PAREDES DE LAMENTO I
O reboco interior das casas velhas
conserva os sonhos dos que lá viveram,
conserva os pesadelos que sofreram,
conserva o reverbero de suas telhas,
conserva aquela voz com que aconselhas,
conserva o ardor antigo dos que amaram,
conserva o pranto de quando separaram,
conserva a luz do vidro em que te espelhas.
Já de há muito se foram os habitantes:
muitos foram para a casa derradeira,
outros apenas em séries de mudanças...
Porém, se nelas entras, por instantes,
tua carne é penetrada pela esteira
desses ecos carregados de lembranças...
PAREDES DE LAMENTO II
Nos cantos abissais da falsidade
as paredes se racham, reverbero
de quanto contemplaram de insincero
e de quanto assistiram de inverdade.
Em cada greta habita uma saudade,
bem escondida do espanador mais fero,
na poeira acumulada, em que não quero
avistar meus momentos de maldade.
Pois cada vez que me limpam o escritório,
as minhas sombras caem, feitas pó,
sendo engolidas pelo aspirador,
esse ceifeiro de cada emunctório,
transpirado da alma, em pranto só,
meio entremeado com ilusões de amor.
PAREDES DE LAMENTO III
É nessas gretas que se oculta a veleidade,
bem mais sincera que a que no corpo fica.
E enquanto o tempo passa, mais indica
ser veio puro, em véu de castidade.
Porque as sombras se misturam, é verdade,
numa fusão maior que a carne é rica.
A pele contra a pele se replica,
mas a sombra é que se funde em saciedade.
Porém, quando eu somente habito a peça
e me retiro, quando chega-me a empregada,
nem há menção de sombras misturar;
tal como ela de si nada se esqueça
e é somente minha sombra assim mesclada,
muito mais pura que a carne tumular.
PAREDES DE LAMENTO IV
Também minhalma se oculta nessas frestas.
Não a alma de hoje, mas a antiga.
Essa alma que deixei, que não consiga
conflagrar-se com a alma de minhas gestas.
Ela se prende a suas velhas festas,
enquanto se esfiapa toda a liga
que a velha alma à alma nova abriga.
Mais de uma alma se refugia nestas
gretas de cal, fingindo de alvaiade,
gretas de chumbo pretendendo eternidade,
gretas de mágoa faiscando compaixão.
Elas se escondem, as pobres, rejeitadas
pelo vigor das cores marchetadas
da nova alma que domina o coração.
PAREDES DE LAMENTO V
O que pode ocorrer, quando a alma pura
se introduz pelas gretas das paredes,
contracenando com as estranhas redes,
no palco dessa estreita sinecura?
De que espécie será a magistratura
desses poderes com que a alma impedes
de reparar as mais cáusticas sedes
de amor ou de paixão ou de ternura?
O que pode ocorrer, nesse momento
em que a alma em treva se reveste inteira,
a compartir espaço com as aranhas?
Talvez envolta em teia de tormento
tenha essa alma a bênção derradeira
de dominá-las com suas próprias manhas...
PAREDES DE LAMENTO VI
Na parede que fica atrás da porta,
decapitados, estão os meus bonés:
cada um deles com suas próprias fés,
cada um deles uma crença torta.
Cada um deles guarda a mente morta
dos dias do passado, dos balés
em que a alma se envolveu, vazias sés
dos sentimentos que o cérebro comporta.
Quando escolho um boné, se vou sair,
com ele ainda recolho essas memórias,
encarquilhadas, murchas, ressentidas.
Envolvo o crânio com seu reluzir
e de novo se acendem as histórias
que melhor fora ficassem esquecidas.
PAREDES DE LAMENTO VII
Partilho, assim, a toca das aranhas,
rede por rede, teia contra teia:
não me afeta esse veneno que incendeia,
tenho minha alma munida de artimanhas,
não alcancei castelos nas espanhas,
meu sangue se esparziu em grãos de aveia,
rebrotou nas espigas de minha ceia,
esguichou sob o azorrague com que lanhas.
Quando minha alma penetra pelas fendas
é ela que prepara as armadilhas
e captura as aranhas por magia...
A percorrer aracnídeas sendas,
longos jejuns no dedilhar das ilhas
dos filamentos que minha mente cria.
PAREDES DE LAMENTO VIII
Das gretas das paredes me observam
esses olhos sem luz, mas transparentes,
a espreita de emoções luminescentes:
a espreita de emoções luminescentes:
nos seus teares os atos meus conservam.
São silenciosos nas ilusões que externam:
olham de esguelha, vácuos aparentes...
Às vezes se derramam, complacentes;
em busca de meus pés então se enervam...
Ou, se toco no reboco por momentos,
eles se enfiam na pele de meus dedos:
as tristes almas desses meus passados...
e me percorrem os ossos, como ventos,
a rebuscar dos nervos os segredos,
para guardá-los em seus ocos empoeirados.
PAREDES DE LAMENTO IX
Apenas meu espírito desejam,
nesse seu sonho de reintegração,
mas temerosas de mim também estão,
por más lembranças que também ensejam.
Pois sabem de outras almas que ainda adejam,
perdidas já de mim, sem salvação,
recalcitradas em sua desunião,
a ressecar-se, donde quer que estejam,
nessas casas antigas que habitei,
aqui ou no estrangeiro, que deixei
e a que meu corpo nunca voltará,
que algumas delas nem existem mais,
perdidas nas moradas do jamais,
que meu espírito nunca mais refletirá.
PAREDES DE LAMENTO X
Existe ainda a casa mais antiga
desses primeiros anos de minha infância:
são tão passados, que sua manigância
já mal aflora no que a mente liga.
Mas não existe mais a casa amiga,
perdeu-se totalmente na distância,
em que passei da adolescência a estância:
na mente apenas sua visão se abriga.
Hoje em dia, só existe em minha memória,
nas almas falsas que moldei em cera,
nas mil recordações do que não houve.
Transformadas em caliça, aterro e escória,
almas perdidas flutuando noutra esfera,
leves fulgores que a lembrança louve...
PAREDES DE LAMENTO XI
A imagem que vi, desde meu berço,
no sonho cristalino de criança,
o espelho azinhavrado da lembrança,
a jaça infinda desse velho terço,
até a banheira em que jazi, imerso,
antes que houvesse do chuveiro a dança,
pintalgando a cabeça em chuva mansa,
que a mãe lavava com sabonete Derso...
Tudo está claro ainda na minha mente,
mesmo embora não me esforce por lembrar
esses buquês de espera reluzente...
Imagens falsas são, possivelmente,
demolidas as paredes desse lar,
almas viradas em alicerce de outra gente.
PAREDES DE LAMENTO XII
Foram mil almas por incêndio consumidas
nessa outra morada que habitei...
Todo o suor e esforço que gastei,
almas ferventes de ilusões perdidas...
Na outra casa, há almas desvalidas,
que, desde então, só às vezes visitei.
Algumas delas, até mesmo desgrudei
dessas paredes por outros refletidas.
É por isso que estas almas que me fitam,
das finas gretas das atuais paredes,
me contemplam tão só timidamente...
Não têm confiança nos atos em que imitam
a alma atual, que satisfaz minhas sedes,
até que seja descartada... finalmente.
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