domingo, 6 de fevereiro de 2011

DESVAIRANÇA



DESVAIRANÇA I

nessa arcana atração que o corpo tem
da mulher sobre mim, eu não me iludo
com jovenzinhas belas, em que tudo
é a busca fácil de seduzir também...

são inseguras, em geral; porém,
sabem brincar com quem desejo agudo
apenas mostre, mundéu de que me escudo:
não passam de meninas, pouco veem

dos valores verdadeiros desta vida,
não são mais que bonecas de novelas;
prefiro muito mais mulher madura,

que já sofreu, que sabe como é dura
essa armadilha atrás das coisas belas:
quão curto o amor na solidão comprida.


DESVAIRANÇA II

que a górgona me inspire sem tardança!
eu vou brandir espelho de cristal
contra esse olhar que causa tanto mal
e criar esculturas de esperança.

eu vou roubar-lhe a vista, em abastança
e verei pégaso, branco como cal,
sair de seu pescoço, o inatural
cavalo alado da lenda que não cansa.

as serpentes deixarei para perseu:
só quero o olhar de pedra, que perdura
na coda de meus versos, sangue e fonte

e para o mundo inteiro tornar meu,
comporei uma elegia de cor pura,
sobre a sela que furtar a belerofonte!

DESVAIRANÇA III

não tomei qualquer vinho, mas dionyso
embriagou-me hoje e vejo o chão
espelhado e refletindo a multidão
dessas estrelas que a bel-prazer repiso

e nessa bebedeira de meu riso,
torna-se etílico somente o coração,
não que se faça dupla minha visão:
apenas troço de todo o humano siso.

meu sorriso é apenas incisivo:
meus caninos já perderam o seu gume,
meus molares desgastados pela idade.

mas nesse esgar incerto ainda revivo
o quanto existe de doce no azedume
e o quanto é verdadeira a falsidade!


DESVAIRANÇA IV

colinas mornas dos lençóis na alvura,
amarfanhadas pelo amor recente,
marcadas as colinas: ruga quente
nas dobras de lençóis contra a brancura

e o matagal, coloração escura,
que recobre-me o pescoço, em reverente
proteção contra beijos, insistente
o companheiro dessa mata pura

e o riacho que desliza, lentamente,
por sobre essa planície cor de leite,
até perder-se entre as duas colinas,

e o suor aperolado e alvinitente
escorre para o leito, meigo aceite,
perfume dessa união de nossas sinas.


DESVAIRANÇA V

até o ponto que o devaneio alcance
eu serei teu e ainda serás minha:
teu corpo diariamente se avizinha,
para que a angústia, a pouco e pouco, amanse.

e que essa nova atração jamais se canse!
que não haja afecção, não haja tinha
que nos afaste da emaranhada linha
desse abraço em que um corpo  no outro dance!

e que tua pele se abra para mim
e me revista, inteiramente teu:
serei teu filho, como sou amante.

e que minha carne igual se abra assim
e que teu corpo se aconchegue ao meu,
carne com carne, em ritmo incessante.


DESVAIRANÇA VI

sempre que tive uma mulher nos braços,
para sempre guardei um pouco dela:
em cada escuridão, luziu-me a vela
dessa tênue maravilha dos abraços...

se bem nas trevas não recorde os traços
eu a revejo, no espelho da aquarela,
no fundo de meus olhos vejo a estrela,
que me acolheu um dia em seus regaços. 

que nenhuma esqueci; as dadivosas,
tampouco as que não deram nenhum bem:
em minhas narinas conservo seu perfume

e gostaria que de mim fossem saudosas:
lá no fundo de seus olhos eu também,
nessa doçura cingida de azedume.


DESVAIRANÇA VII

quando a Lua se reflete sobre a fonte,
amor desperta, muito facilmente,
de fato, um sentimento independente
de quanto ao coração se nos desponte.

amor não tem alcance que se conte,
nem dimensão, nem força equipolente:
brinca conosco, alegre, tão somente,
sem que as batidas do coração reponte.

a luz da Lua nos entra pelo olhar,
sobre as pupilas se instala firmemente
nos grava um rosto como ferro em brasa.

acha essa imagem permanente lar,
por mais que seja apenas transparente
reflexo vazio em poça rasa...


DESVAIRANÇA VIII

pelo canto dos olhos, um jardim
ou as ruínas de castelo antigo,
talvez a lousa a recobrir jazigo,
quiçá suspeita olorosa de jasmim,

não mais que uma ilusão, que cria assim
um ambiente propício a sonho amigo:
no devaneio, à luz da flor, bendigo
e a cor do vento me percorre, enfim.

talvez até não passe de fantasma
essa mulher que minha mão segura,
uma esperança gravada em água-forte.

mas, para mim, o delírio me entusiasma:
mais que qualquer, essa mulher é pura,
no ocaso breve que me trouxe a sorte.


DESVAIRANÇA IX

talvez, ao proferir o juramento,
o amor repercutisse sem tardança:
tambor a caluniar falsa esperança,
sombra de lua no vazio do firmamento.

depois do sonho, em seu falecimento,
a remanchar somente a desvairança,
o remorso mesclado de esquivança,
a mágoa parda do quebrantamento.

mas a recordo ainda, essa macia
sombra em minhas mãos, toque bem leve,
gravado a sangue no meu coração

e sei que ainda me lembra, em nostalgia
por tudo o que se foi e que foi breve,
concreto apenas na recordação.



DESVAIRANÇA X

um meteoro me rasgou tranquilidade,
um tsunami a recobrir as praias,
um terremoto zurzindo como vaias,
uma avalanche de irrestibilidade.

tal é o amor, instante de vaidade,
em que vaidade esconde as verdes raias,
em que rancores descansam em suas baias
e em que o próprio ciúme é opacidade.

mas depois, eles vêm, quando a torrente
se transformou em fino riachinho
e se tranquilizou o coração.

porque é na calma que borbulha a mente,
efervescente à luz do burburinho,
que emudece a voz meiga da canção.



DESVAIRANÇA XI

porém dizer que amor seja infinito,
perene a luz de sua perseverança,
é uma tolice que a alma nos alcança,
apenas eco do lastimável grito

da criança no berço, o som aflito
de quem procura na mãe a segurança,
pois quem adulto for, sem mais tardança
reconhece que por mais seja bonito

esse ardor que o corpo inteiro invade,
não pode conservar sua persistência,
de forma inteiramente perdurável,

porque qualquer que ao tempo sobrenade,
saberá, consultando sua consciência,
que por um só momento é interminável.



DESVAIRANÇA XII

pois sempre existe um fim para a canção
e nem por isso se torna menos bela.
o crepúsculo não some se a janela
foi fechada por tédio ou por paixão.

assim o amor, em sua exaltação,
no desvario pleno, é caravela
que enfrenta as ondas em qualquer procela
e encontra no naufrágio sua razão.

que seja amor assim a desvairança,
a corrida veloz para a miragem,
a busca inútil pela eternidade...

ainda o buscarei, onde se alcança,
na primavera pressuposta da paisagem,
a cada ano que o inverno nos invade.

2 comentários:

  1. Meu caro Lago,
    Tomei conhecimento de seus belos sonetos através do e-mail que você enviou ao Valter Dias.
    Meu nome é Fernando Gimeno, mas escrevo sob o pseudônimo Fergi Cavalca e acabo de editar um livro. Sou também editor de um boletim místico e mantenho os blogs www.arcanosdaeternidade.blogspot.com e www.ainsophboletim.blogspot.com.br

    Gostaria da sua autorização para publicar alguns sonetos de sua autoria no boletim Ain Soph, que é distribuido pela mídia eletrônica gratuitamente, sem fins lucrativos e sem qualquer cunho religioso ou político.

    Meu endereço é gimeno1947@gmail.com
    estou aguardando resposta.

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  2. Olá, William! Ainda não deu tempo de ler tudo, mas vi seu perfil, e é maravilhoso! Realmente, competência é apelido... volto depois para ler mais, ou o farei no Recanto das Letras! Um abraço.

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