse tipo de amor a estima rói...
        há quem, para apanhar, paciência tosta...
        até conheço algumas que o buscaram,
        mas que comigo se desapontaram,
        que não me envolvo em relação tão tosca.

JERICÓ VI

        por alguma razão chamam maçã
        esse tal fruto roubado ao paraíso,
        afirmação até de pouco siso,
        que nem havia então tal fruta sã...
                    que foi criada
                    e cultivada,
                    já adiantada
                    a civilização...
        seria mais provável fosse um figo,
        cujas folhas melhor cobrem nudez
        e os frutos da figueira são, talvez,
        conhecidos desde tempo mais antigo...
        mas a maçã nos lembra um coração
        ou a sombra das nádegas no chão,
        da ancestral que nem sequer tinha o umbigo!

JERICÓ VII

        a lua puxa o céu para um armário
        e enrola, com cuidado, o véu azul;
        na prateleira de cima guarda o sul,
        o norte esconde em outro relicário.
                    então seu manto,
                    em lento canto,
                    feito de pranto,
                    pinta de negro.
        suas estrelas são talvez amaldiçoadas
        à permanência tão só no céu da boca,
        quiçá pregadas às dobras de uma touca
        ou quem sabe são apenas perfuradas,
        pequenas lágrimas que jóias querem ser,
        mas que se apagam pelo amanhecer,
        quando as gazes do azul são espalhadas. 

JERICÓ VIII

        nesses mil olhos brancos de traições,
        presidem as estrelas os destinos,
        nas noites frias tangem os seus sinos,
        cobrindo de ironia as multidões.
                    um pó de ouro,
                    puro desdouro,
                    cujo tesouro
                    é o teu despeito.
        mas quando vejo em estrelas meu agouro,
        estendo os dedos até o manto do céu
        e, uma a uma, as desprego desse véu,
        só deixando os buracos nesse couro,
        e mastigo tais estrelas, sem cessar,
        para na terra depois as espalhar,
        onde renascem como trigo louro.

JERICÓ IX

        mas por que jericó foi escolhido
        para desta nova série ser o nome?
        nem eu o sei: de títulos há fome
        para o exército de versos produzido.
                    outro podia,
                    ser "luz do dia",
                    ser "energia"
                    ou "marimbondo",
        que, na verdade, não passam de caprichos
        esses rótulos que ponho nos sonetos,
        mas se quiseres sentidos ver secretos,
        fica à vontade, com teus sonhos michos.
        eu usei jericó, cidade antiga,
        como podia ter usado "lua amiga"
        ou, quem sabe, empregar nomes de bichos...

JERICÓ X

        quanto às estrelas que na língua tenho,
        tu me deixaste, com teu longo beijo,
        pelo brilho cintilante desse ensejo:
        no céu da boca a encastoá-las venho
                    e, uma a uma,
                    em doce espuma,
                    eu beijo a ruma
                    dos velhos astros,
        quando fizeste de minha boca o céu,
        tua própria língua em sonho de saliva,
        cada pequena estrela assim me ativa
        o palato duro, recamado em véu;
        e agora que estás longe, ainda mastigo
        e, em cada estrela, julgo estar contigo,
        lambendo os astros que deixaste ao léu.

JERICÓ XI

        eu bem queria um lencinho receber,
        como esse que cantava a libertad,
        bordado com cabelos... mas não há
        ninguém que queira um me oferecer...
                    mesmo porque,
                    já não se vê
                    a bordadeira que,
                    nos dias de hoje,
        se disponha a usar os seus cabelos,
        de forma permanente e mais fiel,
        que as longas tranças dessa rapunzel
        que o príncipe acolhia em seus desvelos...
        mesmo penélope, a da tapeçaria,
        para tanto, cabelos não teria
        e deve ter tecido com novelos!...

JERICÓ XII

        na falta de um lencinho, serve a mecha
        que me queiras deixar de teus cabelos,
        ou uma trança semelhante a tais novelos,
        em que prendia toda a antiga queixa
                    a moça-velha,
                    que se aconselha
                    e que se espelha
                    em sua tristeza...
        a minha avó casou-se aos trinta e nove,
        já era velha, nesse tempo antigo;
        cortou a trança que era seu abrigo,
        iniciativa que até hoje me comove:
        longos cabelos, guardados tantos anos...
        teve um só filho e, por seus desenganos,
        que este último poema então a louve!...




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