quarta-feira, 18 de maio de 2011

ESCULTURAS



ESCULTURAS I -- GOIVAS

Ela me busca agora.  E até gentil
se mostra quase sempre. E se reclamo
ou me recuso a lhe dizer que a amo,
se comporta de maneira mais sutil

do que quando a perseguia, em pueril
afirmação constante, até em afano
de dizer-lhe que a amava. Sem engano,
parece até querer-me em tal viril,

rabugento protestar de suas maneiras,
em demonstrar até menos paciência.
Quiçá o tempo revirasse essa ampulheta

e a areia que ora escorre pelas beiras
me recompensa por tanta continência
e na balança o equilíbrio se completa.

ESCULTURAS II -- CINZEIS

Ela me quis assim, igual que sou,
em meus torvos trabalhos de paciência,
horas a fio ao teclado.  A indolência
por entre os dedos se dissipa e estou

disposto a desgastar o que ficou,
letra por letra, em lauda sem clemência,
sem lhe dar atenção.  A diligência
percebe bem que já a recompensou.

Assim eu fico. Os dois na mesma casa,
ela assistindo a seu televisor,
eu contemplando a tela sem imagem,

em que as letras se sucedem, vasa a vasa,
e é trabalhando que demonstro amor,
que estes meus versos são tão só miragem.

ESCULTURAS III -- BURIS

Muitos sonetos já fiz no meu passado,
melancólicos uns, outros eróticos,
versos candentes de amor apaixonado,
outros austeros de pendor, despóticos

em seus conselhos, muitos estrambóticos,
outros sinceros ao ponto que esgarçado
me têm o coração...  Fragor alado,
em desafio aos deuses semióticos...

E agora, nestes meus períodos vagos,
de espera inútil, antes que me cheguem
os alunos, versos de amor queria

escrever para ti, falar de afagos,
de abraços e de beijos que me reguem,
mas só consigo esta emoção vazia...

ESCULTURAS IV -- ESCOPROS

Na verdade, o ambiente não é propício
para empreender de poemas a escultura:
passos contínuos... Vozes sem ternura
me assaltam os ouvidos feito um vício.

E fico a me assombrar, neste bulício,
buscando transportar esta tortura
a versos tristes de palor e agrura,
alegres versos de um amor resquício...

E os versos vêm, cá estão, mas certamente
não são os versos que escrever quisera
para expressar ferozes sentimentos...

Não são versos de amor, infelizmente:
são os termos somente da quimera
que se rebolca nos meus pensamentos.

ESCULTURAS V -- RASPADEIRAS

Eu me revolto nesta angústia mansa:
podia estar em casa e trabalhar
em coisas bem mais úteis que esperar
para dar uma aula que me cansa,

que não me dá prazer, nem esperança,
nem me permite sequer amealhar
alguns bens para o futuro... Vou gastar
em condução metade da pitança

que a universidade paga.  Faço versos
para matar o tempo e sem vontade:
se fosse embora, ganhava muito mais.

E nem sei que indolência nos diversos
prédios do campus me conserva, quais
os meus motivos em tanta saciedade...

ESCULTURAS VI -- CERA PERDIDA

Eu acredito que hoje foi tomada
minha decisão -- pois não aceitarei
ser paraninfo.   Que razão terei
para a perda de tempo demasiada

que me desgastará, a hora cansada
dessas repetições evitarei,
meu tempo bem melhor empregarei
em outra tradução desmesurada,

pois devoram minha vida, diariamente,
essas aulas inúteis, nostalgia
perene de minha casa e meu trabalho,

que sinto na cabeça como um malho,
que me dilui o cérebro e que a mente
desfaz perante audiência indiferente.

ESCULTURAS VII -- FENDILHA

Minha vida foi estátua cinzelada
em maleável teor, pedra-sabão,
disposta, no ardor da aceitação,
a cumprir a tarefa indesejada.

E como trabalhei!  Ganhando nada,
a troco desse esforço e sangração,
ano após ano e sempre abrindo mão
de meu próprio interesse descuidado.

Mas agora, existe cerne de granito,
por trás da ganga aos poucos martelada:
chegou o tempo de meu próprio bem

buscar, que não tenho o infinito
mais em minha fronte já entrecortada
pelos amores que perdi também.

ESCULTURAS VIII -- CALIÇA

Uma estrela me olhou, vaidosa e grácil...
Bordada na amplidão, entre centenas,
refulgia de leve, pois, apenas
durante a noite tinha brilho fácil.

Pois quando o sol brilhava, estrela velha
se demonstrava, inda que jovem fosse...
Tremeluzia o brilho em que se esboce
toda a energia que uma estrela espelha.

Mas amei essa estrela, tão antiga,
porque era frágil, em sua antiguidade
e não por ser eterna para mim.

Amei a estrela, pensei fosse minha amiga,
até identificar-lhe a falsidade:
foi para outro que brilhava assim!...

ESCULTURAS IX -- ESTILO

Vamos supor que desta vida os dotes
fossem tirados de um só reservatório,
cuja capacidade, qual no empório,
fosse delimitada.   Assim, os motes

de um poeta não lhe pertenceriam,
mas seriam de todos, com certeza;
e quanto mais criasse de beleza,
tanto menos os outros ganhariam.

Vejo a que ponto a responsabilidade
cabe a mim: ser poeta é um caro dom,
se tantos dotes provêm do mesmo fundo.

E quanto a mim, toda a versatilidade
só assina de outro empréstimo o cupom,
cujos juros pagarei a todo o mundo.

ESCULTURAS X -- TROLHAS

Percebo assim qual o juro desse empréstimo,
como interesse composto, que acumula
o peso dessa dívida, estranha gula,
que para versos somente teve préstimo.

Mas não é meu o talento que se anula,
e durará enquanto eu for capaz
de honrar tal subvenção... Desde rapaz
aceitei o tratamento, sem ler bula.

Agora o peso desses versos chega a tal
ponto que esse fardo mal carrego:
é muito mais tarefa que prazer...

Já anteriormente a carga desigual
pensei ter descartado, sem saber,
que era invisível e somente estava cego!

ESCULTURAS XI -- JATOS DE AREIA

Por algum tempo, os outros pretendi
esculpir, por vaidade ou por tolice;
nada adiantou, foi a maior sandice,
pois cada um deve cuidar de si.

E o tempo que com os outros eu perdi
melhor tivera empregado em meu favor,
esculpindo a mim mesmo com ardor,
pois não teria sofrido o que sofri.

Mas deixei me esculpissem nesse enquanto
esculpir aos demais eu intentava,
pois cada cinzelada me feria,

tal como se tentasse, no meu pranto,
esculpir com o cabo e segurasse
a lâmina na mão que se esculpia...

ESCULTURAS XII -- TAPAPÓS

E permaneço até hoje recolhido
neste bloco de pedra que me envolve.
Meu esforço, duramente, é que revolve
pouco a pouco essa ganga, sem ruído.

A mim mesmo esculpi, corpo ferido
pelos meus próprios golpes, em estilhas,
cada retalho verdadeiras ilhas,
que deixei afundar-se, sem gemido,

as lascas que tirei, de em torno.  Assim,
levaram muito sangue e substância,
mas não me fazem falta e revelaram

a minha própria estátua e relevância:
fui eu que martelei e fiz em mim
o que os demais esconder em mim buscaram.



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