quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

EXPRESSO DO ORIENTE & O CHIFRE DOURADO




EXPRESSO DO ORIENTE I (26 out 11)

Houve um dia em que, tomadas de cansaço,
preferiram ficar as duas no hotel,
esposa e filha; e foi na noite, justamente,
que nos levaram a jantar nessa estação
ferroviária a guardar o antigo traço
do Expresso do Oriente, exatamente
na parada que encerrava essa excursão.

Mantinha ainda a decoração antiga
o velho restaurante em que Poirot
foi colocado por Agatha Christie
e refilmado a cor e em branco e preto.
(Ninguém assassinou qualquer amiga;
de certo modo até me senti triste,
pela ausência de um enigma secreto...)

É claro que eu poderia ser suspeito
e as prisões turcas têm má reputação...
Mas limitei-me a assassinar minha sopa.
Também meu peixe triste me fitava,
porém não vi no seu sabor defeito,
nem no raki servido na minha copa,
enquanto a companhia reclamava...


EXPRESSO DO ORIENTE II

Os pratos nos chegavam em carrinho,
locomotiva em seu formato saudosista,
com chaminé para o vapor e até farol,
porém a única fumaça que subia
era a da sopa trazida com carinho,
ainda quente, qual raio de sol,
tanto quanto aquele clima permitia...

Havia uma fonte, bem elaborada,
construída com pedras, qual presépio,
reproduzindo uma cena do passado...
Mas, na verdade, apenas disfarçava
a descida até a cozinha, pela escada 
e o acesso do banheiro, mais ao lado...
Será que aqui o Rei Guilherme se aliviava?

Bem certamente existem marcas nos esgotos
de Agatha Christie e de Pierre Loti,
que antes de criar a ambientação
de "Aziyadê", veio a estudar também.
Pelas paredes as mais variadas fotos,
embora algumas tão só reprodução
desses atores que a memória ainda contém...

EXPRESSO DO ORIENTE III

Foi nessa noite que adquiri passagens
no carro-leito para Sófia, na Bulgária.
Para meu desaponto, só noturna
era a viagem para tal país!...
Mas comprei mesmo assim, porque bagagens
já me causavam impressão soturna
e enfrentar outro aeroporto já não quis...

Há uma longa extensão na plataforma,
que avança talvez meio quilômetro.
Fontes de pedra para bebedouro,
os prédios todos fechados nessa hora.
Marchei até o final, na noite morna,
para ao menos conhecer o logradouro.
Rodeei o último poste e vim-me embora...

E novamente procurei fantasmas...
Não os achei ao ar livre ou na balbúrdia
do restaurante, com tantos comensais.
A fachada do prédio ainda em reforma,
os aerossóis expulsaram os miasmas,
comprei alguns folhetos comerciais
e logo a van para os hotéis retorna...

EXPRESSO DO ORIENTE IV

Vi alguns trens chegando à plataforma,
iguais a quaisquer outros europeus;
são trens elétricos de umbilicados fios.
Nada restava do aroma do carvão,
o conjunto da engrenagem já não torna,
tudo coberto por esses painéis frios
de corrugado alumínio sem paixão...

Busquei em vão as lanternas mais antigas,
não encontrei relógios ou semáforos.
O guichê mantinha horários digitais...
E sabendo ser meu turco insuficiente,
pedi ao guia de maneiras tão amigas
que presidisse às démarches naturais,
na aquisição do ingresso pertinente...

A outro século queria ter voltado,
que mais não fosse durante a meia-noite...
Mas ai de mim! Saí de lá cedo demais...
Não me perdi nos salões em Art-Nouveau
e assim confesso que fiquei desapontado,
pois queria era embarcar-me no jamais
e o trem do antanho nem ao menos apitou!...

O CHIFRE DOURADO
O CHIFRE DOURADO I  (27 out 11)

De Bizâncio certamente não há ruínas,
foi totalmente demolida sob as sinas
        das ordens imperiais.
Essas que existem são de Constantinopla,
e tudo quanto é descrito nesta copla
        não lhe pertence mais.

Existem de Teodósio ainda as muralhas,
de Constantino as palaciais mortalhas
        e igrejas mortas.
Mas do porto de mar de antigamente,
resta talvez um alicerce indiferente,
        de pedras tortas.


Quiçá se encontrem no mar os velhos ossos
dos pescadores ou, no fundo de alguns fossos,
        carcaças de navios.
Restos de mastros, talvez, antigas bilhas,
enterradas no lodo, já em estilhas,
        passados desafios.

Quiçá fantasmas, lá no Chifre Dourado
ainda espiem, com seu olhar gazeado,
        à luz do pôr-do-sol.
Metáfora de um corno, totalmente,
ondas brilhando sob a luz do Oriente,
        em crepúsculo e arrebol.

Fantasmas de fantasmas, nada mais,
reflexos perdidos no jamais
        do antigo paganismo.
Seu Posêidon já de há muito abandonaram,
Nereu e suas Nereidas se afastaram,
        perante o Cristianismo.   


O CHIFRE DOURADO II

Ainda existem as cisternas desse antanho,
algumas permanecem no tamanho
        dos velhos memoriais.
E guardam água nos seus velhos dutos,
suplementando o fluir dos aquedutos,
        de ruínas triunfais.

Ainda se vêem os velhos calabouços,
mas de Blaquernas só restam os esboços,
        já bem dilapidados.
E das casas que os antigos habitavam,
sem a glória dos palácios que miravam,
        só há traços isolados.

Tudo que existe é constantinopolitano,
aquilo que deixou o gênio romano,
        tingido em bizantino.
Ao redor desses vestígios há escadas,
podem galgar as pessoas mais airadas,
        em desafio ao destino.

Eu escutei a voz da companheira
e não galguei à Anemas altaneira,
        talvez por covardia.
Ou por prudência, quem sabe por cansaço.
Só foi minha filha a receber o abraço
        do vento que zunia.

Mas eu não fui e estranha nostalgia
a minha alma recobre, na ironia
        de não ser imprudente.
Os meus fantasmas talvez soprasse o vento
e uivassem cantochão no ouvido atento,
        nas ameias do Poente.

O CHIFRE DOURADO III

Ainda ali está o Patriarcado,
Ortodoxo, sem ter sido condenado
        por ordem do Sultão.
Embora seja a maioria muçulmana,
a própria shariya não chega a ser tirana
        da antiga comunhão.

Ali se encontra a Igreja da Panágia,
contém ainda a Fonte de Hagiasma,
        sua água benta.
Ainda existe ali o Hágion Lousma,
aberto às vezes ao banho de uma chusma,
        que com ele se contenta.

São Salvador de Chora hoje é museu
igual que a Hágia Sófia, e ali morreu
        o antigo monastério.
Famoso pela vasta biblioteca,
pelos afrescos de sua pinacoteca
        e seu Eremitério.

Pantocrátor é um conjunto de mosteiros.
"Tudo Governa o Senhor", desde estrangeiros
        a ortodoxos fiéis.
Zeyrek o chamam turcos; há um hospital,
um asilo, uma capela funeral
        e túmulos de reis.

Pammacaristos de Santa Maria,
Zoodocos Pege e os peixes d'ouro que trazia
        de seu milagre antigo.
E São Sérgio e São Baco, amostra pura
da mais legítima bizantina arquitetura,
        dos mosaicos o abrigo.

O CHIFRE DOURADO IV

Diante do Bósforo, a fortaleza de Rumeli
não se abre ao público, mesmo que se apele
        para ver o interior.
A Igreja de Metal se ergue em Balat,
de Santo Estêvão o Búlgaro, do combate
        celebra ainda o valor.

Não me agradou o Bazar de Especiarias,
na confusão de aromas, fugidias
        suas contas vivas.
E só acompanhei, sem entusiasmo,
essa excursão pelo oriental marasmo,
        cores esquivas.   

Dele não trago sequer recordações,
só o vento junto à porta e as sensações
        leves que foram.
Mil vezes preferi o arsenal de prata
e a elevação da Torre de Galata,
        que os djinns douram.

Na verdade, será justo confessar
que foi a Apolo que tive de apelar
        a orientação.
Pois certamente ele foi canonizado
e como novo santo entronizado,
        com devoção.

Mas outros versos sei de mim esperam...
São Baco e Dionyso não quiseram
        soprar nenhum...
E desses deuses antigos destronados
ouvi apenas ressonares compassados,
        sem canto algum.


Nenhum comentário:

Postar um comentário