quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ESPECTROS DIGITAIS



ESPECTROS DIGITAIS I  

Agora, é fácil.  Não vêm somente à noite,
como o faziam antes.   No presente,
já se apresentam quase diariamente:
cada um tem um nicho em que se acoite...

Não me saúdam, dizendo: "Noa boite!"
como um amigo que eu tinha antigamente
e que há mais de vinte anos se acha ausente;
sobre onde está não sei, por mais me afoite...

Eles vêm à qualquer hora, noite e dia,
pelas falésias do computador,
sem anti-vírus ou Spybot que os impeça

e tomam conta de meus dedos e a via
é preenchida por suas ânsias de amor,
nessa corrente que noite e dia não cessa.

ESPECTROS DIGITAIS II

Já muita vez falei: não sou poeta,
sou apenas de minhas vozes transmissor.
Depois que me iniciei, o computador
transcende de minha aljava cheia a seta.

Cada vez se faz mais claro que um esteta
possui mil faces, não é um só autor,
porém se contradiz, em ódio e amor,
nessas mil coisas com que o papel afeta.

Antigamente, precisavam sussurrar
nos meus ouvidos, nas costas de minha mão,
movimentando a seu talante tantos dedos.

Mas agora só lhes basta controlar
o teclado, em digital dominação,
para mostrar ao mundo os seus segredos.

ESPECTROS DIGITAIS III

Porque eles vêm, é certo, não me iludo.
Essa ânsia de escrever, a catarata,
a variedade tropical da mata,
a ideologia diversa em que me escudo,

a pungência febril do verso agudo,
essa insistência que o lazer abata,
a um ponto tal que até me desacata,
só pode ser a voz de quem é mudo.

E agora até me vejo, ao escrever
correspondência simples para amigos,
a redigir em prosa essa poesia...

Cantos de amor, contos de fancaria,
nessa rede pegajosa das intrigas,
a afirmar coisas que nem sequer eu cria.

ESPECTROS DIGITAIS IV

E mesmo agora, ligado o meu pecê,
enquanto espero que o sistema aqueça,
pego um cartão e, antes que me peça
qualquer das vozes, escrevo nem-sei-quê.

Porém não rasgo.  Aquilo que se vê
se enquadra bem nas regras, sem que esqueça
essa caligem que insistir não cessa
em expulsar a luz de meu apê...

(Logo eu, que não morei em apartamento
nunca na vida!)    Apenas em hotel,
às vezes, em suites me hospedei...

Mas antes que interfiram no momento
em que a outros pensamentos dou quartel,
prefiro a rima que, sem pensar, criei!

ESPECTROS DIGITAIS V

Eu aproveito cada fragmento
que esteja a meu alcance, no momento,
sem que veja o menor impedimento
de neles inserir as minhas paixões,

no mesmo sentimento que dispões,
apenas em palavras e ilusões,
um delírio a esvoaçar no ar compões
e eu fico preso no arrebatamento.

Que seja assim, apenas um rascunho,
de cuja ideologia nem partilho:
pouco importa a sua verdade, certamente;

o que interessa é o giro de meu punho,
a dedilhar, na palidez do brilho,
este verso que escorre mansamente.

ESPECTROS DIGITAIS VI

Eles se achegam mansamente, espectros
recuperados de outras gerações,
que nem dedos mais têm, só têm paixões
e dedilham minhas costas, como plectros,

ou me beliscam, talvez, em pizzicato,
nessas surdas pancadas de emoções,
no reverbero de suas vibrações,
a perturbar o meu farol pacato...

Porque sei que os atraio para mim
e a seus anelos dou sempre acolhida,
por mais alheios até que me pareçam...

Deixo que gritem solidão, assim,
os meus fantasmas, no franjar da vida,
e que meus próprios sonhos se esvaneçam...

ESPECTROS DIGITAIS VII

Quem sabe se algum dia a sombra minha,
perdida nos espaços fantasmais,
não procure se acercar de outros fanais,
para cantar sua própria ladainha?

Pois eu temo que seria bem mesquinha
essa mensagem que os dotes naturais
permitiriam redigir jamais,
sem essa corte sutil que em mim se aninha.

Por isso, eu os acolho de bom grado,
até reunir-me ao rebanho desgarrado
que busca em vão um canto em que balir;

porque me acolherão, tenho certeza,
quando meus dedos percam a fineza
e deste plano eu tenha de partir...

ESPECTROS DIGITAIS VIII

Quem sabe, eu te verei na roda viva,
nos turbilhões perpétuos do infinito,
nos batalhões do ar, soltando o grito
que não lançaste em tua vida ativa.

Quem sabe, então, o nosso amor reviva,
dois rodamoinhos em igual agito,
embaraçados na vastidão do mito,
na escatológica perdição da outiva.

Quem sabe, entrelaçados em fumaça,
por todo o tempo em que não nos enlaçamos,
mesclemos nossa dor no mesmo vento,

nesse delírio tolo de desgraça,
na inaceitação de que sejamos
não mais que um torvelinho em fogo lento.

ESPECTROS DIGITAIS IX

Quem sabe então, de estarmos abraçados,
a nossa força comum se multiplique
e ao ingresso na rede assim se aplique,
para a dança sutil em mil teclados...

Quem sabe quantos termos digitados,
quanta mensagem diferente fique,
quem sabe romperemos esse dique
e manteremos mil cursores controlados...?

Para que as telas só mostrem o que queremos,
a imensidão dos dias que perdemos,
a vastidão de abstratos disponíveis...

Desse modo, nessa tela mais vazia,
descreveremos o amor em que se cria,
nas vagas improváveis dos possíveis...

ESPECTROS DIGITAIS X

Alguns espectros são mais eletrizantes:
tomam conta dos teclados, triunfantes
e digitam tão somente o que eles querem.

Interferem em todos os programas,
sem interesse por alheias famas
e nos impõem somente o que nos derem.

Quais guerreiros de guêimes, avatares
desafiando, em combates singulares,
todos os monstros da antiga analogia,
nesses fáceis momentos de histeria...

Que até nos podem saltar dos monitores,
das mentes a tornarem-se os senhores,
até que os mortos perdidos no jamais
possam o mundo ocupar uma vez mais. 

ESPECTROS DIGITAIS XI

E então te buscam para os interiores
desse mundo que até mesmo chamam "teia",
nesse fulgor que a mente te incendeia
e te seduzem através dos monitores...

Talvez sejam de aranhas os terrores
que te aguardam na rede que te enleia,
talvez sejam fantasmas de outra veia
os que te chamam de fendas multicores...

Talvez encontres lá as borboletas,
essas almas em casulo encapsuladas
e que da teia só tu podes libertar...

Ou, quem sabe, sejam larvas mais secretas,
essas que julgas serem presas vitimadas,
mas só te espreitam para te esmagar...

ESPECTROS DIGITAIS XII

E quem te diz que nestes dias de agora
este fato já não está acontecendo?
Que nesse brilho não estão se desprendendo
das telas os herdeiros de um outrora?

Quando na gente de hoje, nesta hora,
num cantinho do cérebro metendo,
aos olhos dos demais vão-se escondendo,
se instalam firmes e não vão embora?

Então, cuidado!  Ao te conectares,
podes abrir as portas à legião
que te invade pelos dedos e o olhar...

Ou mesmo agora, só de contemplares
estes versos de estranha redação,
já te estejas permitindo conquistar!...

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