quarta-feira, 2 de novembro de 2011

MORT D'OURO

Arte de Ginette Callaway – pintora francesa radicada nos EUA

MORT D'OURO I

os versos não são meus, mas de quem lê
quer despertem desgosto, quer prazer
é ao leitor que devem pertencer
não a quem faz
e se desfaz
na ceifa amara de seus desenganos
na coifa doce de passados anos
e mal se atreve
quando te escreve
a murmurar teu nome em peregrino
degustar de um insosso desatino
que a língua é cega
e desnavega
entre as amígdalas e a dental muralha
onde se espelha e espraia, onde se espalha
no odor da terebentina
nessa cor de ptialina
que leva a assepsia ao coração
no surdo ardor da tinta registrada
pela retina que a faz ressuscitada

MORT D'OURO II

não me importa até que ponto já cheguei
que não fui a parte alguma; foi desmaio
tremeluzente no mais brando raio
da negra luz
em tons de pus
que é afinal a defesa do arranhão
que perfurou a pele sem paixão
é indiferente
esta silente
invasão de minha carne, tal qual é
o pus da alma, que combate até
a lenta infecção
da rápida paixão
que quase nos obita os pensamentos
colateral efeito em paramentos
de sal insosso,
neste colosso
de lugares amargos que não vi
nesse fluir constante do porém
que a parte alguma jornadeou também

MORT D'OURO III

se aplausos eu quisesse, imprimiria
os poemas da boca emudecida
que se envaidece por não ser ouvida
na estranha prece
do som que desce
das estrelas no calor da madrugada
enquanto o mundo dorme na calada
da noite azeda
e humor degreda
ao contemplar essa pilha abandonada
de versos acampados sobre o nada
não mais sonetos,
são os bisnetos
de poemas escritos há cem anos
na luz melíflua de gentis enganos
a estrela desce
em negra prece
pelos grumos de uma escada de cabelos
roubados desse tempo condensado
no meu espaço há muito descartado

MORT D'OURO IV

se a vida é amarga ter raiva é teu direito
mas não te dá direito à crueldade
basta aos outros sua própria realidade
sem precisarem
nem desejarem
tornar-se o alvo dessa tua revolta
que não deves permitir andar à solta
a raiva é tua
tua língua sua
mas não se presta a destilar veneno
lança tua raiva às águas, lança ao feno
para o restolho
seja o refolho
converter ódio em obra permanente
tal como eu tenho feito tão frequente
somente escrevo
o quanto eu vejo
que possa ser a alguém um pouco útil
portanto escuta a transparente cor
desse conselho que traduz o meu rancor

MORT D'OURO V

para que entendas por que não publico
pensa no tempo que gastarei com isso
terei de visitar tal compromisso
já mal me sobra
tempo de obra
na revisão sequer de meus rascunhos
de tão prolixos e complacentes cunhos
eu pretendia
e até queria
passar a limpo alguns versos nesta noite
mas de repente chegou do vento o açoite
e a saraivada
relampejada
de irônicos trovões como pirraça
não me conformo nesta paz escassa
e não consigo
e já desligo
sem mais delongas o estabilizador
em que o pó será meu único leitor
destes versos empilhados sobre a mesa

MORT D'OURO VI

abri de novo a torneira e já não posso
conter um novo jorro de paixão,
cortada é claro, apenas emoção
monocromática
fruto da prática
de transformar presépios em suores
trevas sonoras percutidas em mil cores
escorre a hora
não vai embora
essa mania de transformar em tinta
tanta ilusão já no meu peito extinta
que mais fazer?
deixo escorrer
até fechar a válvula solerte
de tanto sangue que meu peito verte
mas só assisto
e nem insisto
apenas corre o verde dos neurônios
nesses meus versos azuis dos desapontos
como é vermelha a mentira destes contos

MORT D'OURO VII

lástima azul se derrama em dor sonora
um leque de sabores sem retorno
na língua cega deste desamorno
no surdo olfato
do meu recato
nem sequer toco a harpa das aranhas
só me derreto nas rimas das entranhas
nas artimanhas
das ariranhas
que me nadam na lama das artérias
e que me entopem as intenções mais sérias
em deletérias
pedras etéreas
que ribombam de meu crânio nas paredes
em cuja poeira desgasto as minhas sedes
lástima vedes
quando concedes
um momento alaranjado de paciência
para a leitura roxa destes versos
em madrepérola e rosicler conversos

MORT D'OURO

por que não faço mais poesia gauchesca?
porque têm muitos mestres e não brilho
busco sendeiro diferente no meu trilho
onde melhor
o meu vigor
se demonstrar que em caminho desbravado
mas que corto à cimitarra, alucinado
por língua torta
na terra morta
onde ocorre mais fácil essa rima
neste poema que a saudade intima
já fui julgado
e apisoado
à revelia de meus próprios beijos
pela presença malévola de ensejos
sempre ferido
fui excluído
nem maragatos nem chimangos me desejam
tampouco o vento me impele no seu flete
para que em velhas quebradas me complete

MORT D'OURO IX

mesmo sabendo quanto outros me julgam
eu mesmo já cansei de me julgar
ou de julgar aqueles que me julgam
é dispêndio de energia
que a nada me levaria
de fato é extremamente cansativo
juiz tornar-se sem qualquer motivo
depois é inútil
coisa mais fútil
querer para os demais passar sentença
ou demonstrar possuir maior sabença
ninguém te busca
quando se ofusca
porque todos buscam só aprovação
dizem tolices de aberto coração
e se escutares
e te calares
por maior a tolice que expressarem
muito bem saberão como louvarem
a excelência de tua conversação

MORT D'OURO X

contudo sei muito bem ser petulante
ao demonstrar essa equanimidade
como um sinal de plena aceitação
de alheias falhas
tais quais que são
mesmo quando não me arvoro num juiz
ao ver o que o arrogante faz ou diz
porém meu coração
assume a posição
indubitável de superioridade
e ser gentil é uma expressão de orgulho
e reconheço
no meu apreço
pelas cores variegadas deste outono
que deixei a humanidade no abandono
e me coloco
talvez um pouco
em situação indulgente e paternal
de um adulto em posição curial
sentado acima das crianças que o rodeiam

MORT D'OURO XI

e no momento em que brilha o desatino
eu percebo meus duendes recurvados
sob o peso do jugo dominados
em seu rancor
por seu temor
de erguer as cabeças ao chicote
dispostos a aceitar o menor mote
e assim compor
com vão primor
esses versos que até eu esquecerei
nesse afã em que mil horas desgastei
mas que me ajuda
e o tom emuda
neste protesto viril que me atormenta
do desespero que tanto me acalenta
ao ser longânimo
ao ser equânimo
vendo os outros obterem com sua raiva
o quanto não consigo pelo amor
que não desperta afinal qualquer temor

MORT D'OURO XII

e o que me salva é ter o dom do riso
esse estranho domínio do martírio
na minha ética feita de ironia
se tudo é errado
nada é pecado
e nada existe neste mundo deletério
que honestamente levar consiga a sério
até minha crença
de fato extensa
no desvelar-se da imortalidade
encaro com gentil ceticidade
se a morte chega
e tudo cega
não me trará a mínima dolência
quando muito eu sorrirei com impaciência
visto que enquanto
eu tiver pranto
sei bem que a morte não chega para mim
e nesse dia em que chegar enfim
não estarei aqui para temê-la

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