quinta-feira, 17 de março de 2011

SUCEDÂNEO


SUCEDÂNEO I   

Nesta vida de tantos desencontros
é tão raro descobrir a quem se quer;
nos meandros e caprichos da mulher
se tumultuam mil sexuais encontros.

Em resultado assim desses confrontos,
se a solidão não se deseja conhecer,
quem procura em outro corpo se aquecer,
se contenta em melancólicos recontros.

E quanta vez aquela nos seus braços,
enviada pela vida, em seu consolo,
é tão somente a sombra de um desejo.

E quantas se aconchegam nos abraços
pelo prazer de amamentar no colo
o resultado de um gelado beijo!...

SUCEDÂNEO II

Antigamente, maior sinceridade
havia nas palavras de conselho:
"O amor virá depois," dizia o velho
ditado, em sua plena sobriedade.

Mas no vigor da romanticidade,
gerações rebelaram-se a tal relho:
querem que alheio olhar sirva de espelho
ao mesmo amor que dá brilho à mocidade.

E se iludem, assim, no sentimento
que têm os jovens, de invulnerabilidade,
que o vero amor seja fácil de encontrar...

E então mascaram seu falho julgamento
por sob o véu da infalibilidade,
num carnaval de amor a fantasiar...

SUCEDÂNEO III

Porém não é assim.  A alma irmã
oscila pelo espaço em cataclismos,
"nas convulsões elétricas de abismos"
e a busca quase sempre se faz vã.

Amor não são os frutos da romã,
bem abraçados contra os próprios cismos:
quanto tomba não projeta neologismos,
mas é paineira envolta em própria lã.

Sua flor é rosa, com veios violeta
e o chão recobre que os amantes pisam,
mas o tronco se reveste com espinhos.

E a própria paina é proteção secreta:
durante a vida as arestas mais se alisam,
nesse consolo feito de carinhos. 

SUCEDÂNEO IV

Resulta mais é da maturidade,
pois tal união é apenas confortável:
não mais se espera pelo memorável,
mas se pode contar com lealdade.

Não há receita de felicidade,
porém a vida a dois mais agradável
se torna, quando a busca do inefável
é trocada pela calma da amizade.

Porque, afinal, aquele turbilhão,
confundido com amor, inicialmente,
se consome, como todo o combustível.

Mas amor pouco a ver tem com paixão
ou com satisfação intermitente,
que é muito mais o alimento do possível.

SUCEDÂNEO V

Ao redor de teu leito rodopiam
esses fantasmas que querias amar:
há um só corpo candente a te abraçar,
mas há duendes nos olhos que te espiam.

E do fundo das cortinas te vigiam
esses gênios melífluos, a girar,
em risos argentinos a dançar:
mil desejos que apenas te iludiam...

Nessa burla comum da fantasia,
essas nesgas de Príncipe Encantado
a valsar com a Bela Adormecida...

Seu tempo passa em permanente orgia,
assombrações, afinal, de teu passado,
que somente umas às outras dão guarida.

SUCEDÂNEO VI

Também eu tenho um coro de fantasmas
que me acompanham com feroz frequência
e permaneço nessa ambivalência
com que tu, mulher real, comigo orgasmas,

pois repartes os instantes que me espasmas
com essas lâmias de sutil fragrância:
elas oscilam ao redor, a cada instância
e me sufocam ao sopro dos miasmas...

Nesses momentos em que só teu seria,
em que bate, junto ao teu, meu coração,
a mente permanece envolta em sonho,

nesse destino irônico e bisonho,
em que minhalma com o vácuo te traía,
mais abstrato que o sopro da paixão...

SUCEDÂNEO VII

Algumas vezes me louvo de fantasma,
quando desejo alhures desconfio:
não partilho em concreto desse cio,
mas, quem sabe, as ilusões que sempre crio,

não se encontram nas mentes, paixão asma,
cozida sem fermento e sem rocio,
não são iguais geradas no alvedrio
de tais olhares com que rápido me alio...

Talvez existam réplicas de mim,
evocadas nesse instante de prazer,
em que desejam maior excitação,

por mulheres que eu nunca quis assim
e que, no entanto, me usam, ao tecer
dessa paupérrima vaidade da ilusão.

SUCEDÂNEO VIII

E, por estranho que possa parecer,
é justamente esta visão de eremitério,
essa quimera desfeita em despautério,
que me permite fiel permanecer,

porque me enleio nas tiras do querer
e só comigo cometo esse adultério:
minhas fantasmas formam vasto cemitério
de que nenhuma jamais se pode erguer.

Assim, não há paixão descontrolada:
quando um convite em outros olhos vejo,
eu conjuro outro fantasma, simplesmente,

a uma nova sepultura já escavada
nos escaninhos do abstrato beijo,
distribuídos nas cavernas de minha mente.

SUCEDÂNEO IX

Só imagino a que ponto as fantasias
reais se tornam, por duplicação.
Se o desejo de cada coração,
de certo modo, por estranhas vias,

não assume, no fervor das fancarias,
existência, no plano da ocasião
e que, depois, se arraste pelo chão,
apisoado pela luz dos dias...

Quem sabe, esses fantasmas em que penso
não se escondem nos cantos mais escuros,
nas gretas das paredes, sutilmente

e, quando a imaginar estou propenso,
voltam de novo, espíritos impuros,
a dominar-me o sonho... totalmente.

SUCEDÂNEO X

E quem sabe, caso eu mesmo for fantasma,
na mente lúbrica de qualquer mulher,
eu não me esconda nas gretas de qualquer
parede suja, enquanto ela se espasma,

a bocejar dos sonhos o miasma
e fique ali, escravo do mister,
preso na rede desse mal-me-quer,
a ser chamado para quando orgasma,

quer seja inspiração masturbatória,
quer como o rosto que se vê no coito,
sobre o rosto do parceiro sobreposto,

executando assim função inglória:
apenas um duende mais afoito,
chamado e despedido sem desgosto.

SUCEDÂNEO XI

Quem sabe, então, a que ponto o desatino
das criações da minha e de outra mente
não esculpiram uma cópia diferente
através de um poder semidivino

e retiraram, ao toque de tal sino,
partes da alma, em gesto irreverente
e as conservam, em servidão potente,
nas mil alternativas do destino...

Assim serei, se outras me desejam,
porém sem desejar o suficiente
para, de fato, na vida me buscarem,

apenas me guardando, quando ensejam
um pouco de prazer, ardentemente,
sem sequer a si mesmas confessarem.


SUCEDÂNEO XII

E nisso tudo, eu sou o maior culpado:
que outras me queiram passo a imaginar;
não me surpreende até mesmo desejar
ter outros corpos estendidos a meu lado.

Após ter na armadilha assim tombado,
eu reconheço os fantasmas de meu lar:
almas penadas que até busco abraçar
a cada vez que me sinto atribulado.

E escrevo assim as odes de elegia,
essas doçuras de mil alternativas,
os sucedâneos com que me envolvi,

mais enleado na própria fantasia
dessas lembranças sempre redivivas
de todas as mulheres que perdi.




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