quinta-feira, 22 de setembro de 2011

HALIPERIDOL


                                         Desilusion – Pintura de Francisco Cáceres (Espanha)



HALIPERIDOL I       
(medicamento psicotrópico)

Tão numerosas são as opiniões
quanto as cabeças; e se contrariam,
tão facilmente qual se digladiam
os gostos no vestir e em refeições.

Cada um come do que gosta; e as ilusões,
esses sonhos que teimam e iniciam
as tristezas que incautas principiam
e permanecem na cor das emoções,

são tão estranhas quanto transitórias...
Como querer, então, que saiba alguém
o quanto seja para ti mais importante?

Que, em todas as vivências merencórias,
ninguém sabe o que possui, nem o que tem
nem o que espera no seu doravante...

HALIPERIDOL II

Só existe a certeza do trabalho,
da obra feita e da paga em seu consolo;
tudo mais é fator de desconsolo:
somos bigorna e os outros são o malho.

A vida é mesmo assim, um ato falho,
que nos leva ao amor, à fé e ao dolo;
quanto ao amor, nem sabemos aonde pô-lo:
a fé é curta e o vazio é um longo talho.

Nestes versos redigidos sem censura,
em que tanto se diz e nada fica
que tenha consistência de verdade,

a vida eu vejo turva e a alma impura
e que dizer, quando ainda se complica
pelos sussurros de toda a humanidade?

HALIPERIDOL III

Mal sei odiar: meus ódios são contidos,
como é contida a vingança e meu rancor.
Se ao invés de ódio se fingisse amor,
até os ressentimentos mais sofridos

se tornariam mais fracos, revestidos
das externalidades do favor.
Amar é demonstrar igual calor,
enquanto os ódios jazem reprimidos.

Quem ama, espera, sem querer o pago
pelo bem do objeto da esperança
e se contenta em saber quando é feliz.

Os rancores cansam mais, causam estrago
dentro de nós, no gozo da vingança,
que só deixa um vazio que não se quis.

HALIPERIDOL IV

Amor é muito mais o que se faz
que o que se diz, do que esse fantasmal
sentimento que se acolhe na irreal
esperança de um amor que a vida traz.

Portanto, muito mais nos satisfaz
o amor alheio, por mais que surreal
seja esse amor.  Ainda que virtual,
algum contentamento nos perfaz.

Há muito tempo soube ser melhor
aceitar esse amor quando nos vem,
do que o nosso esperar correspondido.

Pois é tão raro encontrar o amor maior
que os poetas descreveram e eu também,
em que se ama a quem nos tem querido.

HALIPERIDOL V

Bem sei não ser o centro de teu mundo,
embora fosses, por um longo tempo,
centro do meu e ainda, em contratempo,
me veja em orbitar, sonho profundo,

ao redor de teu sol, sem permanência:
sou mais cometa agora, não planeta,
há muito abandonei a órbita quieta,
que a cauda corta às vezes, sem frequência,

tal qual se quebrantasse o juramento,
que um dia te fiz, ainda que fosses
tu justamente quem o malbaratasse;

pois percebi de há muito que provento
não me trará, depois que revelou-se
espera inútil de que teu amor durasse...

HALIPERIDOL  VI

Assim eu vejo ser não mais que hipertensão
esperar maior valor nessa tua agenda,
pois quanto fiz e ao dar-te cada prenda
não me abriu qualquer fresta de ilusão.

Ainda sou fiel, mesmo contenda
com descaso diário e a sedução
tenha de ser repetida, em angariação
de qualquer beijo teu.  Falhou-me a lenda

de que beijar a Bela Adormecida
traria sempre a meu lado essa princesa,
desencantada do ataúde de cristal,

pois vejo até que ponto é escarnecida
minha importância na lista de sua alteza,
que até se esquece de me fazer mal.

HALIPERIDOL VII

Ao traduzir esse livro dos ateus,
fico tão espantado que essa gente,
tida por todos como inteligente
(e ainda mais pelos conceitos seus),

fique apregoando bobagens sobre Deus,
que descobriram não ser Servo Onipotente,
e lhe atribuam, em intenção frequente,
seus antropomorfismos fariseus...

Se não se prova Deus, senão por fé,
é que Ele mesmo não precisa ser provado,
pois aquilo que é provado, não se crê.

E no momento em que me provem, até
eu deixarei de crer, que evidenciado,
Deus será apenas mais um livro que se lê...

HALIPERIDOL VIII

Ouvi dizer que é às três da madrugada
que se apresentam as assombrações.
Chegou a hora, pois.  Nas solidões,
aguardo sua presença dessangrada.

Antigamente, sua hora era aprazada
mais para a meia-noite.  Os corações
batiam fortemente e as emoções
provocavam a visão da alma-penada...

"Fantasma sabe para quem aparece,"
diz o velho ditado popular,
que experiências antigas arrebanha...

Pois estou só e nem declamo prece:
por sua presença estou a suplicar,
mas nem sequer um fantasma me acompanha.

HALIPERIDOL IX

É sobre a tela que beijo meus fantasmas,
digitados em poder computador.
São meus sonhos no teclado sem amor,
são minhas luxúrias em digitais miasmas.

E se leres o que leio e assim te orgasmas,
é que guardaste um resto de calor
que te lembra a juventude, em seu vigor
e ao pensar no futuro, quase pasmas...

E eu sou assim, pois todos os terrores
já metabolizei em minhas canções,
acompanhados por alegorias...

Se a mulher pelos filhos sente dores,
são agridoces estas emoções
com que te rasgas, a cada vez que crias!

HALIPERIDOL X

Há um demônio e ele habita em ti.
Por isso, não me lês.  Bem que ele sabe
que amor igual ao meu em ti não cabe,
sem que ele tenha de sair dali!...

O meu amor, exorcismo que não li,
te encherá o coração, até que aldrabe
a porta com seu rosto e ele se babe,
só de terror pelo dom que concedi.

Trancar-te-ei então do coração a porta
e o mal não entrará.  Não há lugar,
quando a alma se transborda de vigor.

Só eu te possuirei, que não comporta
tua alma pura qualquer amor vulgar,
depois que o meu te encher com seu favor.

HALIPERIDOL XI

Passada a hora, fechada a sepultura,
os fantasmas encolhidos lá no fundo,
que apavorei com meu olhar profundo
e os recobri com tampa branca e dura,

voltei-me para mim, sem amargura,
a conviver com as larvas em que abundo,
todos os vermes que nutro de iracundo,
no negror de suas celas sem doçura.

Pois também eu sou fantasma.  Eu os domino,
mas sem dúvida, pertenço a eles também:
meus sonhos carcomidos jazem lá.

E outros fantasmas temem igual destino:
que eu os devore e integre ao vaivém
dos mil sonetos que tenho escritos já.

HALIPERIDOL XII

Mas não temo esses fantasmas das histórias,
que tanto li na infância e me assustaram.
Passei por tanta coisa!...  E se afastaram,
maugrado seu e sem quaisquer vitórias.

Meus medos mais antigos, nas inglórias
cogitações que em minha mente libertaram
e a certo ponto em cadáver me tornaram,
se reduziram a sombras merencórias.

E assim, quando se achega aparição,
vampiro ou lâmia, zumbi ou lobisomem,
quando grilhões arrastam ou quando gemem,

nem sequer os percebo.  Em solidão,
vigio o cemitério em que fui homem:
sou mais fantasma que eles... E me temem!



Nenhum comentário:

Postar um comentário