EMBALSAMAMENTO I
Em minha pilha, os originais tem trinta e nove
centímetros de altura e inteira cresce,
semana após semana -- e não me apresse
a diminuir tal número! -- o quanto move
minha mão direita é um impulso irresistível
a cada dia que transcorre, escrevo mais;
provavelmente, não poderei jamais
passar a limpo esse jorro inexaurível;
de certo modo, existe um triste orgulho
em ver crescer a pilha de meus versos;
por outro lado, deles sinto medo,
que nessas linhas é a alma que me esbulho:
sem restaurar meus órgãos indispersos,
serão partes de mim que aos outros cedo.
EMBALSAMAMENTO II
Depois que retomei fainas poéticas,
envelheci. Eu sinto até meus ossos
lançar fora de mim. Guardo destroços,
enquanto me avassalo a prendas éticas
ou a velhos amores de outras épocas,
quando osteoporose não fosse uma ameaça,
em que minha pele não cedesse à traça,
em que não me arranhassem tanto as réplicas.
Agora, vejo que as feridas custam
muito mais a sarar, tanto as da alma,
como as agulhas que trago ao coração.
Na acupuntura, minhas mágoas me locustam,
cada folha de versos. Mas me embalma,
de certo modo, em faixas de ilusão.
EMBALSAMAMENTO III
Em sua loucura, uma mansão de ouro
(de fato, revestida), construiu
o Imperador Nero e nela viu
uma demonstração de seu tesouro,
para que os povos soubessem nascedouro,
de todos os poderes capital,
a "Roma Áurea", o centro perenal
do mundo inteiro em dom imorredouro.
Também de ouro revesti o amor,
folha após folha destes versos belos,
aurífero esplendor de sentimentos.
Muito em breve desmancharam, sem temor,
de Nero a casa de ouro e seus desvelos,
mas ainda guardo teu amor nos pensamentos.
EMBALSAMAMENTO IV
As flores brancas percorrem o seu corpo
e se derramam ao longo do vestido:
eu a contemplo, de olhar agradecido
à sua beleza, com meu olhar incorpo-,
quer ela passe por mim ou então me busque,
consigo traz a máscara da luz:
essa sua aura que meu olhar seduz,
luminescência que meu olhar ofusque.
A cada passo e a cada movimento
uma onda se espalha e me ilumina,
encapsulando no olhar a própria sina,
pois cada gesto é novo sentimento:
é toda branca essa flor que me fascina,
que pelo olhar me invade e me domina...
EMBALSAMAMENTO V
Vai ser difícil largar desta temática,
porque me vejo preso num redil:
muitas dores e amarguras o caril
com que tempero a minha carne apática.
É para isso a minha alma enfática:
será prato de honra, em senhoril
banquete, a ser fatiada com buril,
numa conversa alegre ou sorumbática.
Só imagino se, após ter sido assada,
minha alma ainda terá revelação
e saberá ao redor quanto sucede...
Pela ironia dos deuses calcinada,
se inda terá acesso à sensação,
enquanto o trinchador fatias mede...
EMBALSAMAMENTO VI
A cidade é muito mais que os inquilinos
do simples dia que se chama hoje,
não importa dos antigos se despoje,
seus corpos mais etéreos, opalinos,
ainda ajudam, quais entes pequeninos
a argamassar as paredes e beirais,
são reflexos dos mortos, que jamais
abandonam totalmente seus destinos,
mas permanecem em certa sobrevida,
mantendo erguidas igrejas e bordéis
que, sem essa presença, ruiriam.
E eu percebo que acenam, em minha lida,
esses fantasmas de bares e quartéis
e que, sem eles, meus passos falhariam.
EMBALSAMAMENTO VII
Um dos motivos porque quero ser cremado
é esta obsessão de engavetar:
os pobres corpos pôr em desmanchar,
ao paladar das baratas dedicado.
Tornar em cinzas cada corpo amortalhado
busca um final destino assegurar:
melhor se busque assim apressurar
desse processo qual seja o resultado.
E que sejam tais cinzas espalhadas
por toda parte, até num galinheiro:
não há motivo de em urna conservá-las.
Como os romanos, às ondas polvilhadas,
aos ventos soltas ou então ao aguaceiro,
que nem formigas consigam rejuntá-las!
EMBALSAMAMENTO VIII
Somos todos irmãos, na morte apenas,
se não na vida, irmãos das açucenas,
irmãos das rochas, das ondas, das falenas,
que as diferenças são menores que parecem.
Somos todos irmãos, irmãos de estrelas,
de raios e vulcões, tochas, procelas,
irmãos da areia que aos pés tu esfarelas,
todos irmãos das coisas que perecem.
Sou irmão de meus pés e de ambas mãos,
irmão de ti no instante em que me odeias,
irmão da morte, irmão de São Francisco.
E é só durante a vida, em emoções,
que me aparto da eclosão das próprias veias
e a viver sem irmãos então me arrisco.
EMBALSAMAMENTO IX
Tu me deixaste a alma em cicatrizes
que recobriram outras mais antigas:
buscava em ti compensações amigas,
que me apagassem lembranças infelizes,
envoltas no passado, mas desdizes
o quanto vi em ti; não que inimigas
sejam tuas atitudes, ou que intrigas
nos tenham separado em mil deslizes,
mas é que vejo em teus olhos diferença
da luz que neles via: são cordiais,
mas não há brilho de amor sob seus traços,
que só me fazem suspeitar da indiferença
de quem amiga é, gentil, não mais,
mas não dará de novos iguais abraços.
EMBALSAMAMENTO X
Eu louvarei aos deuses, se me derem
o que já lhes pedi, sem ambição:
coisas fáceis de ter, nem compaixão
de mim terão de ter para atenderem.
Mas não farei libações propiciatórias,
não direi preces para convencê-los:
são poucos bens que quero e ao recebê-los,
me prostrarei novamente em ofertórios.
Mas se nada ocorrer, se a vida dura
permanecer, se a mesma estrada escura
tiver de palmilhar, marchando a esmo,
não esperem de mim adoração,
pois só pedi-lhes bênçãos que hoje são
resultado de um esforço de mim mesmo.
EMBALSAMAMENTO XI
Assim, se negam, ou quem sabe, impeçam
o justo resultado desse esforço,
minhas preces ficarão tão só no escorço,
enquanto sobre mim bênçãos não desçam.
Nunca pedi demais. Tenho paciência,
como tive até hoje. E é tão tantalizante
ver o flutuar do prêmio delirante
diante dos olhos, mas sem a sua cadência
entre meus dedos calejados de esperar.
Guarde eu ao menos meu impulso antigo
de trabalhar sem descanso, até ganhar
o direito de reclamar um novo dote:
que não me falte a luz e o clima amigo
e a rota certa ao leme de meu bote...
EMBALSAMAMENTO XII
Não sinto orgulho dos versos que hoje faço,
como não posso sentir do respirar:
já respirei melhor no meu cantar,
porém não canto mais no meu espaço.
Se tanto dei de mim neste embaraço
de palavras sem fim a derramar
foi tão somente minhalma a impulsionar
que versos derramasse em teu regaço.
Mas não me gabo dessa estranha gana,
que me embalsama no sarcófago das faixas.
Se minhas canções em pó cantam as traças,
tudo faz parte da condição humana,
que se envergonha, enfim, de ter segredos,
como um fungo inserido entre meus dedos.
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