terça-feira, 8 de março de 2011

EVANESCÊNCIA


EVANESCÊNCIA I

Como é comum confrontarmos o passado
e vermos, em surpresa e desaponto
que outrem lembra bem diverso conto
do que aquele que havíamos recordado!...

É bem estranha esta paleta do lembrado:
tão mais fiel é o lampejo do reponto
do que a canção repetida em contraponto,
memória falsa de um tempo evaporado!...

Pois nossas vidas não passam de colagens:
lembramos o que trouxe mais agrado
ou a fonte da tristeza mais profunda...

E, com o tempo, revestem suas bagagens
com selos de aeroportos, lado a lado,
até que a verdadeira ação neles afunda...

EVANESCÊNCIA II

Na farândula voraz da solidão,
ao invés de dançar, eu toscanejo:
contemplo os dançarinos, sem desejo
de partilhar da triste multidão.

Da tarântula feroz da escuridão,
ao invés de fugir, os palpos beijo,
mas não por tarantela e nem por pejo:
ela me teme mais e dá-me a mão,

para juntos armarmos nossa teia:
sempre será alguma companhia,
enquanto assisto a azáfama dos outros...

Sem pertencer à farra que incendeia
as vidas frágeis, ao passar do dia,
em que galopam ágeis como potros...

EVANESCÊNCIA III

Eu ergo mais estantes e me ajuda,
na faina de meus dias sem paixão,
de meus deveres a vasta multidão,
na indiferença, que afinal me escuda...

Não vou acocorar-me, feito Buda,
nessa fuga de anil meditação...
Sei quando durmo e que a respiração
não precisa de pretexto para a aguda

confrontação com o mundo ao derredor...
Não preciso esconder-me do concreto,
sob pretexto de espiritualismo...

O meu refúgio é apenas multicor:
sem me adornar de falso hipnotismo,
eu só me escondo é de buscar afeto...

EVANESCÊNCIA IV

Todavia, ainda espero; todavia,
ainda acredito no futuro, ainda
na vinda do prazer, estranha vinda,
tardia por que seja, luz tardia,

na azia de mim mesmo, nessa azia
infinda de mesmice, nessa infinda
mal-vinda evanescência, na mal-vinda
cria solerte que mais tédio cria...

Assim, ainda espero, mesmo assim,
que chegue o dia feliz, que o dia chegue
desse amor incensório, desse amor

que enfim me satisfaça, amor que enfim
cegue a tristeza deste olhar e cegue
o meu ardor no ansiar do teu ardor...

EVANESCÊNCIA V

Esse meu sonho de plena liberdade
é outro tipo de meditação:
mascaramento da dormentação
que esconde o sono em ampla falsidade;

outro refúgio apenas, na verdade,
quando nem a si mesmos leais são
quantos vejo a meu redor, ímpeto vão
de traírem a si próprios, sem piedade:

de cada grupo, toda regra aceitam,
para serem aceitados no rebanho,
enquanto eu sou o lobo solitário --

o bobo solitário, que rejeitam,
por perceberem, desde o meu antanho,
que sou leal a meu ego multifário.

EVANESCÊNCIA VI

Mas nada impede a busca do sonhar,
entretecido de véus e de cortinas,
alfombras em que piso, lamparinas,
aldravas ribombando a meu tocar...

Meus dedos são farrapos de luar,
meus cabelos grisalhos de minhas sinas,
meu sangue feito de tisanas finas,
minhas falanges, harpas a cantar...

E é por isso que repito o mesmo acorde:
lealdade para alguém que me deseje,
a quem retribuirei de igual medida...

Enquanto até o presente, em todo o aborde
apenas obtive que me beije
quem algo espera de mim na despedida...

EVANESCÊNCIA VII

Resta saber se eu saberia ser leal
a quem leal me fosse a esse ponto...
Leal eu fui em todo o desaponto,
por mais que a vida me fosse desleal...

A pergunta é se, às vistas desse ideal,
eu saberia dar o contraponto...
Que a dádiva pagasse, sem desconto:
leal eu fosse e não tão só cordial...

É bem possível que nutrisse desconfiança:
leal só o é de fato quem confia...
Por tanto tempo fugiu-me essa alegria,

que nem sei se ainda busco essa esperança...
Ou se me serve apenas de folia,
contra a amargura que meu peito alcança.

EVANESCÊNCIA VIII

A companhia de quem espero lealdade,
que pense como eu e me aconselhe,
nunca encontrei: alguém em que me espelhe
e que partilhe comigo igual verdade...

A serva submissa e sem maldade
eu encontrei um dia, porém dei-lhe
o meu adeus, momento em que expliquei-lhe
que precisava de mais que inermidade...

E à dama egoísta, eu também servi,
leal sempre a si mesma e sem lugar,
na mente cheia, em que me aconchegar...

E de tal modo, foi que percebi,
até que ponto oscilava seu amar,
leal e intenso, porém somente a si...

EVANESCÊNCIA IX

Esse é o problema, em toda a sociedade:
são os próprios desejos que se busca
e é desse modo que nossa mente ofusca
da companheira a real necessidade.

Eu sei que tive amor-tenacidade:
que me quiseram de maneira tosca,
que me marcaram com sua tinta fosca
ou mesmo me buscaram com bondade.

Porém nunca encontrei, em minha tolice,
esse amor esmeraldino, sangue puro,
a transfundir-se inteiramente ao meu.

Só permanece o que primeiro disse:
procuro ainda, no túnel mais escuro,
esse amor impossível... que era o teu.

EVANESCÊNCIA X

Eu sei que é impossível, mas existe...
Já com outros revelaram lealdade
igual a esta que quero, na humildade
de partilharem seu destino triste...

Que o alvo desse amor sempre consiste
alguém que não merece tal saudade,
alguém que até despreza tal bondade
e acaba por fugir, se amor insiste...

Eu sei que estás aí, desconhecida:
que as pérolas aos porcos já lançaste,
no sonho da primeira ingenuidade...

Vem para mim, que te darei guarida,
e eu mesmo pagarei, com igualdade,
por todo o desaponto que encontraste...

EVANESCÊNCIA XI

É a ti que busco, mulher que nunca vi:
meu fogo já está aceso na lareira,
eu já montei dos sonhos a fogueira,
e a nossa rede já entreteci...

Eu te canto à distância, bem-te-vi,
senhor dos ares, em busca derradeira:
eu quero o teu amor, que por inteira
sigas a rota que eu já percorri...

Mesmo que nunca no real te encontre,
meu ideal se projeta pelo espaço,
sem desaponto, ao se envolver no teu...

Talvez na carne nunca se demonstre,
porém o beijo do sideral abraço
será mais puro que este beijo meu!...

EVANESCÊNCIA XII

Já não espero de um corpo lealdade,
mas sei o que tu sentes, sim, mulher,
que nunca hei de encontrar, mas que me quer,
no mesmo anseio, sem opacidade...

Assim minha alma, com fidelidade,
desposará a tua, sem qualquer
resquício de pudor, sem malmequer
de dúvida falaz ou ingenuidade...

Na luz do vento possuirei inteira,
som de meus cantos, musa delirante,
a rainha imperfeita dos espaços...

E só assim te espero, companheira,
virgem dos sonhos, mais fiel amante
que todas as que tive nos meus braços...

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