quinta-feira, 24 de julho de 2014







ENXURRADA & MAIS
William Lagos

ENXURRADA I – 14 JUL 14

Chove-me a chuva ao longo da sarjeta,
a carregar cem barquinhos de papel
que ninguém fez – guardanapos são de fel,
restos de lábios que na rua se dejeta;

marca vermelha ou amarela, agora preta,
esta mancha, da refeição laurel,
rasgos talvez de um prometer fiel
ou de traições que cometer já se projeta...

Barco de plástico, visível navegante,
que já conteve um pouco de cerveja
ou de cachaça ou, quiçá, refrigerante,

meio dedo de bebida o tripulante,
algum resto de batom que ainda seja
bandeira hasteada ante a torrente triunfante.

ENXURRADA II

Talvez corra por ali qualquer caixinha
que chocolate abrigou ou talvez leite
ou um balão rompido no deleite:
esse condão que hoje chamam camisinha

com alguns dos soldados que continha,
abandonados sem qualquer aceite;
quiçá um plástico que casual se deite,
após comer o sanduíche que retinha.

São tão variados tais barquinhos de papel,
nessa flotilha que bordeja minha calçada!
Até chapéus já vi flutuando na enxurrada

e mesmo restos de guarda-chuva mais rebel,
que contra o vento não protegeu alguém
e agora desce a se perder também!...

ENXURRADA III

Não é que seja íngreme a ladeira,
só mais acima há descidas mais ingentes
e das travessas recebe os afluentes:
enquanto chove, desce bem ligeira!...

Para cruzar a rua nessa esteira
os meus tênis se revelam impotentes,
molham-me as meias que antes eram quentes
e para as poças a esquina é hospitaleira!

Saltos não dou, porque não sou atleta
e certa vez até torci meu tornozelo;
piso na água, meus dentes apertando,

parto o caudal, divide-se qual seta,
como uma ilha bordejando no seu zelo,
de nosso próximo rio se ir mesclando...

ENXURRADA IV

Cedo ou tarde, vai descer ao Uruguai
toda a água que não for evaporada
que pela terra não chegar a ser tragada,
mas a flotilha do país não sai...

Em qualquer bueiro encharcado logo vai
em triste monte navegar a armada,
de mistura com capim ou concentrada
com sola e terra que na sarjeta cai.

Eventualmente, raminhos há de flores,
emurchecidas já em seus buquês;
jornais e cartas, até participações

de nascimento, de óbito ou de amores,
um casamento anunciado por sua vez:
cristalizados restos de emoções...

ENXURRADA V

Algumas vezes, a água traz de volta
almas penadas para o cemitério;
três quadras mais abaixo o eremitério
de ossos reunidos em multidão revolta.

À meia-noite, dizem, saem à solta
tais infelizes, sem tomar a sério
a sua condição e em despautério
voltam às casas, sua vacuidade envolta

nos fantasmas de roupas desgastadas,
já que pararam de empregar mortalhas;
mas quando chega a chuva, rodopiam;

e ali enxergo as pobres almas despencadas,
os caules rotos que na vida as conduziam
a balançar como outras tantas folhas...

ENXURRADA VI

Porém com mais frequência, corações
vejo descer, ainda palpitando,
o ódio e a inveja ainda os conservando:
são pertinazes esses emoções...

Nos corações partidos, porém, as rotações
a pouco e pouco os vão fragmentando,
sem outro amor que os fosse rejuntando,
embora, às vezes, navegando entre pulmões...

E ali passam essas paixões de ontem.
descartadas em grande quantidade,
que não as querem nem sequer os mais constantes.

Suplico então aos redemoinhos que me contem
qualquer história de maior felicidade!...
Mas nada dizem, somente giram, delirantes...

METROS GREGOS II --
ESPONDEU ESPONTÂNEO I – 18/7/06

Eu me sinto como quem não tem Mais Rei,
Tal quem perdeu a alma, Porém Fé
Conserva sempre; e à musa Fiel É.
Mantendo o juramento que Fez Lei.

Porém as emoções em mim Tão Nuas,
Sem cobertura, frágeis, não Têm Véu;
Meus velhos sentimentos vão Ao Léu
De tantas sensações que, enfim, São Tuas.

Amor se pede assim a quem Não Tem
Amor por dar e até mesmo Faz Crer
Que a ânsia desse amor nem Sequer Via.

E amor se perde fácil e Até Sem
Motivos dar; é amor de quem Quer Ser
Aquele que te beija ao Meio-Dia!...

ESPONDEU ESPONTÂNEO II – 15 JUL 14

Pedir amor, porém, a quem nada nos Quer Dar
É tão somente fantasia e não Traz Fé,
Como cruzar um rio que não Dá Pé
Ou iniciar qualquer dança sem Ter Par.

Um coração solitário não Faz Lar,
Como uma fé sem crentes não Tem Sé
Ou tribunal vazio não Possui Ré;
Nada se pesca ao encontrar Vazio Mar.

Quando pedi amor, nem Sequer Cria
O amor pedido de algum modo Poder Ter
E se o pedi foi porque queria Tão Só

Aquela formosura que Assim Via,
Mesmo sabendo que não Podia Ser,
Ao ver quão frouxo estava ainda Meu Nó.

ESPONDEU ESPONTÂNEO III

Mas como cada tema Esgotar Sei,
Insisto neste verso que Até Vem
Como surpresa alegre que Alguém Tem
Ao descobrir que uma brecha Contém Lei.

Não foi pesquisa fácil, Porém Dei
Um jeito de um poema Escrever Sem
Real inspiração para Meu Bem,
Sem a santo prometer ou lamentar Ao Rei.

Só sei que o sonho nos traz Artificial Fé
E pouco alívio no real Nos Traz,
A própria alma a Suspirar Até

Por tal amor tornado Emoção Nua,
Que nestes tolos versos Cantar Faz
A minha saudade pela ânsia que Foi Tua.

O verso espondeu deve terminar por duas sílabas longas, isto é, digamos, tônicas.  Como palavras com tônica e subtônica finais em português são raras, a solução é apelar para dois monossílabos ou para uma oxítona seguida de um monossílabo tônico,  onde se prova que o espondeu não é lá muito espontâneo em nossa língua...  

CIRCO DE JACARÉS I – 16 JUL 14

Enquanto o corpo pelo corpo escorre
na espeleologia divinal do amor,
no sacramento arqueológico da flor,
na geologia em que a estética não morre;

enquanto a alma pela alma corre,
em amor paleontológico e indolor,
agronomia de sementes de outro ardor
ou em camada sinclinal que o solo forre,

o sêmen novo em novo instante flui
da ovulação a despertar sonho secreto
e um cone de atração envolve o filho,

que nova vida nesse momento imbui,
na escolha indefinível do dileto
ser distrópico a sugar do Sol o brilho.

CIRCO DE JACARÉS II

Tem o seu próprio corpo a humanidade,
na dupla hélice de seu Deeneá,
essa espiral fabulosa, em que haverá
lembrança plena de nossa antiguidade;

turbilhão ou torvelinho, na verdade,
que o amor real dos avós denunciará;
matronas dignas tais quais hoje não há,
tão conscientes de sua própria dignidade,

condenando das jovens as ações,
porque não podem mais as praticar,
embora a prole sussurre os seus segredos,

seus traços proclamando confissões,
sem permitir ao esperma ressecar,
que o óvulo aceitou permeio a medos...

CIRCO DE JACARÉS III

Reside em nós o ovo reptiliano,
de cada ser marinho as suas escamas,
dos mamíferos os pelos em proclamas,
mesmo sem asas, qualquer toque aviano;

sabe-se lá se o escravo de um romano
não fecundou suas prestimosas amas
ou se a semente patrícia nas mucamas
guarda de César o orgulho soberano.

Pois na verdade, se não fossem as heranças,
com ambição por tantos defendidas,
tantos desvios se encarariam com leniência,

enquanto tece o destino longas tranças
dos protoplasmas alheios difundidas
que algum ventre recebeu com impaciência.

CIRCO DE JACARÉS IV

Provavelmente, é mais o fado que o desejo
que nos envolve em tais disseminações;
quantos milhares conubiais de relações
são descartados sem prenhez nem pejo?

E então o destino apresenta seu gracejo,
mostrando os dentes em suas manifestações;
fecha as mandíbulas sobre as emoções,
criando um jacaré do impuro beijo...

Outros de ursos, de lobos, de elefantes,
breve ascendendo aos postos soberanos
nos cataventos da agitação interna...

Quantos de nós somos monstros ambulantes,
tão orgulhosos da condição de humanos,
mas descendentes de crocodiliano esperma!

GLOBE-TROTTERS I – 17 JUL 14

Por mais que se percorra nosso mundo
a paisagem de dentro permanece;
cada cenário perante os olhos desce
e nos inspira algo de tétrico ou jocundo;

quer se marche em praia bela ou em imundo
pantanal em que a morte ao sol se aquece,
com seu olhar faminto em verde prece,
não chega ao coração no mais profundo;

é o mundo interior que se conserva,
modificado apenas no consciente,
que o inconsciente não se torna transmutado;

raízes fundas possui mesmo esguia erva,
que se arranca inteiramente no presente,
mas que amanhã já rebrota a nosso lado!...

GLOBE-TROTTERS II

Esse mundo interior é como espelho
que o exterior para o exterior reflete;
por mais forte a impressão que nos inflete,
já não se insere no imo peito velho;

apenas flui no sangue mais vermelho,
mas no cérebro, tão logo se introjete,
essa paisagem escorre, sem que afete
mais o inconsciente de íntimo conselho;

até se aceita e se ama uma paisagem
e se a armazena no país do sonho,
mas por trás dela existe uma muralha

que dali barra a recordação dessa viagem,
só percebida em seu aspecto bisonho,
que é queimado entre as pestanas como palha.

GLOBE-TROTTERS III

Na adolescência é que se faz viagem
pelo país dos livros ou de amores;
ambos nos dotam com diversos esplendores,
em marcas fundas, bem mais que uma miragem;

ou trazem esporte e luta outra visagem,
marcada ainda por desgostos ou por dores,
que permanecem quais fiéis torturadores,
voltando à tona por mais que, com coragem,

os enterremos ou cubramos com capim;
vem estas marcas desde os dias da infância
e se alicerçam no interno panorama,

pouco importando o que se veja assim
da vida adulta, em qualquer instância,
quando esse mundo interior a mente inflama.

GLOBE-TROTTERS IV

Porém aquele que viajou pela poesia
ou nos meandros da literatura,
para si construiu paisagem pura
e elaborou sua interior filosofia,

que ao encontrar nos livros em que lia
os pensamentos afins à sua textura,
tramou-os em sua própria tessitura,
numa firme e permanente arqueologia;

na adolescência evoluem os amores
mais permanentes por ramos da ciência,
astronomia de singular potência,

do mesmo modo que os impulsos criadores,
que alguns conduzem ao mister de harpistas,
nesse arpejar com que executam suas conquistas.

GLOBE-TROTTERS V

Mais se viaja por uma biblioteca,
por estéticas que sejam as paisagens,
que durante excursões ou por viagens
e mais ainda por uma discoteca;

vale mais grande leitura do que beca,
mais a música escutar do que miragens,
bem mais que da Internet as navegagens,
mais do que Arábia com sua ardente Meca.

O problema das viagens é mais o tempo
perdido à toa, em suas comutações;
no meu tugúrio também ocorrem acidentes:

caí da escada, em um certo contratempo,
mas não sofri fratura ou luxações,
nem naufrágios ou quedas inclementes...

GLOBE-TROTTERS VI

E quando penso nessa pobre gente
que hoje sobre a Ucrânia pereceu,
meu sentimento igual se confrangeu,
sem poder fazer nada, realmente...

Que desperdício de deeneá inteligente!
nenhum aeroplano com militares se abateu;
qual a razão por que a Norna resolveu
a todos destruir, tão de repente...?

Não que existam razões, na realidade;
faz o destino uma escolha aleatória;
mas quem viaja expõe-se a algum perigo;

pôde exercer o livre-arbítrio, na verdade
quem embarcou em tal escolha inglória,
mas lamentar tal desperdício eu só consigo!

VALFADA I – 18 JUL 14

SOMOS TODOS PARASITAS DESSE ASTRO
TÃO PRÓDIGO DE LUZ E DE ENERGIA;
A CHUVA INFRAVERMELHA A VIDA CRIA;
ULTRAVIOLETA É O QUEIMAR DESSE PADRASTO;
CORREM DEDOS DE CHUVA DESSE MASTRO
E A BANDEIRA DOURADA SE ESFOLIA
NO RIGOR DA ATMOSFERA, DIA A DIA;
NA DIACRONIA, A CLOROFILA É O LASTRO.

AS CIANOFÍCIAS SE ESPALHAM PELO OCEANO
E A RELVA COBRE A TERRA COMO UM MAR;
NELE INCONSCIENTES E SEM PENSAR, NADAMOS,
MAS TODA A CARNE É BORDADA NESSE PANO;
O BASTIDOR É VERDE E GLAUCO O LAR
QUANDO AS FOLHAS DO SOL NÓS DEVORAMOS.

VALFADA II

DE AVENDAGO OUÇO O GRITO DERRADEIRO;
EM MEUS ZIGOTES CONSERVANDO O MAGO
QUE ME TRANSMITE INJÚRIAS COMO AFAGO,
PARA GERAR EM MIM VERSO CERTEIRO;
TAMBÉM DO SOL BROTOU ELE PRIMEIRO;
VIVE NA GRAMA, NO TRONCO, EM CADA LAGO
ESSE TEMÍVEL SOPRO DE AVENDAGO,
QUE EM TUDO VEJO COMO SILVO COSTUMEIRO.

E DO ESTRIDOR DO SOL TROUXE VALFADA,
COMO CONSORTE DE SEU DESENGANO
E A CARNE ENTREGA PARA QUE ELA TEÇA,
NOS CURTOS DIAS DA VIDA MALFADADA,
NO RITMO CIRCANUAL DE CADA ANO,
PARA CORTÁ-LA, ENFIM, SEM GRANDE PRESSA.

VALFADA Iii

AVENDAGO E VALFADA NOS DESCERAM
PARA COBRAR DA VIDA AS ENERGIAS,
PARA AO SOL DEVOLVER AS SINCRONIAS;
VIDA GRATUITA NUNCA PROMETERAM;
MEDIDO O FIO, QUE OS ANOS DECORRERAM,
DEVOLVEM PARA A LUZ DESARMONIAS,
NUMA ESPÁTULA DE GENTIS POLICROMIAS,
NESSE DESCARTE DAQUELES QUE MORRERAM.

E NOS DESFAZEM, ENTÃO, EM MINERAIS,
QUE AS PLANTAS RECOLHEM EM CIPÓS,
NA ESPERANÇA DE UM DIA RECICLAREM,
DEVORADAS, PORÉM, POR ANIMAIS,
FILTRANDO ASSIM A CARNE DOS AVÓS
DE CADA VEZ QUE NOSSOS FOGOS FUNCIONAREM!

SOL E SOMBRA I – 19 JUL 14

Segundo dizem, para todos nasce o Sol,
Mas não a sombra para todos, certamente;
Alguns marcham sob o sol mais inclemente.
Sem ter de sombra sequer um parassol.

Essa ânsia, afinal, por tal farol
Surge da angústia da sombra permanente,
Vem dos temores trazidos do inconsciente,
A luz da vida brotando do arrebol.

Mas quando o cetro do rei se faz mais quente
E na canícula faz o peito derreter,
É mais a sombra que se anseia em obter,

Na qual a luz corta mais difusamente,
Mas surge a aurora, que navalha nos recorda
Para outro dia com que o calor concorda.

SOL E SOMBRA II

Cada raio da aurora anzóis recorda
A atrair para nós nosso destino;
Abre-se um túnel para o dia pequenino
E arrastar-se por ele se concorda.

A noite é ponte com vinte fios de corda;
Nela pisamos como sobre talho fino,
Cada sonho um desejo peregrino
Ou um pesadelo que nos espanque e morda.

Não são as pontes de corda permanente;
Quando se acorda, rompe-se a do sono,
No momento em que a do dia se constrói,

Ficando o ontem para trás, eternamente,
Nesse interlúdio de que o antanho é dono
E a cada noite tranquilamente rói.

SOL E SOMBRA III

A gente rouba desse fluir do Sol
Toda a energia e calor e nem pressente
Que se não trata de ação inconsequente,
Mas que também nos queima esse arrebol.

Atrás de nós não mais canta o rouxinol
Que presidira ao sonho mais potente;
Só essa luz nos escraviza, impertinente:
Irmãos nós somos de todo o girassol...

Não se retém o sonho e nem o ontem;
Resta apenas do amanhã a nova ponte,
Que nos parece sólida e segura,

Mas a cada momento que nos contem,
Apagam-se degraus já no horizonte:
Só do porvir é a corda branca e pura.

SOL E SOMBRA IV

E como a noite, aos poucos, se congela,
Enovelada sobre a nossa alfombra,
Escondida totalmente em véu de sombra,
A nova ponte nos parece bela...

Como se fosse a dedicada estrela
Que nossa vida preside ou então assombra;
Mas essa corda de prata nos ensombra,
Queimando a luz da estrela na janela.

Quando surgir a força dessa aurora
Que à nova ponte secreta nos destina,
É só por ela que podemos velejar.

Em vão se busca a ponte para o outrora,
Porque o presente nos delimita a sina
E só podemos para a frente continuar...

MÁSCARAS DE COURO I – 20 jul 14

FORAM AS MÁSCARAS MOLDADAS
NESSES ROSTOS ESQUECIDOS
DAS VELHAS FOTOGRAFIAS
ESCULPIDAS NO SILÊNCIO
GENTES BEM APESSOADAS
FIRMES CENHOS CONTRAÍDOS
PARA MOSTRAR SERIEDADE
EM SUAS ROUPAS DOMINGUEIRAS
EM ARCANAS HARMONIAS
QUE NESTE INSTANTE SÓ MENCIO-
NO, AUSENTE DA SOCIEDADE
DAQUELAS TARDES FAGUEIRAS

MÁSCARAS DE COURO II

HÁ MUITAS FOTOGRAFIAS
QUE JÁ NÃO RECORDAM NADA
SÃO CEM ROSTOS ESQUECIDOS
DESSES VELHOS ESQUELETOS
E A EXPRESSÃO PERCEBIAS
EM CADA FACE VELADA
IMÓVEIS VÁRIOS MINUTOS
POSANDO COM SOBRIEDADE
PARA TAIS DAGUERREOTIPOS
SEUS PRÓPRIOS SERES SECRETOS
TODA AMBIÇÃO APAGADA
SEM MOSTRAR DESEJOS BRUTOS

MÁSCARAS DE COURO III

QUANTOS DORMEM EM GAVETAS
DE VELHAS SOBREVIVENTES
QUE OS CONHECERAM NA INFÂNCIA
MAS SEUS ROSTOS JÁ NÃO LEMBRAM
SOMENTE AS FACES DILETAS
NAS CARTOLINAS JACENTES
QUE AINDA GUARDAM SENTIDO
OU NOMES TRAZEM ESCRITOS
PARA MOSTRAR A CONSTÂNCIA
ÀQUELES QUE SE DESMEMBRAM
NUM ENVELOPE QUERIDO
NOS SEUS ANOS MAIS AFLITOS

MÁSCARAS DE COURO IV

MAS PASSAM AS GERAÇÕES
MORREM AS SOBREVIVENTES
VEM REMEXER NAS GAVETAS
DA VELHA CASA OS HERDEIROS
SEM GRANDES CONVICÇÕES
POR FOTOS REMANESCENTES
COM OBLONGAS UMIDADES
NO VAMPIRISMO DO SOL
JÁ DESCARTANDO COMPLETAS
AS FACES DE FORASTEIROS
PARA O FOGO EM SOCIEDADES
NUM DERRADEIRO FAROL

MÁSCARAS DE COURO V

ALGUNS LEMBRAM NA VERDADE
ENVIAR PARA OS MUSEUS
ILUSTRES ANTEPASSADOS
NESSES TRAÇOS ANORMAIS
QUE NUNCA NA REALIDADE
OSTENTARAM COMO SEUS
E ENCONTRAM NOVAS GAVETAS
PARA AVALIAÇÃO FUTURA
TOTALMENTE DESCUIDADOS
ESQUECIDAS NO JAMAIS
AS FOTOS QUE FORAM FEITAS
EM QUE O AMARELO PERDURA

MÁSCARAS DE COURO VI

MUITA GENTE ACREDITOU
ROUBASSE A FOTOGRAFIA
DE UMA FACE O SEU TESOURO
POBRE ALMA EMPOBRECIDA
EM CINZAS QUE SE GUARDOU
DE QUEM SÃO JÁ NEM SE VIA
A NÃO SER QUANDO ANOTARAM
NESSAS TINTAS DESBOTADAS
AS EPIDERMES DE COURO
DE CADA URNA ESQUECIDA
QUE NUM CANTO CONFINARAM
POR NOVA MORTE HOSPEDADAS

calçada da fama I – 21 JUL 14

mil vezes imaginei
de quem sejam tais passadas
no cimento conservadas
das calçadas que cruzei.

à imaginação asas dei
que as solas ali gravadas
fossem marcas apressadas
de alguém que vi e que amei.

é claro que me enganei,
as pessoas que conheço,
em geral, são cuidadosas

e aquelas que desejei,
mulheres de meu apreço,
só deixam marcas de rosas...

calçada da fama II

parece até tradição,
quando mudam o cimento,
mesmo com impedimento,
sempre alguém deixa borrão!

decerto não põem a mão,
são solas sem seguimento,
para o pedreiro o tormento
de fazer renovação.

na califórnia é costume,
em uma certa calçada,
os pés e mãos das estrelas

conservar sem azedume:
fica a marca impregnada
e resistente a procelas.

calçada da fama III

mas aqui é outra história,
dos cachorros ficam patas,
se o cimento só compactas
de uma forma perfunctória.

não se pensa em fama ou glória,
mas vez que outra retratas
da instalação as suas datas,
outras marcas pura escória.

talvez falta de capricho
de um pedreiro preguiçoso,
sem que o trabalho refaça

e transporte para o lixo,
com seu passo vagaroso,
a caliça que desfaça...

calçada da fama IV

e há marcas de pneumáticos
de algum chofer descuidado
que de carro mais pesado
deixou os traços enfáticos.

e há pezinhos mais simpáticos
de menininho apressado,
seu sapatinho lavado
por parentes antipáticos,

que lhe fazem repreensão,
sem pensar em consertar
essas marcas na calçada,

que a fama conservarão,
para quem quiser lembrar,
da criancinha levada!...

ARCO SEM ÍRIS I – 22 JUL 14

Existem cores onde não existe luz
ou cinza e negro são o estado natural
só disfarçado pela prata sideral
que cada estrela cósmica produz?

A própria Lua só à prata nos conduz,
que é mais um preto esbranquiçado artificial;
não é o arco-íris só o legítimo fanal
do astro-rei que à vida nos conduz?

Será o mundo negro em gradação,
sem uma réstia de cor favorecido,
enquanto as sombras ali se acotovelam?

E mesmo o arco-íris de cada coração
por emoção mais negra produzido
pelas Três Nornas que o destino nos revelam?

ARCO SEM ÍRIS II

Se nosso astro tivesse outro diapasão
seria o som da escala diferente,
em septimal melodia subjacente,
mas bem diversa para tua audição?

A luz do fogo do Sol é a criação:
aprisionada na madeira ardente
a luz de outros verões, constantemente,
é libertada em cada combustão.

E a energia da eletricidade
também surge do negro do carvão
ou do óleo ou de outro combustível,

com exceção da hidroeletricidade,
mas que somente foi posta em produção
pelas turbinas em que o Sol ainda é visível...

ARCO SEM ÍRIS III

Mas se outro fosse o espectro solar;
se fosse branco, ao invés de ser dourado;
ou azul fora, talvez, ou encarnado,
quais as cores que poderias enxergar?

Seria o mundo de um marrom acinzentado
e nem um tom sequer seria cunhado
para o verde, o violeta, o alaranjado,
imperceptíveis para o nosso olhar?

Existiria outra cor junto a vulcões,
em seus momentos de terrível erupção
ou nos raios, de permeio a tempestades?

Talvez de cores só houvesse sensações
em cavernas de profunda escavação,
luminescência que transpõe idades...?

ARCO SEM ÍRIS IV

Seria estranho ver a gradação
em escala cinza de um novel arco-íris
que sob as nuvens, em calmos assistires,
talvez trouxesse paz ao coração...

Ou do ultravioleta, em profusão,
os nossos olhos adaptados aos sentires,
do infravermelho opostos os luzires
de nosso astro em tão alheia projeção...

As sete cores, sete notas, de onde vêm?
Será que estão tão só em nossa mente
ou realmente vêm do anel do Criador,

nessa promessa a que Noé se atém
de jamais repetir-se esse inclemente
dilúvio cinza sem seu manto protetor...

ARCO SEM ÍRIS V

E nesse mundo antediluviano,
qual referiam então nossos avós,
quais cores luziriam para nós,
caso lá fôssemos mediante meio arcano?

Será que o céu nos mostraria um pano
purpurino ou acarminado nos seus nós
ou cores verdes a cintilar, empós
de um outro sol, em seu brilhar profano?

Que cores teriam visto os Neandertais
ou os hominídeos de existir remoto
ou será que realmente cores viam?

Ou como tantos mamíferos e marsupiais
só contemplavam a panóplia do ignoto
cujas mil cores imaginar sequer podiam?

ARCO SEM ÍRIS VI

Talvez as vissem esses Heidelbergenses,
que nossas lendas de fadas originaram,
enquanto os Neandertais nos devoravam,
os pais dos ogros e monstros em que penses.

Em suas tocas habitando ou cavernenses,
que ao redor de fogueiras acocoravam.
roendo os ossos daqueles que matavam
de Cro-Magnons ou talvez Altamirenses...

Vermelho o sangue de nossos antepassados
ou lhes surgindo como branco ou como azul,
verde leitoso ou, quem sabe, cinza prata?

São de Homo sapiens os painéis policromados
dessas cavernas distribuídas pelo sul,
só eles cores a imitar que o céu refrata...

JARDIM DO ESPANTO II – O ESTROFANTO I – 18/7/06

Não sei se muitos conhecem o estrofanto,
Embora tenha suas flores singulares,
De que pendem longas tiras, similares
A lágrimas congeladas de teu pranto.

São belas essas flores que hoje canto,
Porém o fruto, se nele reparares,
Tem cheiro fétido e, caso o tragares,
Sabor amargo como o teu espanto!

Mas não é venenoso, em absoluto:
Era muito empregado em medicina,
Sem que tivesse contraindicações.

A estrofantina muita vez evitou luto,
Pois aumenta a diurese e o sangue afina
E ainda controla as excessivas pulsações...

O ESTROFANTO II – 23 JUL 14

Também a sístole cardíaca favorece
E diminui dos afetados a dispneia,
Dos sofredores de angina a epopeia,
De quem a falta de ar nos pulmões cresce.

Controlando essa doença, nos aquece,
Sem o veneno da digoxina; mas é feia
Sua redolência; e muita gente assim receia
Mais o seu cheiro que o mal de que padece.

Mesmo assim, em frascos de tintura
Se encontrava a amargosa estrofantina,
Além de pílulas, extratos e infusões;

Ou mesmo em pó, adquirindo assim doçura
Quando servido com mel, mistura fina
Que no passado curou muitos corações.

O ESTROFANTO III

Houve tempo em que os cabelos escorriam
Ao redor de minha cabeça como as flores
Castanho-amareladas, porém sem odores
Iguais àqueles que nos frutos percebiam...

Chegaram anos e os cabelos se perdiam
E aos poucos, fui encurtando seus pendores,
Especialmente nos tempos de calores,
Chegam no inverno ao pescoço os que me fiam.

Mas sempre tive minhas próprias opiniões
E tal como ao estrofanto, me ignoram,
Quando comigo não desejam concordar.

E até meus versos perturbam corações,
Cheirando mal para aqueles que me agouram,
Até querendo de estrofanto me chamar... 

O ESTROFANTO IV 

Não é que eu cheire mal, porém exalo
Uma aura de vigor dessazonado
Que sei despertar medo; e difamado
Sou mais ainda, mesmo quando calo.

Quem sabe se é por ser vegetariano
Em terra de carnívoros... mais salgado
Seja o cheiro dos outros, conformado
Ao que esperam as narinas, sem reclamo.

Mas é que esparzo tantas coisas mais:
Tenho cheiro de livros, de jornais,
Não cheiro a carro e menos a cavalo.

E, desse modo, eu causo um certo abalo
E quando me farejam, veem meu pranto
Cheirando mal, qual malcheira um estrofanto...



Nenhum comentário:

Postar um comentário