terça-feira, 19 de agosto de 2014





BORRASCA – WILLIAM LAGOS

BORRASCA I – 2009

Pode até ser que queira retornar
à musa de meus sonhos... Seminua,
ela me acena do pátio, sob a lua.
            sem se importar
            ou lastimar
pelo frio desse inverno antecipado,
neste estio que somente está calado,
            pois não me inspira
            o que sentira,
o que escrevera nas laudas do passado,
quando subia e chegava do meu lado,
            e até cruzava,
            se dissipava
pelas grades da janela imaterial,
cortava as venezianas, irreal,
            a minha quimera,
            amor e fera,
que exigia lealdade assim total,
em troca de mil versos, à porfia,
ah, musa antiga, de geada e nostalgia!...

BORRASCA II

Reis me pediram escrevesse sobre o sul:
quem sabe sobre as lendas de minha terra
ou sobre os ossos que o cemitério encerra
            ou a catedral,
            Páscoa e Natal,
de tantos mortos sarabando em procissão,
cantando loas, uma vela em cada mão,
            Aves-marias,
            das romarias;
ou quem sabe sobre o vento é que desejam,
soprando uivos, em que lanceiros vejam
            ou a prece das ovelhas,
            pelas charqueadas velhas,
degoladas em qualquer revolução,
muito mais do que proclama a tradição,
            pelas mateadas,
            ou emboscadas,
que tenham sido mortos os guerreiros,
que então passaram mais em cavalgadas
do que espetados na ponta das espadas...

BORRASCA III

O vento ruge e cintila no silêncio
e, nos galpões, no meio dos pelegos,
os peões se distraem, em seus sossegos...
            mais inventando
            do que contando
as peripécias rubras das coxilhas
com o sangue respingando pelas trilhas,
            sobre os lanceiros
            e seus banderilheiros,
os lenços rubros ao minuano sacudidos,
na chuva e no relento perseguidos
            por saraivadas,
            por chicotadas,
mais do pampeano que das balas do inimigo,
segundo dizem, desse inverno antigo,
            que era outrora,
            bem mais que agora,
rigoroso de rachar as corunilhas,
morrendo não de lutas, mas de agruras,
esses lanceiros que nos veem das sepulturas.

BORRASCA IV – 23 JAN 2010

Mas quando o sol cintila em atropelos
que somente alivia a chuva escassa
e quando a brisa leve que perpassa
é mais buscada
do que esperada
no galope do crioulo se faz vento,
as crinas são um leque em rebeldia,
mas com o suor do animal nas coxas crias
um empapamento
meio nojento
que lembra sonhos pouco confessados
com as coxas da china misturados
mesmo que ausente
ou indiferente,
encharcada a bombacha desse sangue,
que escorre puro, sem deixar exangue
pelos lombos e flancos
na poeira e nos trancos
enquanto as pernas se refrescam nesse luxo
pela água morna que recobre o bucho,
na dupla sina
que me aproxima
dessa montada mansa e mal domada,
enquanto vento criamos pela estrada,
impelindo o rebanho ao matadouro...

BORRASCA V

O sol brilha amarelo no horizonte,
porém as nuvens sobre minha cabeça
são chumbo e açúcar, enquanto o céu não cessa
de altaneirar
fofos castelos,
nesse preteor que nem parece triste,
mas antes protetor que nos assiste
na tarde lenta
que desalenta;
há retalhos de laranja sobre o negro,
sobre a tapera algum azul eu regro
e vêm os raios,
cavalos baios,
conjuminando do oeste até o leste,
o pasto iluminando como veste,
até que estoura,
no corpo a fora
uma trovoada de acordar defunto!
O pingo empina e corre até um capão,
enquanto a chuva me derrete a escuridão...

BORRASCA VI

A chuva de verão, na sesmaria
cai como sangue quente de punhais,
são mil adagas que me furam mais
a cada instante
mas sigo avante
dessa enxurrada que devora o prado,
que me desbota a lenço do encarnado
que herdei de meus avós, os maragatos;
não é o mesmo,
mas geme igual,
nessa delícia da herança natural,
tal como lhes abrisse as sepulturas;
junto às caveiras,
os lenços brilham,
restos escuros de mais antigo sangue,
marchetados da farinha de seus ossos;
olhos abertos,
acusatórios,
pelo abandono do sonhar federalista,
pela traição do ideal parlamentarista.
Rio Grande só,
do meu avô,
que me contempla sorridente pelos dentes,
por mais que na cidade a vida esteia,
sem matar os pica-paus numa peleia!... (*)
(*) Os soldados ou os partidários do governo central.

BORRASCA VII

Mas afinal, por que esse passado
que nunca foi o meu me deveria
inspirar no sonhar da fantasia
de outros portos,
de tantos mortos,
já de há muito sepultados na campina
ou em túmulos quebrados que calcina
o mesmo sol que os viu correr um dia?
Que fancaria
nem me iludia
fingir ideal de que não compartilhei,
só por seguir a velha senda que trilhei,
ainda escorrendo dolente pela estrada!
Na poeira torta
lembrança morta
disso que para mim foi só visão,
nessa lindeza da antiga tradição,
com todos os seus lustros e favores...
Não canto eu mesmo
trovas a esmo,
mas me limito a escutar no lar
alguns registros do velho cantar,
manipulados por novéis artistas
suas vozes pasmas
fantasmas de fantasmas,
almas penadas das vozes que já foram,
assombrações dos vivos que percorrem
as mesmas velhas estradas vicinais;
há muitos ossos
nos matadouros
que nunca foram mortos nas peleias,
apenas descarnados de suas veias
para os fogos de verão dos farroupilhas.

BORRASCA VIII

No fim das contas, na prosa, prosa vem:
são esses ossos que sofrem mais também
do pobre gado sempre assassinado,
sempre abatido,
sempre ferido,
durante o tempo das revoluções,
durante a atual pasmaceira sem paixões,
na paz e guerra as mortes derradeiras
que nunca falham
e sempre os talham;
abatem rezes para um casamento.
degolam gado após um passamento,
sempre é preciso obsequiar os convidados:
cruzam pastagens
para homenagens;
matam-se ovelhas em todas as carreiras,
fazem churrascos durante aniversários,
nos saraus farroupilhas perdulários,
porque é preciso
que haja sangue:
comer os mortos dos índios tradição;
carne de ovelha conforma o carreteiro
e muita gente não deita em travesseiro
sem comer carne,
insatisfeitos,
comer cereais ou ovos não lhes basta;
é só a carne que lhes dá maior sustância,
moços e velhos na mesma manigância...
E ainda falam
de espécie ameaçada,
quando é o gado vacum o massacrado,
em seus potreiros criado com cuidado,
somente para a carne ter nos dentes!...

BORRASCA IX

Tampouco vejo razão para endeusar
as virtudes da china tão louvada,
pois é mulher do mesmo comportar
que noutras terras
ou em outras guerras;
umas defendem sua virtude a fundo,
outras promíscuas no ventre fecundo,
umas são belas e de menear jocundo,
outras são feias
e outras alheias
a qualquer graça que não a juventude,
que se confunde tanto com beleza
e por dez anos apenas nos ilude;
existe graça
nesta desgraça,
nessa pura adolescente insegurança,
desengonçada menina que se afirma
depressa ou devagar na antiga dança;
as que são belas,
brilhantes velas,
conservam sua atração quando maduras,
são elegantes na surpresa da velhice,
guardando os dotes de belezas puras,
e na inconstância,
mantêm constância:
por mais sejam fiéis, mudam de humor,
mesmo fingindo, sempre insatisfeitas,
condescendentes ao demonstrar amor,
porém as chinas,
doces meninas,
não são nem mais fiéis, nem mais constantes,
que em tudo são mulheres, femininas,
porém graciosas para os seus amantes...

BORRASCA X

Há sempre espaço para estupidez
em cada ato simples que empreendemos,
basta não dar atenção ao que se fez;
a distração,
golpe de mão,
nos coloca facilmente em situação
a que depois iremos lamentar;
tudo provoca uma impensada ação;
automatismos,
rasos abismos,
que até a morte de muitos já causaram,
porém nos tempos de digital computação
provavelmente esses tantos lamentaram
a perda do trabalho,
o brando malho,
como um súbito reguaço pelos dedos,
igual nos davam os antigos professores,
nessa didática posta hoje em degredos...
mas pela vida
arrependida
já ficou muita gente por um toque
que enviou para alheio recipiente,
qualquer mensagem de estranho enfoque
          que fiz também;
errei, porém,
tenho de hoje a benfazeja sorte
de corrigir meus erros computados,
sem sofrer no meu viver mais longo corte;
mas pela vida
mal sucedida
foi cada ingente tentativa de ajeitar
erros mais sérios para os quais borracha
jamais teve sucesso em apagar...

BORRASCA XI

Contudo, quando eu olho essa esmeralda
que a maioria costuma chamar vida,
retirada de cada monte à falda
no diário corte
que chamam morte,
eu a vejo rebrilhante entre meus dedos
e então me deixo invadir por maravilha,
que me queira transmitir tantos segredos
enquanto pura
na mão perdura
essa jóia magnífica e completa
a que tão poucos sabem dar valor,
até que se aproximem dessa meta
que afinal há-de,
contra a vontade,
ser atingida por todos os corredores
e ao invés de prêmio, cobra seu pedágio,
talvez com ágio, talvez em mil temores
mas em que todos
pisam nos lodos
e sempre sofrem o final escorregão,
quando a esmeralda vai pulando pelo chão
e em vão as mãos dela buscam proteção;
em puro engaste
encastoei a minha,
não porque tema a morte, minha vizinha,
mas porque sei o valor que tem a vida,
ainda quando se demonstra mais mesquinha,
porque, afinal,
é um carnaval,
puro baile em que usamos fantasia
perante os outros e perante a própria mente,
até que as máscara escorrega ao fim do dia.

BORRASCA XII

Por entre as ráfagas da estranha tempestade
que não engole naves ou navios,
porém deglute trovões à saciedade
e chega então,
sem furacão,
mui mansamente, até mesmo carinhosa,
numa carícia que nos pega de surpresa,
despetalando nossos dias como rosa;
num malmequer,
sabe o que quer
a nossa velha e boa dama antiga,
a camponesa senhora da gadanha,
cortando os fios com precisão amiga...
“Vem para mim!
Quero-te assim
No seio de meus braços receber!
É a vida que se mostra dolorosa
e verei que ponho um fim ao padecer;
toda a doença
e malquerença
só te afligirão enquanto eu não chegar,
porque dou fim a todo o malefício
e até o medo teme me encontrar...
E dessa forma,
para tua mão retorna
essa esmeralda que pensaste ires perder;
eu sou o fim de todas as borrascas,
no puro véu da calma a te envolver...”
E o mundo gira
nessa mentira,
que a morte mesma tu não verás jamais
e se isto pode te dar consolação,
quando ela chega, cá não te encontras mais...





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