terça-feira, 1 de março de 2011

SONHO DE ARSÊNICO



SONHO DE ARSÊNICO I

do sol ferido, ferido assim da lua,
    são estes raios que me escrevem versos,
    pelos ventos e nas brisas mal dispersos,
o mar me fere, me fere a terra nua.

os mortos me soerguem como grua,
    me ferem os penhascos, véus conversos
    de bruma e de neblina, sons reversos
de luz e de gaivota... e a mente estua

de alegrias e mágoas.  nem entendo
    de onde surgem tais sintomas, vendo
como tudo me aflora ao pensamento.

e nem sou eu que canto, são feridas,
    que o céu e a nuvem me trouxeram vidas
das almas mortas em perpétuo julgamento.

SONHO DE ARSÊNICO II

no dia em que vier o terremoto,
    depois de um tempo de paz e segurança,
    pouca gente terá sequer lembrança
do que fazer com cada prédio roto.

alguns se lembrarão de tirar foto,
    para pôr na Internet, na esperança
    de alcançar qualquer fama ou a bonança
de conseguir o auxílio do ignoto.

mas se chegar o terremoto na minha vida
    e tudo ruir em torno, eu saberei
que não me ajuda o auxílio de ninguém.

terei apenas de amargar a despedida
    desse amor que, em tal dia, perderei,
nos escombros que minhalma já contém.

SONHO DE ARSÊNICO III

no dia em que vier, a inundação
    cobrirá amavelmente esta cidade...
    minha casa sofrerá a opacidade
e os móveis, sobre a água, flutuarão.

todas as covas, aos poucos, se abrirão:
    os ataúdes podres, é verdade...
    e os novos mortos da eventualidade
aos velhos mortos se misturarão.

minha vida, muita vez, foi inundada
    por lágrimas alheias, à porfia,
quando escutei o que tinham a dizer...

mas minha própria dor foi abafada
    e ninguém viu o pranto que escorria,
na hora secreta de meu padecer...

SONHO DE ARSÊNICO IV

um dia esta cidade, num vulcão,
    bem de repente, se transformará...
    até mesmo a catedral explodirá,
levando aos ares imensa multidão. 

pois não se morre de sufocação
    e nem onda de lava os queimará,
    súbito aos céus a cidade se alçará,
na glória triunfal dessa explosão.

também eu, muitas vezes, explodi
    lavas de versos em nuvens venenosas,
piroplásticas esperas silenciosas,

por outras explosões que já perdi,
    no seio de mulheres pretensiosas,
cuja nudez sonhei e jamais vi...

SONHO DE ARSÊNICO V

um certo dia, as nuvens de mosquitos
    se acasalarão com machos diferentes
    e nos trarão as moléstias indolentes
da dengue e da malária, em sons malditos.

dos culex cessarão os mil agitos,
    tornar-se-ão os aedes mais frequentes,
    os anófeles picarão todas as gentes,
amortalhando parasitas nos aflitos...

a mim porém, o que pica é o desconsolo,
    ao perceber que nunca alcançarei
livrar-me das picadas que me afligem...

que, por mais que trabalhe, sinto o dolo
    desses impostos que sempre pagarei
e dessas taxas que ainda mais me atingem...

SONHO DE ARSÊNICO VI

também no caso de voltar a peste negra,
    talvez ocorra grande mortandade...
    não se encontra a sanitária autoridade
preparada a combatê-la, via de regra...

essa peste bubônica se integra
    entre os males tropicais e, na verdade,
    a maioria, em pretensa sanidade,
zombaria, na certeza que os alegra,

de que surgir entre nós fosse possível.
    todavia, ainda existe a hidatidose,
transmitida por caninos tão amigos...

e o que existe, portanto, de impossível
    que os ratinhos, que nos dão leptospirose,
se transformem em mais sérios inimigos?

SONHO DE ARSÊNICO VII

talvez, um dia, retornem gafanhotos,
    cujas nuvens nos cobriam no verão:
    bocas famintas por toda plantação,
cadáveres a entupir nossos esgotos.

se cobria cada flor com panos rotos,
    cuja brancura era esgarçada por rasgão;
    suas pernas arrancavam-se com a mão
e se jogavam às galinhas os seus cotos.

até o trigo deixou de ser plantado,
    pelas pragas tantas vezes eclodidas,
a devorar espiga, haste ou botão.

também minhalma invadiu inseto alado,
    em revoadas tantas vezes repetidas,
até rasgarem-me inteiro o coração.

SONHO DE ARSÊNICO VIII

e nem seria novidade um furacão.
    já os tivemos.   um até me destelhou
    em parte a casa.  igualmente, rebentou
o telhado da garagem.   tal tufão

poderia, outra vez, destruição
    provocar entre nós.   já derrubou
    uma fileira de ciprestes e deixou
o cemitério sem a sua proteção.

sem contar os antigos eucaliptos,
    plantados no final do retrasado
século, com recursos do visconde...

por tantas décadas se mantiveram invictos,
    até que o vento, vindo deus sabe de onde,
os derrubou em fúria, tresloucado...

SONHO DE ARSÊNICO IX

Se um dia resistência antibiótica
    desenvolverem esses mil micro-organismos
    que nos transmitem lepra e impaludismos
e nos tornam amarela a esclerótica,

como o fazem alguns, nesta sua ótica
    de retomar sobre nossos organismos
    seu antigo domínio e cataclismos,
independentes da digital robótica,

os nossos corpos, assim enfraquecidos,
    pela presença de tais medicamentos
que a vida conservaram aos mais frágeis,

bem facilmente então serão vencidos
    por esses virus e bactérias ágeis,
que nos devoram os próprios pensamentos...

SONHO DE ARSÊNICO X

Se novamente vier a grande seca
    e os campos se gretarem, amarelos,
    morrerem os jardins de tantos zelos
e o próprio gado passar pela resseca;

se falharem sacrifícios de quem peca,
    se forem vãos esforços e desvelos,
    esgotarem-se artesianos, por mais belos
e o povo se arrastar de seca em meca,

as paredes ficarão a se rachar
    e até os calçamentos fenderão:
virará pó até a catedral...

Os mortos como múmias a secar
    e os vivos toda a lama sugarão
pelas cânulas dos ossos, afinal...

SONHO DE ARSÊNICO XI

Nove catástrofes nesta série descrevi:
    sim, dez catástrofes aqui, uma por uma;
    estranha essa atitude que resuma
fato após fato que registrei aqui.

Não sei dizer por que motivo as redigi,
    nem o que me levou, permeio à bruma
    destes meus pensamentos, que resuma
este tipo de ideia que incluí...

Somente veio à tona, sem desgraça
    a despertar os versos, sem tristeza,
por mais que te aparentem depressão.

Lembranças vagas que a memória passa
    e põe de lado, no vácuo da incerteza,
quiçá para esvaziar-me o coração...
 
SONHO DE ARSÊNICO XII

Vou abrir uma indústria na cidade:
    engarrafar verão, para servir
    a meus amigos de menor capacidade
em se aquecer no frio que tem de vir.

Eu, pessoalmente, bem posso resistir:
    é o calor que me cansa, iniquidade
    que só me atinge para me oprimir,
enquanto suo e gemo de verdade...

Porém, vou colocar esse verão
    em garrafas de límpido frescor
e distribui-lo, com sorriso terno,

para aquecer o alheio coração:
    o nome da bebida será "Amor"...
Mas, para mim, vou engarrafar o inverno!

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