sexta-feira, 1 de agosto de 2014






SOMBRAS VAPOROSAS
William Lagos – 9 jun 2010


SOMBRAS VAPOROSAS I

Saciado apenas o natural desejo,
envolto numa auréola deslumbrante,
o corpo cheio de energia estuante,
pela força milagrosa de teu beijo,

minha vaidade e egoísmo assim aleijo,
somente em ti ao nutrir essa gigante
sensação de triunfo delirante,
que não descubro em mais qualquer ensejo

e, se me afasto de ti, sem nos meus braços
te prender dadivosa outros momentos,
é que meu coração se encheu de aurora,

meu rosto qual espelho de teus traços,
liberado para ir empós intentos
a que somente o teu amor me espora.


SOMBRAS VAPOROSAS II

E assim eu fico, em plenilúnio de veludo,
os impossíveis filhos no teu seio,
enquanto o teu abraço encontra meio
de fecundar a mim e não me iludo,

pois são teus beijos a inspirar o mudo
córrego seco para o antigo veio;
se tenho inspiração, é que incendeio
nesse perfume de ti, que é meu escudo.

Pois nada sou, sem sentir o refrigério
que ainda mais me anseia por tua falta;
estás presente na sombra que sentia,

no vácuo cristalino, canto etéreo,
que de meus dedos diariamente assalta
em tantas sílabas tolas de poesia.

SOMBRAS VAPOROSAS III

Em canto inútil esfarinho o sonho
em almofariz, com o cabo do pilão,
réstias de cérebro desfeitas em ilusão,
santas quimeras em esvair tristonho;

nesse monjolo de prata a vida ponho
e a martelo lentamente, sem paixão;
a alma dói bem mais que dói a mão,
tiras de lágrimas em esvair bisonho,

desmanchando o próprio rosto no moer
dessas palavras que, sem prazer, te entrego,
que fazer versos é mais que desatino,

tornou-se para mim triste dever
no revelar de quanto já fui cego
em esperar se demudasse meu destino.

SOMBRAS VAPOROSAS IV

As sombras passam em puro desvario,
gotas de chá feitas cristais de gelo,
vapores de café em aroma belo,
sonho castrado de animal no cio;

as sombras nos envolvem no seu rio,
tem vestes permanentes este zelo,
no disfarce amanteigado de seu selo,
sombras ocultas no fragor do brio,

porque as sombras, sonhos de vapor,
envolvem todos nós em permanente
miragem zombeteira do que somos;

e quando a alguém cedemos nosso amor,
vogar amamos de tal sombra envolvente,
com todo o ardor das sombras que já fomos.


SOMBRAS VAPOROSAS V

Mas algures se condensa a solidez
dessas sombras de purpurino nada,
quando a alma internamente é iluminada
por esse espelho de pura embriaguez;

não é amor aquilo que se fez,
só uma sombra à sombra de outrem abraçada,
mil vapores deslizantes na calçada,
aos quais pisamos na maior desfaçatez,

porque a carne se acha dentro desse espelho,
só nossa pele é que reflete a luz,
sejam fantasmas de tristeza ou rosas...

E quando surgem rasgões no rosto velho,
nesse reflexo a que a prata nos conduz,
nada mais somos que sombras luminosas...


SOMBRAS VAPOROSAS VI (14/2/12)

Toda nossa indumentária é sombra mansa,
caleidoscópio de antigos dominós;
estamos juntos e continuamos sós,
por todo instante a que a memória alcança,

porque vestirmos sombras é uma herança
legada desde o antanho a todos nós,
tapeçaria tricotada em dós,
nesses mil passos de tão antiga dança;

na fantasia, mostramos almas de brilho,
mas é somente o Sol, em tais cristais,
que nós roubamos, em disfarce pegureiro

e então largamos atrás de nosso trilho
os mil vazios de perfurados sais,
no vapor ácido de um disfarce derradeiro.


SOMBRAS VAPOROSAS VII

Houve dias em que amei, bem ternamente,
até a sombra da esperança morna,
essa sombra de vapor que me retorna
sempre que os olhos fecho diariamente;

mas o tempo transcorreu, indiferente,
e todo o caldo da esperança ora se entorna,
foge a lua entre meus dedos e não torna;
quanto passou se faz sombra no presente.

De fato, a sombra alimentou o que eu senti
e o amor de ontem se esvaiu da fama,
isso que sinto hoje é menos belo

que todo o amor sentido então por ti,
de que só resta uma pequena chama,
quase coberta por cem cubos de gelo...

SOMBRAS VAPOROSAS VIII

A cada dia que passa sem tua sombra
enroscar-se na minha sobre o chão,
forma-se gelo no meu coração:
vai deslustrando o quanto em mim ressumbra;

o fogo puro bravamente assombra
e bruxuleia na frieza da ilusão,
mas enlanguesce em sua percepção:
toda coberta de poeira a antiga alfombra;

e a cada vez que essa esperança vaga
e é filtrada pelos ventos do destino,
uma pequena labareda apaga

e então se esvai a esperança, pois se alaga
nesses cristais de gelo peregrino,
igual cortada pelo gume dessa adaga.

SOMBRAS VAPOROSAS IX

Sombra de sombra em meu computador
esses cantos que sombra descreveram
e em cristais digitais se desfizeram,
sombra de tela em líquido esplendor;

a sombra impura desse escorredor
somente leds e bytes compuseram
e em transitórios pixels revelaram
a sombra vaga de seu digitador...

Sombra da sombra corre pelas redes
e se espalha por meandros e escaninhos:
pele abstrata que meu destino encerra,

sombra da sombra das antigas sedes,
como linfa espalhada em descaminhos,
porém visível ao redor de toda a Terra...

SOMBRAS VAPOROSAS X

Nem toda sombra à luz está sujeita;
não depende tão só da projeção;
há sombras luminosas, que assim são
restos de alma em esplendor desfeita;

são a sombra de uma mente contrafeita,
a se espalhar sem maior retratação:
mais ilumina que a plena insolação,
porque nela a própria vida ainda espreita.

É a sombra dessa mente cristalina
que sofreu pelo mundo rachaduras;
sangra de luz e às sombras mais escuras

transmite esse fulgor da cor divina,
e cada fenda e greta das agruras
se faz lição que somente a sombra ensina.


SOMBRAS VAPOROSAS XI

Estas sombras de luz que se projetam
são finas veias da circulação
com que cada ser humano toma a mão
daqueles tantos que sua vida afetam;

milhões de artérias que a todos intersectam
e nelas flui a varredura da emoção,
desde o altruísmo à mais feia ambição;
capilares e arteríolas se interceptam,

algumas luzes tão só sombras escuras,
mais ainda do que as sombras de verdade,
apenas baças, porém sem difusão;

enquanto outras só derramam gotas puras,
buscando apenas, com sinceridade,
tanger cativo o Lá do diapasão...

SOMBRAS VAPOROSAS XII

Já eu transmito a sombra do desejo,
que não pretendo, afinal, ser altruísta;
somente escorro ao entardecer trocista,
quando em sombra desvaneço em tal ensejo,

tal qual se essa emoção trançada a pejo
se escondesse no pó da própria pista,
negaceando qualquer sonho de conquista
nessa mortalha negra em que me vejo;

que o sonho afarinhado em polvorinho
é apenas sombra de uma sombra antiga,
sombra sem paz, perdido o ideal de amor,

que apenas vaga, em trescalar de vinho
e chega às tuas narinas, sombra amiga,
que igual à minha, não passas de vapor...


Nenhum comentário:

Postar um comentário