domingo, 8 de janeiro de 2012

ABISMO INVERSO & HIPÓDROMO

                                      Imagem:laperiodicarevisiondominical.files.wordpress.com


ABISMO INVERSO

ABISMO INVERSO I  (25 OUT 11) 
Neste recinto à sabedoria votado,
mas totalmente secularizado,
não há sinais de religiosidade.
Gira apenas uma turba de turistas,
ovelhas a seguir as bandeirinhas,
que por entre as cabeças ainda avistas,
se delas, empurrando, te avizinhas...

Não sobra espaço para ver mosaicos,
nem esses santos de rostos arcaicos,
por entre a massa de tantos transeuntes.
Seu altar-mor não se consegue perceber
e muito menos rezar nesse recinto,
embora os cantos a fizessem estremecer,
na velha imagem que na mente eu pinto.

Está a cúpula ainda no lugar,
nenhum assalto a pôde derribar,
nem sequer algum raio ou terremoto.
E se dobro meu pescoço para cima,
o firmamento para mim se inclina
e na vertigem a mente mal atina,
faz-se invertida e quase se reclina.

ABISMO INVERSO II

É como se este chão sob meus pés,
com seus desenhos intrincados nos sopés,
se invertesse e se tornasse o teto.
A cúpula me suga em sua voragem
e o Pantocrátor lá de cima espia,
a comparar minhalma a essa imagem
da perfeição que nunca se cumpria.

Eu quero então subir, cortar os ares
que me separam dos celestes mares,
das mil estrelas da sideral abóbada.
E, por instantes, até penso que consigo,
mas a balbúrdia a meu redor me chama
e permaneço em pé no meu jazigo,
sem ascender à glória que conclama.

Mas se estivesse só, o que haveria?
Veria os popes em longa cantoria,
a celebrar a eucaristia grega?
E a multidão dos velhos bizantinos,
que nunca foram constantinopolitanos,
arrebatados pelo tanger dos sinos,
para esses páramos quase sobre-humanos?

ABISMO INVERSO III

É isso que eu queria, realmente,
retornar ao passado intermitente,
ser mais um nessa fervente multidão.
Quem a cúpula atraiu, ano após ano,
quem ascendeu aos céus através dela,
nesse santuário quase hierosomilitano,
em que a respiração se torna estela.

Também queria os tempos de mesquita,
ver essa nova multidão bendita,
por um monoteísmo irremediável.
Considerando blasfema uma trindade,
que tem vértices no céu e sobre a terra,
que é semi-humana, em sua divindade,
à qual o Islã declara a Santa Guerra...

Lá das arcadas contemplam as mulheres
tantos homens dedicados aos misteres,
nos exercícios de sua meditação...
A que não as admitem, de inferiores...
Somente os homens encostam as cabeças
nesses pisos de ladrilhos de mil cores,
os pés lavados das culpas mais espessas...


ABISMO INVERSO IV

Porém não vejo esses sonhos do passado
nesses broquéis recurvos, de esverdeado
louvor sincero ao poderoso Alá!...
Já não passa esse santuário de museu,
pisam-no incréus, vindos da Terra inteira,
sacralidade que de estéril já morreu,
peregrinação ateia e interesseira...

Que nem sequer aprecia a arquitetura,
nem velhos ícones de beleza pura;
de fato, retiraram a iconostase
e a maioria dos símbolos sagrados;
caíram lances de tésseras na umidade;
ficaram espaços em branco, dessangrados
pelo carbônico vapor da humanidade...

Santa Sofia, que nunca foi mulher,
sem popes ortodoxos sequer,
tem minaretes, porém sem muezins...
O que fizeram de ti, caranguejeira,
que lá de fora pareces dar um bote,
para teu ventre encher por vez primeira,
vazio assim do sagrado convescote...?

ABISMO INVERSO V

Naturalmente, há áreas proibidas
a estas vastas maltas comprimidas
por entre os flashes das fotografias...
Todo o sagrado vai sendo captado,
todo o passado vai sendo consumido,
cada fantasma já foi desespelhado,
cada segredo há muito perquirido...

Só imagino o trabalho desses anjos,
tangendo bandolins, tocando banjos,
para afastar dali a poluição!...
Querem pecados e não indiferença,
que todos mudariam, com sua graça
e acenderiam, pela força de sua crença,
em penitências de incenso e de fumaça...

Mas o que observam é essa gente alheia,
cuja fé nem por instante se incendeia,
só estão ali para fotografar!...
Para dizer depois aos conhecidos,
aos parentes, até mesmo aos inimigos:
"Estive aqui!  E aqui somos contidos
no abraço digital destes abrigos!..."

ABISMO INVERSO VI

Pois lá não foram a arte contemplar
e nem sequer para a fotografar,
são ovelhas arredias em rebanho...
E assim ondulam, girando num browniano
movimento, sem sentido ou direção,
cuidando mais fixar seu rosto humano
que esses símbolos da antiga religião!

Levada a sério ela foi por bizantinos,
de roupas pobres ou de trajos finos,
congregavam-se aqui em irmandade.
Com suas questiúnculas e perfídias,
amando mais a retórica que a ideia,
mas conciliando, na rede das insídias,
uma fé verdadeira de epopéia!...

Quem saberia dizer o que as paredes
firmes, silentes, que hoje ainda vedes,
serão capazes agora de guardar...?
Talvez se ergam tão só na fé antiga,
talvez sejam tão somente pedra fria,
talvez esperem por seu divino auriga
e só despenquem no derradeiro dia!...

HIPÓDROMO
HIPÓDROMO I  (26 OUT 11)

Do Hipódromo pouco ou nada sobrevive.
O interesse dos turcos pelas bigas,
ainda menor do que pelas quadrigas,
nunca de fato se desenvolveu...
Não existiam mais carros de guerra,
seus cavaleiros dominavam toda a Terra,
logo surgiu a força dos canhões,
de um só golpe destroçando multidões...

Assim, em breve entrou em decadência,
pedras usadas em novas construções,
as estátuas demolidas nas paixões
despertadas pelo ensino do Alcorão
nesses recém-conversos muçulmanos,
esfaceladas nove estátuas dos romanos,
desse Porfírio, um hábil condutor,
em consequência inútil do rancor...

Depois, acabou todo soterrado
e por séculos já nem sequer lembravam
dessas corridas que ali se realizavam,
tão apreciadas por seus antepassados...
Até que Rüsten Duyuran, sábio arqueólogo
ao passado convertido, antes geólogo,
obteve do governo a permissão
e realizou uma vasta escavação.

HIPÓDROMO II

Hoje é a Praça do Sultão Ahmet.
Ali bem perto está a Mesquita Azul,
do mesmo nome, no centro de Istambul,
e eis logo a Fonte do Kaiser Wilhelm,
construída em 1900 em louvor
de uma visita desse Imperador,
toda em estilo neo-bizantino,
seu arquiteto foi o velho Constantino...

Porém do antigo hipódromo romano
somente restam os seus três obeliscos,
desenterrados de seus velhos apriscos,
os séculos de entulho em que dormiram!
Um deles é a Trípode de Plateia,
que de Delphos foi trazida, pela ideia
de Constantino, com suas ordens tersas:
comemorava a vitória contra os persas...

É chamado de Obelisco das Serpentes;
a taça de ouro por que era coroada
foi-lhe na Quarta Cruzada arrebatada,
só ficaram as três cabeças serpentinas...
Eram mostradas nas velhas miniaturas,
representadas em suas minúcias puras,
mas no século dezoito, ainda arrancaram
as pobres cobras, que a seguir esfacelaram.


HIPÓDROMO III

O segundo é realmente um obelisco,
Teodósio o Grande é que o roubou do Egito.
Fê-lo serrar em três partes, com o fito
de transportá-lo pelo Mediterrâneo.
Por um motivo ou outro, só montaram
a parte superior e a conservaram,
até hoje, bem no centro dessa praça,
fonte de orgulho a egípcia desgraça...

Foi o Obelisco de Tutmés Terceiro,
erguido em homenagem a vitórias,
comemorando já esquecidas glórias,
aqui instalado em Trezentos e Noventa,
após manter-se dois mil anos em Karnak,
erigido ao som da flauta e do atabaque
e ainda se encontra perfeitamente conservado,
bem protegido e melhor mumificado...

O clima é totalmente favorável
e ainda se ergue, em plena majestade,
sobrevivendo a tanta humanidade,
mesmo que esteja a um terço reduzido.
Talvez recorde com saudade o som
dos velhos hinos cantados para Amon...
Porém o Egito também é islamita:
não mais adora o Sol que ainda o fita!


HIPÓDROMO IV

E finalmente chegamos ao terceiro,
esse que chamam pelo nome Constantino,
que não refere o mais famoso bizantino,
mas Constantino Porfirogeneta.
O sétimo do nome, que escreveu
sobre os Petchenegues, que muito combateu,
que após mandar tal obelisco construir,
de placas de bronze fê-lo revestir...

Mas o bronze tinha sido revestido
de esmalte de ouro e foi assim roubado,
na Idade Média, pelo Exército Cruzado,
que achou longe demais Jerusalém...
Mas era forte sua estrutura interna,
feita de pedra, certamente não eterna,
mas que até hoje permanece erguida,
mesmo após toda a depredação sofrida.

O que no Hipódromo mais chama a atenção
é, contudo, a multidão dos vendilhões,
avidamente a espoliar as multidões
desses turistas que vêm de todo o mundo.
Mal dão espaço para ver os monumentos,
moscas humanas, em todos os momentos,
sendo por isso esse obelisco bem cercado,
antes de cada pedacinho ser roubado!...

Veja também minha "escrivaninha" em Recanto das Letras > Autores > W > Williamlagos e o site Brasilemversos > Brasilemversos-rs, em que coloco poemas meus e de muitos outros autores.
Edição e postagem: Andréia Macedo

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